Na semana passada, vimos Agnès Varda falar sobre usar a imaginação e se atrever. Ela se referia à sua entrada profissional no cinema, no qual não tinha nenhuma experiência na época. Se jogou no desconhecido e o que aconteceu depois nós já sabemos - e seus filmes excelentes continuarão aí para contar a história.
É também o atrevimento que guia o nosso passeio de hoje pelas ruas ensolaradas de Nairóbi, no Quênia, em Rafiki (2018, dirigido por Wanuri Kahiu). Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) são duas adolescentes que vivem no mesmo bairro e andam pelas mesmas ruas, mas seus mundos não poderiam ser mais diferentes: enquanto Ziki é a beldade do bairro, sempre junto das amigas ensaiando passos de dança pelas calçadas, Kena é a menina no grupo dos garotos, andando de skate e jogando futebol. Para coroar as oposições, ambas são filhas de políticos locais rivais.
Talvez o atrevimento, antes de virar ação, seja algo que cresce dentro da gente aos poucos. Um primeiro olhar capta a eletricidade e a transforma em pulsação que deixa os batimentos cardíacos acelerados. O corpo entende que existe algo ali antes que o cérebro possa transformar qualquer coisa em palavra. E quando dois corpos olham, basta uma fagulha de oportunidade para que um impulso, por mais besta que seja, se manifeste no mundo concreto.
“Eu tenho visto como você olha para mim.”
É o olhar de Kena, distante do outro lado da rua, que diz a Ziki tudo o que ela precisa saber para cometer seu pequeno ato de rebeldia - aquele que vai abrir o caminho para um contato direto entre duas desconhecidas. Kena e Ziki percebem que são mais parecidas do que imaginavam. Em muitas andanças pelo bairro e no centro da cidade, as meninas trocam sonhos, desejos para o futuro, dão suporte uma à outra e abrem espaço para que a atração física que sentem floresça e se transforme em amor. Em seu íntimo, cada uma desafia o que é esperado para elas - querem mais, querem ir além, se atrevem a sonhar. Juntas, ousam se amar em um lugar em que esse amor não é permitido.
“- Então, universidade?
- Não sei. Queria viajar antes. Quero ver o mundo e ir a todos aqueles lugares onde, provavelmente, nenhum africano foi visto antes, só aparecer lá e dizer: ‘Estou aqui e sou queniana. Sou da África!’.”
Fiquei pensando na quantidade de coisas incríveis que acontecem em nossas vidas porque, de alguma forma, nos atrevemos. Ao se atrever, ousamos ir além do que é seguro, do que já conhecemos, do que os outros esperam de nós. Ousamos desafiar as regras e seguir o coração, o instinto ou o impulso.
É mais fácil lembrar de nossos movimentos mais ousados, que mudam para sempre os rumos que tomamos, mas nem sempre lembramos de nossos pequeníssimos momentos de atrevimento. É aquele dedinho do pé que foi arrastado para fora da zona de conforto, o impulso de entrar em algum lugar, a conversa que resolvemos puxar. Nunca sabemos o que vamos encontrar e nem o quanto uma pequena ousadia cotidiana pode mudar completamente nossas vidas.
Mas, quando novos horizontes se abrem para nós, passamos a deixar quem éramos para trás e seguimos na direção de algo novo que ainda não sabemos bem o que é. Nossas pequenas ousadias começam a se tornar maiores. Kena e Ziki vivem em um universo cheio de regras ditas e não ditas que não estão nem um pouco a seu favor. Não é possível caminhar na rua sem chamar a atenção, sem ser alvo de olhares e fofocas de todos os tipos e também de violência e preconceito. Conforme crescem com a descoberta de si mesmas, os limites de onde vivem se apertam ao seu redor.
Apesar dos vários problemas que as cercam, esse é um filme de finais felizes, como às vezes são também os resultados de vários pequenos atrevimentos que ousamos fazer. Talvez a cidade onde você mora hoje seja resultado de uma decisão louca de colocar tudo na mala e se mudar. Talvez a pessoa que você tem ao seu lado hoje seja o resultado de um comentário qualquer em um balcão de bar, ou da ousadia de arrastar um perfil para o lado direito. Essas palavras que você está lendo agora, inclusive, são resultado direto do atrevimento de dar a cara à tapa e escrever na internet toda semana.
Nunca saberemos o que pode acontecer. E pode ser que dê tudo errado, e aí lá vamos nós juntar nossos pedaços e começar de novo.
Mas… e se der certo?
O próprio filme em si é resultado de puro atrevimento da diretora queniana Wanuri Kahiu. Fez o roteiro, levou para centenas de financiadores por anos até conseguir o dinheiro necessário, filmou o filme inteiro com uma equipe majoritariamente queniana e foi selecionada para o festival de Cannes em 2018, com Rafiki sendo o primeiro filme queniano a fazer parte do evento em seus 71 anos de existência até então (fonte aqui).
Além disso, a homossexualidade é considerada crime no Quênia e o filme foi expressamente proibido em seu próprio país de origem. Wanuri entrou na justiça e conseguiu que o filme fosse para as salas de cinema quenianas por 7 dias, lotando sessões em Nairóbi.
Nesse TED Talk de 2017 (com legendas em português), a diretora fala de seu trabalho como parte de um movimento que chama de AFROBUBBLEGUM, com filmes que são “divertidos, vibrantes e fúteis”. Para identificar se um filme faz parte do movimento, ela propõe uma espécie de teste de Bechdel, com as perguntas: essa obra de ficção tem dois ou mais africanos saudáveis? Esses mesmos africanos têm estabilidade financeira e não necessitam de salvação? Eles estão se divertindo e aproveitando a vida?
Wanuri defende que as produções artísticas engajadas são importantes, mas que esse não pode ser o único tipo de arte produzida no continente africano. É preciso também de uma arte que seja apenas para o benefício da imaginação.
“E a alegria é política, porque imaginem se tivermos imagens de africanos vibrantes, amorosos, prósperos e vivendo uma vida bonita e vibrante. O que pensaríamos de nós mesmos? Será que nos acharíamos merecedores de mais felicidade? Pensaríamos em nossa humanidade compartilhada através de nossa alegria compartilhada? Eu penso nessas coisas quando crio. Penso nas pessoas e lugares que me dão uma alegria desmedida, e trabalho para representá-los. E é por isso que escrevo histórias sobre garotas futuristas que arriscam tudo para salvar plantas ou para correr em camelos ou mesmo só para dançar, para homenagear a alegria, porque meu mundo é, sobretudo, feliz.”
Mais uma vez, imaginar e se atrever.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Você pode assistir Rafiki no Telecine.
Outros passeios
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Adorei a edição e conhecer o AFROBUBBLEGUM!
oi xará, adorei quando vi que essa edição é sobre Rafiki! vi o filme em uma (ou duas, talvez) exibição aqui em Curitiba mesmo, uma delas no Cine Passeio com uma roda de conversa depois. tenho muito forte em mim a lembrança de ver o filme com os olhos bem abertos, impressionada com a história, com as imagens, com as protagonistas. gostei de ler aqui sobre tantos atrevimentos 💜