Frances Ha (2012, dirigido por Noah Baumbach) foi, durante muito tempo, meu filme favorito. Falar dele é quase como falar de uma pessoa conhecida: me sinto íntima da personagem, como se fosse alguém real cuja trajetória acompanhei durante um longo tempo. Não deixa de ser verdade.
Enquanto Frances muda em 1h20, eu mudei junto com ela em 10 anos.
Alguns meses atrás, li esse texto de autoria de Olivia Rutigliano na Lithub (indicação dessa edição da newsletter da Bárbara Bom Angelo). Olivia fez uma resenha do filme em 2012 e agora, 10 anos depois, reflete sobre como a sua visão sobre ele mudou ou permaneceu. O texto é ótimo e me fez pensar na minha própria relação com esse filme que já assisti tantas vezes. O que me fez gostar tanto dele antes? O que me fez permanecer gostando dele depois de tanto tempo? Tem uma pessoa meio perdida andando pra lá e pra cá numa cidade enorme, com monólogos e diálogos excelentes - o que já é um prato cheio para entrar nos meus favoritos. Mas tem um elemento de Frances Ha que é mais sutil, algo que eu só consegui entender com o tempo. Frances buscava e tentava lá, e eu nem percebi que estava buscando e tentando aqui também - até esbarrar no que Frances também encontrou 10 anos antes.
A vida adulta não é uma estrada perfeita de mão única, mas sim uma cidade grande e caótica cheia de ruas possíveis.
“I’m so embarrassed. I’m not a real person yet.”
Nesse passeio de hoje, seguimos pelas ruas de uma Nova York atual e em preto e branco, passando pelos diferentes lugares da nossa protagonista. Frances (Greta Gerwig) é uma mulher de 27 anos, que trabalha em uma companhia de dança e mora no Brooklyn. Sua vida começa a virar do avesso quando a amiga Sophie (Mickey Sumner), com quem divide o apartamento, decide se mudar para outro bairro. Essa mudança desencadeia uma série de acontecimentos que fazem o mundo de Frances se apertar ao redor dela nessa cidade grande que, como tantas outras, não perdoa vacilos. Qual rumo tomar quando todos os caminhos parecem se fechar?
Eu tinha 19 anos quando assisti Frances Ha pela primeira vez. Nessa época, ainda estava no começo da faculdade e morava com os meus pais. Eu tinha com Francis uma relação quase que de veneração: eu não compreendia exatamente suas questões, mas a achava uma espécie de exemplo de pessoa legal, uma heroína da minha existência millenial (e quanto a isso nada mudou: Greta Gerwig continua sendo a heroína da minha existência millenial). Essa foi a minha primeira fase com o filme.
Na segunda vez que assisti tinha em torno de 22 para 23 anos e então veio a fase de total identificação. Eu estava no início do que seria o auge da minha fase Frances, teimando com as coisas erradas e correndo loucamente pelas mesmas ruas cinzentas de uma Nova York que também começava a me engolir.
Frances corre e anda por todos os lados e por todos os caminhos que vê como potenciais para trazer seu mundo de volta aos eixos. Ela nunca desiste de encontrar o que procura e está sempre tentando. Quando nenhum caminho dá certo, ela volta por onde veio: visita os pais na cidade natal no final do ano e consegue um emprego de férias na antiga universidade. Por mais acolhedor que seja estarmos em lugares que já foram nossas casas, onde sabemos o que funciona ou não, há sempre uma parte de nós que é um estrangeiro. Sabemos que não podemos voltar, ainda que possamos fazê-lo fisicamente. E Frances percebe isso.
Minha fase de total identificação perdurou por alguns anos, entre mudanças de casa, de cidade, de relacionamento, de área de trabalho. Assim como Frances, tateei pelos caminhos que tinha cada vez que aquele que eu seguia se fechava e quis voltar para trás muitas vezes. Mas tantas mudanças inevitavelmente me transformaram e tal foi o meu espanto ao assistir o filme pela terceira vez (agora já com 26 para 27) e sentir… bom, irritação.
Me irritei com Frances.
E comecei a ter mais simpatia por Sophie.
Me irritava o quanto Frances era atrapalhada com relação à própria vida. O quanto se apegava a como as coisas foram e tomava as mudanças como ataques pessoais. O quanto ela se irritava por não ter o que queria me irritava. Sintomas de que eu já estava em outro momento, de que já tinha ultrapassado a minha fase Frances. Sinal de que algum dos caminhos que eu tomei não se fechou, foi dando certo. Eu não era mais Francis, era Sophie - e, assim como Sophie, quebraria a cara logo em seguida.
Quando nenhum caminho à frente está aberto, e também não se pode avançar para trás, é preciso então reavaliar o que se entende por caminho - e isso acontece quando Frances vê que a vida de Sophie não está tão no lugar quanto ela pensava. A vida não é feita dos caminhos aparentemente bem sucedidos que tomamos, com uma corrida em que o primeiro a escolher o “caminho certo” é o mais adulto. Minha irritação era pura arrogância de quem pensou que achou algo, mas não há caminho certo - e perceber isso é o que faz a nossa transição. Não de crianças para adultos, como a nossa sociedade faz parecer que deve ser, mas a transição entre aquilo que achávamos que deveríamos ser e aquilo que realmente somos, com todas as suas imperfeições, na vida que se desenrola aqui na nossa frente.
Lendo o texto de Olivia, cheguei na minha fase atual de Frances Ha: a da compreensão. Frances estava tentando, como falei antes, o problema é que ela estava tentando dentro de uma ideia do que deveria ser. Crescemos com uma concepção do que significa crescer. Nos sentimos para trás quando todos ao nosso redor parecem tê-la alcançado, menos nós. Aí então nos sentimos confiantes quando percebemos que alcançamos algo parecido com ela. Mas as coisas não são assim tão simples.
Eu precisei chegar e ultrapassar a idade de Frances para perceber a cereja do bolo do filme: a certeza de que qualquer caminho que eu tome dará errado, porque a própria ideia de caminho está distorcida. Não existe uma estrada linear, com um asfalto lisinho à minha frente - e que entediante ela seria se fosse assim. Não é à toa que é preciso sempre tomar cuidado com grandes trajetos retos no planejamento de estradas: é fácil perder a atenção quando tudo se repete igualmente por um longo tempo.
Gosto de pensar que Frances e Sophie perceberam, cada uma de uma perspectiva diferente, que a vida adulta não é essa estrada certa e isolada que deveriam escolher e seguir indefinidamente, esperando que tudo aconteça conforme lhes foi prometido um dia; mas algo como um mapa de cidade grande: intrincado, cheio de avenidas que se cruzam e pequenas vielas escondidas. Esse lugar em que às vezes passamos correndo sem obstáculos por parques abertos, e às vezes só paramos em uma mesinha na sombra para tomar uma cerveja e ver a correria dos outros. Nem sempre vai ser bonito, porque é uma cidade grande afinal de contas. Teremos problemas a resolver, reparos a serem feitos, mas é a nossa cidade. É esse lugar cheio de caminhos possíveis que desvendamos com nossos próprios pés, com nosso próprio suor.
Amo mais Frances Ha agora do que antes, mas ele não é mais o meu filme favorito: vieram outros conforme eu descobri novas partes de mim, outras ruas que eu não conhecia antes. Pode ser que a Luisa do futuro olhe para esse texto, da Luisa de 29, e pense diferente. E eu espero que ela pense diferente. A ideia de que existe uma cidade imaginária imensa ao meu redor é o que importa: há muito o que conhecer, no ritmo que der e, se algum caminho não der certo, é só virar em outra esquina e ver onde ela vai levar.
Na semana que vem, nos encontraremos de novo com Sr. Hulot. Te espero lá :)
Não achei Frances Ha em nenhuma plataforma de streaming no momento, mas ele costuma estar disponível na Netflix.
Chegou na Andanças por esse post? Você também pode gostar de:
Cheguei só agora nesse texto e foi ótimo para eu entender minha relação maluca com esse filme.
Diferente de vc, eu assisti aos 22 anos. E não foi bom. Minhas amigas amavam e eu simplesmente detestei, tanto que terminar o filme foi um suplício. Não contei para ninguém que eu não gostei porque não queria bancar a "do contra", mas me irritava demais a fantasia de Frances e o jeito despreocupado (na minha visão) com que ela levava a vida. Vi o filme de novo pouco antes de fazer 30 e tive outra experiência: gostei! Hehe. Não morri de amores, mas entendi o fascínio das minhas amigas. Acho que agora consigo dar espaço para a ilusão na vida, coisa que aos 20 eu não conseguia - e suspeito que seja pura questão de classe mesmo.
Esse texto me botou para pensar nisso.
Obrigada ❤️
"Qual rumo tomar quando todos os caminhos parecem se fechar?", muito lindo <3 fiquei com vontade de rever frances ha :'))