Mudamos de casa, de escola, de cidade. Rodamos as casas dos amigos, fazemos um vai e vem diário para a faculdade, para o trabalho, para a casa de nossos amores. Viajamos, mudamos de país. Voltamos. Encontramos uma vizinhança para chamar de nossa achando que a vida não tem mais surpresas para nos dar - mas elas sempre vem, porque a estabilidade é uma coisa frágil, passageira. No fim das contas, estamos sempre em movimento.
A história das nossas vidas é feita de muitas andanças.
“Faço o papel de uma velhota, roliça e tagarela, que conta a sua vida.”
Nosso passeio de hoje não segue apenas por um lugar, mas por uma vida inteira. A diretora Agnès Varda nos introduz à sua história assim, com esse clima maroto de quem está em uma infinita brincadeira. Tem um jeito de fazer filmes que é só dela e é bonito demais vê-la com 80 anos contando sua vida em primeira pessoa nesse documentário maravilhoso que é As praias de Agnès (Les Plages d’Agnès, 2008).
A vida de Agnès foi cheia de andanças. Nasceu na Bélgica em 1928, mudou-se para o litoral francês por conta da guerra e morou em um barco com a mãe e os irmãos. Ela recorda as suas várias aventuras da juventude, o começo de sua vida em Paris, seu trabalho como fotógrafa e as viagens que fez. Vemos seus filhos crescendo e a casa destruída que ela comprou com 20 e poucos anos e que reformou e cuidou ao longo de toda a vida, assim como a conexão que teve com seus filmes, grande parte deles tão andantes quanto ela.
“Fugir, sem dizer para onde, parecia-me indispensável.”
Tem algo de especial em ouvir alguém que já viveu muito contar a própria história. A pessoa que conta é a testemunha viva de um outro mundo, condutora de um passeio para outra época, em que as coisas eram feitas de formas diferentes. As cidades são as mesmas, mas eram outras, com outras formas de viver e de se relacionar. Embora nossa vivência urbana hoje seja distinta, as experiências humanas que nos unem permanecem: temos os problemas de nossa época, as emoções que nos guiam, nossas perdas e nossos golpes de sorte, nossas mudanças, as pessoas que conhecemos. Seguimos transbordando quem somos pelas avenidas e adicionando mais história às cidades que construímos.
Pode ser que você seja uma pessoa que morou em muitas cidades, ou que viaja constantemente, ou ainda só alguém que vai até o mercado toda semana. Mesmo quando nosso movimento é limitado apenas ao que está ao nosso entorno, aquele é o nosso lugar - nossas ruas, nossas calçadas, nossos comércios -, ainda que por um curto período de tempo. A cidade que nos envolve é testemunha de nossas vidas e nós somos testemunhas das mudanças que acontecem nelas.
Coincidentemente, depois de escolher este filme para esta edição, comecei a ler Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai. Me surpreendi ao ver o modo leve e despretensioso com que Zélia conta sua própria vida, também cheia de andanças. Percebi que esta seria uma semana em que eu me veria guiada por essas duas senhorinhas cheias de personalidade.
Algo que me marcou muito nesse passeio duplo com minhas ilustres companhias é a conexão entre a memória e os lugares. Já falamos um pouco disso na semana passada - e a memória parece ser um tema que permanece em mim. Ambas contam suas vidas a partir dos lugares em que viveram e das andanças que fizeram. Costumamos pensar nossas vidas a partir de certos marcos históricos e o lugar onde moramos sempre tem uma importância fundamental mas, por vezes, pensamos neles apenas como pano de fundo, como o cenário onde a verdadeira ação acontece. Aqui, tanto Zélia quanto Agnès trazem o lugar para o centro do palco.
Em Flâneuse, Lauren Elkin dedica um capítulo inteiro especialmente à diretora (falaremos mais dele quando chegarmos em Cleo das 5 às 7) e em uma das páginas, a autora cita uma entrevista dada por Varda em 1961, em que ela diz:
“ ‘Penso que as pessoas são feitas não só dos lugares em que foram criadas, mas dos lugares que amam; penso que os ambientes habitam em nós’ […] ‘Ao entender as pessoas, a gente entende melhor os lugares; ao entender os lugares, a gente entende melhor as pessoas.’” (p. 241)
Se as cidades só existem por conta das inúmeras vidas que a habitam, talvez nós sejamos feitos também dos lugares que nos acolhem.
Gosto da ideia de pensar as pessoas como o conjunto dos lugares que as fazem ou fizeram felizes. Durante todo o filme, Agnès anda para trás para reconstituir seus passos pelas ruas onde passou ao longo da vida. Andar por onde já caminhou para lembrar. Talvez esse seja um tipo diferente de memória, uma que só pode ser apreciada em totalidade à distância. Existe uma beleza em pensar que a matéria da qual somos feitos está em constante transformação e que, ao fim da vida, somos uma combinação perfeita não só de tempo, mas também de espaço.
Assim como Agnès é feita das praias belgas e da rua Daguérre, os lugares em que fomos felizes sempre viverão em nós, mesmo que eles não sejam mais os mesmos ou que não se possa voltar até eles como antes. Tê-los vivido faz de nós quem somos. De quais lugares você é feito?
Talvez eu seja feita de verões na varanda ampla da casa de praia da minha vó, com a rua de lajotas com nome de cidade levando até a areia, em uma mistura com as ruas antigas do centro de Curitiba. Sou feita da casa onde morei por um quarto de século, e daquela em que morei por 3 meses, no coração de uma ilha onde tantas outras histórias aconteceram. Sou feita de casas, de praças, de calçadões à beira-mar e também dos trajetos - de ver minhas paisagens passando velozes do assento de um ônibus, de um trem ou do alto do céu. O tempo dos 29 anos da minha vida dança com os inúmeros espaços que vivem em mim e fazem da experiência essa coisa bonita que se aloja na minha pele, no canto dos olhos e da boca.
Ver Agnès plena andando por sua vida no auge dos seus 80 anos me faz pensar também sobre envelhecer. Essa coisa inevitável da qual fomos ensinadas a ter tanto medo. Uma vida inteira pode ser muito mais bela que apenas alguns anos de uma juventude que nos escapa pelos dedos, não importa o quanto tentamos mantê-la. Envelhecer é o ato de estar vivo no mundo ao longo do tempo, o que por si só já deveria ser imensamente celebrado. Mas viver é algo agridoce, sabemos. Ganhamos e perdemos, temos momentos felizes e momentos difíceis, altos e baixos, nos encontramos e nos perdemos, estamos sempre vulneráveis. Mas que belo é olhar para trás e ver esse longo percurso caminhado, essa coleção imensa de andanças que mudam tanto com o passar do tempo.
“Recordo enquanto viver.”
Depois deste documentário, Agnès Varda ainda viveu mais 11 anos e fez mais 3 filmes (além de alguns curtas) até falecer, em 2019. Agnès não é somente uma diretora de filmes andantes com uma vida que a fez percorrer diversos lugares do mapa. Tem algo de andante na própria alma de Agnès. O que fica dela (e de Zélia, que eu ainda tenho muito para ler) é a leveza. Essa leveza que vem com a certeza de que tudo passa e de que ainda há muitas ruas para caminhar e tesouros para encontrar, não importa a idade. Que a emoção é “algo de incontrolável” e que nossas perdas sempre continuarão conosco, mas a essência mais pulsante da vida também. E que, para encontrar um caminho, talvez tudo que precisamos mesmo é, como disse Agnès, usar a imaginação e se atrever.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
As praias de Agnès está disponível para assistir na Mubi - e com esse link você pode acessar um período de teste gratuito de 1 mês no site :)
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Precioso demais seu texto pra nao compartilhar na nossa newsletter! Obrigada por tanto!
Assisti esse filme em dezembro e me apaixonei. Me sinto também feita dos lugares que passei, deu uma vontade de me mapear depois de te ler. Um beijo