Andanças #2: Hoje eu quero voltar sozinho
Os caminhos cotidianos e as descobertas da adolescência
Na semana passada, falamos da poesia que existe em envelhecer e olhar com olhos experientes aquilo que foi vivido até então. Nesta semana, proponho a você um passeio por um tipo diferente de poética: a das primeiras descobertas.
E poesia, sensibilidade e delicadeza são características que o filme de hoje tem de sobra.
“Quem é que vai querer me beijar?”
A adolescência é um período em que a nossa possibilidade de locomoção por diferentes meios e espaços ainda é limitada, mas nossa mente, por outro lado, está atenta a novas sensações dentro daqueles mesmos ambientes conhecidos. O impulso de descobrir não demanda lugares e situações específicas: ele vai acontecer externamente porque está acontecendo em uma ebulição de hormônios por dentro. É por isso que o cenário ainda pode ser a mesma escola, com os mesmos colegas e os mesmos professores, mas as relações e os interesses assumem agora uma nova forma - estamos descobrindo e explorando, principalmente, nossa sexualidade.
Por mais que as conversas de nossos personagens girem bastante em torno de relacionamentos românticos, há aqui outras reflexões que envolvem o processo de formação, de passagem de um lugar de infância para um mundo muito mais amplo. Esse mundo ainda não é completamente adulto, entretanto. Mas é nessa passagem que irão surgir os primeiros rompimentos da fina membrana que os separa do conhecido para o desconhecido - seja no que os cerca, seja dentro de si mesmos.
Não é preciso, portanto, uma grande aventura pela cidade grande para que esses caminhos da descoberta possam acontecer. O simples trajeto de volta da escola para casa, feito tantas vezes antes, pode iluminar um universo quando alguns elementos e percepções se alteram. A própria escola se torna um ambiente de sociabilidade na cidade que é um espaço de transição para a imensidão lá fora. É o que vemos em Hoje eu quero voltar sozinho, um premiado filme brasileiro de 2014, que foi o representante do Brasil no Oscar de 2015.
Nosso passeio é por um bairro residencial da cidade de São Paulo, onde mora e estuda Leonardo (Ghilherme Lobo), um adolescente com deficiência visual. A melhor amiga de Léo é Giovana (Tess Amorim), que o ajuda na escola e o acompanha todos os dias até em casa, caminho que eles fazem a pé. A dinâmica dos dois muda quando um aluno novo, Gabriel (Fábio Audi), chega e se torna amigo dos dois nesse caminho.
O conflito entre as ideias de que a experiência lá fora é importante e necessária, mas também potencialmente perigosa, circula o filme o tempo todo e se manifesta principalmente na figura da mãe de Léo. Mas, assim como a rua pode ser um lugar extremamente hostil, pode ser ali também onde temos a possibilidade de descobrir o que nos faz vivos de formas que não podem ser encontradas em outro lugar. É onde saímos de um rumo feito para nós para criar o nosso próprio. Andar sozinho envolve a possibilidade de autonomia, de ser dono do seu próprio caminho.
É por meio da convivência com Gabriel que Léo passa a ter uma nova vivência nos trajetos e lugares conhecidos de seu cotidiano. É com ele que consegue circular entre os dois mundos que o rodeiam - o mundo cuidadoso dos pais e o mundo hostil e sem compreensão do bullying colegas - enquanto descobre as particularidades e potencialidades do seu próprio mundo. Ir ao cinema, sair escondido de casa de madrugada, andar de bicicleta. Ambos compartilham pequenos segredos dessa parceria e é também na segurança dela que o sentimento e o desejo entram em cena.
Porém, como acontece geralmente nesses momentos, nem sempre sabemos o que fazer com o que estamos descobrindo. Como todo adolescente, nossos personagens dão voltas e mais voltas, mentem, não sabem lidar com o que estão sentindo, saem de cena. Não seria uma história plausível se não fosse assim. A descoberta do outro é também a descoberta de nós mesmos e do que realmente queremos. E nem sempre é fácil admitir o que queremos, principalmente quando tudo parece nos colocar em determinadas caixas do que é ou não possível para nós. Às vezes, é preciso sair para se encontrar - mas nem sempre é preciso ir muito longe.
Há um número considerável de filmes que abordam esse período de formação (também chamados de coming of age) e que se encaixam nos critérios que defini para os filmes da newsletter. Para mim, isso mostra que a cidade e essa vivência da vida do lado de fora do nosso lugar seguro tem uma importância na construção de nossas identidades e de quem somos. Não é possível romantizar, no entanto. É muitas vezes nesse período da adolescência que descobrimos com olhos mais atentos a crueldade do mundo ao nosso redor e a facilidade com que ela pode nos afligir. A cidade é um reflexo e uma construção da nossa sociedade, do nosso modo de viver, e sabemos o que isso quer dizer. Ainda falaremos muito sobre isso por aqui.
Além disso, é sempre bom ver na tela uma história LGBTQIA+ que é leve, sensível e com um final feliz. Esse lugar que vivemos é ainda muito cruel, não nos enganemos. Mas por muito tempo histórias tristes e trágicas foram muito do que vimos no cinema - isso quando elas puderam ser abordadas nas telas sem proibições e censuras. É importante conhecer e compreender de onde viemos, os problemas que infelizmente ainda são uma realidade, assim como as histórias reais que formaram o nosso passado e ainda formam, com tanta força, o nosso presente. Mas quando histórias tristes de amores e existências impossíveis são tudo o que vemos representado, nosso senso de possibilidade de uma vida feliz fora da heteronormatividade é comprometido. Ela é sim possível e queremos (e precisamos) ver exemplos diversos disso, ainda que na ficção, que falem de amor de uma forma genuína e sensível em qualquer idade, em qualquer configuração. Esse filme se soma a várias outras histórias felizes e esperamos que venham muito mais, não só nas nossas telas, na nossa literatura, mas também no nosso cotidiano.
Ps.: e no nosso país. Viva o cinema brasileiro!
Até o próximo passeio :)
Hoje eu quero voltar sozinho está disponível gratuitamente no site do Sesc São Paulo até o dia 21/08/22, junto com o curta que deu origem ao filme, chamado Eu não quero voltar sozinho (2010). Você também pode assistir o filme na Netflix.
Diretor: Daniel Ribeiro
Ano: 2014
A série Heartstopper (Netflix, 2022) me lembrou muito a pegada desse filme nesse exato sentido que foi mencionado: uma possibilidade leve de amor dentro da comunidade LGBTQIAP+. Acho ambos cristaizinhos de temas de comédia romântica que já são tão batidos em universos héteros, mas ainda tão necessários para outras comunidades.
P.S.: tô amando essa newsletter! Recomendo demais ❤️