Andanças #14: Berlim: A sinfonia de uma grande cidade
A cidade que existiu um dia, a cidade que vive hoje e a cidade que queremos para o futuro
Cinco horas da manhã. As ruas vazias, janelas fechadas, a luz do dia ainda fraca iluminando edifícios silenciosos. É aqui que começa o nosso passeio de hoje.
Seguiremos por caminhos um pouco fora da rota da proposta inicial da newsletter. Dessa vez, não teremos nenhum personagem em crise existencial andando por aí ou, pelo menos, nenhum em específico. Em Berlim: A sinfonia da grande cidade (Berlin: Die Sinfonie der Großstadt, 1927, dirigido por Walter Ruttmann), a própria cidade é a protagonista. Esse é um filme mudo meio documental, daqueles feitos no início do século XX, que se propõem a registrar a vida como era na época. Ao longo de uma hora, vemos o balé da cidade tomar forma durante um dia.
Esse filme me veio à mente antes que eu pudesse pensar racionalmente sobre isso, mas não veio à toa. Às 5h20 da manhã do último sábado, acordei na segunda fileira do ônibus em que eu estava com o clarão vermelho do sol começando a surgir em terras paulistas. Tem uma coisa meio mágica sobre ver o dia nascer na estrada assim tão cedo - as construções no horizonte, a estrada começando a ficar movimentada, aquela luz meio rosada de um dia que promete ser quente.
A cidade amanhecendo em São Paulo de 2022 fez brotar na minha memória, durante uma noite meio mal dormida, o amanhecer dessa Berlim de 1927. Lá, às 5 da manhã, a primeira pessoa que vemos na tela é um guarda fazendo ronda com seu cachorro. Aos poucos, pessoas bem vestidas viram a esquina (voltando de uma festa, talvez?). Os primeiros operários se encontram e seguem juntos para o mesmo caminho, enquanto bondes e estações de trem começam a encher de gente chegando e gente partindo.
Pouco antes das 6h, cheguei na rodoviária no Tietê. Decidimos pegar o metrô até a Paulista e pensar no que fazer por lá. Muitas pessoas já corriam apressadas na rodoviária e no metrô, muitos carros nas ruas. A Paulista ainda era uma avenida relativamente calma, amanhecendo. Várias pessoas chegando para trabalhar ou voltando do trabalho, algumas indo atrás do lanche depois da festa e outras tantas que, infelizmente, tiveram que dormir por ali.
Depois do café da manhã na padaria, o cenário da Paulista de 2022 já era outro: pessoas vindo tomar café, caminhando, passeando o cachorro, mais lugares abrindo, mais gente chegando para trabalhar, mais carros. Em Berlim de 1927, as lojas começam a abrir, as crianças vão para a escola, os carteiros começam suas entregas e os edifícios de escritórios se enchem de homens e mulheres.
Em pouco tempo a vida toma conta da cidade até se transformar num turbilhão. É bonito ver documentado essa passagem das horas em uma grande cidade, enquanto também fazemos parte da multidão que a atravessa nos dias de hoje. Temos outros ritmos, outras roupas, outras atrações, outros trabalhos, mas nossa movimentação andante pelas ruas de uma cidade grande permanece um século depois.
Quando a luz da tarde começa a diminuir, as máquinas param e a multidão retorna para suas casas. Mas essa é uma cidade grande, afinal de contas: é hora dos passeios, dos cafés, dos esportes, dos namorados. Nas nossas cidades de hoje, é hora de colocar as mesas de plástico na calçada com um belo litrão trincando de tão gelado. E é quando a luz do dia se vai que as luzes artificiais fazem a sua mágica: os letreiros luminosos, o cinema, os shows, o teatro, os concertos, os jogos, o jazz.
A cidade embala as pessoas noite adentro até que tudo comece de novo no dia seguinte - quando a cidade vazia, dorme mais uma vez.
Mas o que é uma cidade vazia?
São as pessoas que dão vida a uma cidade. A infra-estrutura, as construções, os carros - eles são nada sem pessoas as usando, ocupando, se divertindo, experimentando, criando, rindo, vivendo. É nas pessoas que está a poesia.
Estar em uma multidão pode ser um pouco angustiante, mas traz também uma carga de eletricidade que é difícil ignorar. Ela toma conta da gente, preenche todos os espaços e células do corpo. Se em um dia alguns poucos carros buzinavam louca e ignorantemente na Paulista, no outro a multidão a pé carregava as bandeiras vermelhas e muitos e muitos adesivos com o número 13. Foi nessa multidão que eu me senti segura para usar meu adesivo também, uma segurança que eu não sinto nas ruas de um sábado qualquer em Curitiba. Na Liberdade, lotada no domingo de sol, uma pessoa puxa um “Olê, olê olê oláá…” e, de repente, a multidão ao redor continua. Em tempos como esses, não tem como não se arrepiar.
A gente tem a multidão.
E a multidão tem força.
Não podemos, entretanto, romantizar: no filme, uma cena mostra uma senhora pedindo esmolas para a multidão na rua enquanto do outro lado da vitrine um colar de pérolas é vendido. A cidade provavelmente não é o melhor forma de nos agruparmos para viver. Elas tem como base a desigualdade, desde o princípio - algo que só piorou com o capitalismo tomando conta de nossas vidas. Mas é majoritariamente nas cidades que vivemos hoje e precisamos olhar para elas sem ilusões, sem individualizações. Como podemos fazer delas um lugar melhor para se viver? Um lugar melhor para todos viverem?
A gente precisa de uma estrutura mínima para que possamos seguir juntos, atrapalhados e caóticos, tentando sempre ser pessoas melhores nesse balé que se desenrola nas nossas ruas todos os dias. A gente precisa de uma estrutura mínima para que nossas cidades continuem de pé, para que nós todos continuemos de pé - sãos, salvos, protegidos, alimentados, estudando, trabalhando, cuidando de si e dos outros.
A gente precisa de um presidente de verdade. E quem sabe então as nossas cidades, grandes e pequenas, amanheçam na próxima segunda com um pouco mais de esperança.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Você pode assistir Berlim: A sinfonia de uma grande cidade no Youtube.
Dois textos lindos que recebi na minha caixa de e-mails na semana passada que se relacionam com o tema de hoje:
Sobre a Av. Paulista, da Gaía Passarelli.
Sobre andar por aí e ver a cidade acontecendo, da Bárbara Bom Angelo.
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que lindo passeio foi esse que em vc nos conduziu. eu amo essa coisa de dar vida pra cidade, e com a sua narrativa foi melhor ainda, aliás, eu gostei muito da proposta do filme, tô indo correndo ver!!