Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas e trilogias, como é o caso deste passeio especial que começou na semana passada. Faremos nossas andanças junto com Jesse e Céline, protagonistas dos três filmes da Trilogia Before.
E se você acabou de se juntar às nossas andanças, não deixe de ver a primeira edição deste especial: Andanças #30, parte 1/4: Trilogia Before.
Com vinte e poucos anos, há muitas coisas que ainda não sabemos - embora, na maioria das vezes, isso é algo que não admitimos. É um momento muito particular de nossas vidas, no qual temos uma liberdade e uma autonomia maior com nossas escolhas; mas como escolher se ainda não sabemos bem quem somos? Como saber para onde ir se o mundo que surge aos nossos olhos ainda possui tantos mistérios para nós?
As perguntas sobre o mundo se somam às dúvidas e inseguranças que temos sobre nós mesmos. Será que algum dia seremos esses adultos que esperam que sejamos? Será que algum dia conseguirei ser essa pessoa completa que gostaria de ser? Será que algum dia encontrarei o amor? E, se encontrar, será que saberei identificá-lo?
Como fazer isso sem saber o que é o amor?
Nem sempre essas perguntas estão tão latentes no nosso consciente. Vamos vivendo e vendo no que dá. Às vezes não temos com quem falar das coisas que nos angustiam mais profundamente, ou dos nossos pensamentos mais íntimos. Com vinte e poucos anos, as relações em geral ainda são uma coisa em construção. Não gostamos de mostrar nossas falhas, nossas dúvidas. Queremos ser para o outro a versão de nós que vemos refletida em seus olhos. E como buscamos os olhos! É ali que tentamos adivinhar a aprovação, a mutualidade, o reflexo do nosso próprio desejo - uma resposta.
E Jesse e Céline, aqui com vinte e poucos anos em Antes do amanhecer (Before Sunrise, 1995, dirigido por Richard Linklater), também buscam por respostas.
Nosso passeio de hoje começa em um trem. Há uma briga acontecendo e lugares precisam ser trocados. De um lado do corredor estreito, Jesse (Ethan Hawke), um turista norte-americano passando algumas semanas na Europa, com passagem de volta marcada para o dia seguinte. Do outro, Céline (Julie Delpy), uma estudante francesa que foi visitar a avó e está voltando para Paris. No trem, ambos leem. No título do livro de Céline, a morte; no de Jesse, o amor. A finitude e a imensidão. O coração que para e o que bate acelerado. A efemeridade da vida e o eterno-enquanto-dure. De certa forma, é esse o tom das andanças desse dia.
Jesse planeja zanzar por Viena até o horário de seu voo e convida Céline para acompanhá-lo. Nosso passeio então segue pelas ruas antigas da cidade austríaca até que o sol nasça no horizonte.
Jesse e Céline conversam sobre tudo: morte, religião, casamento, feminismo e machismo, arte, relacionamentos, infância, tempo, trabalho, sobre a ambiguidade das coisas. Expõem um ao outro aquilo que ainda não compreendem, apresentam sua busca por respostas e conclusões até então. A cidade se apresenta como testemunha e uma cúmplice de suas andanças, como se o velho e o novo que nela habitam dessem pistas soltas de que os mistérios são assim mesmo. Há muito que não sabemos, sim - e continuaremos sem saber por um bom tempo.
Falar de sexo é tranquilo. A experiência material do corpo, a clareza óbvia do ápice do desejo. Sabemos o que significa, por mais que ainda estejamos entendendo o que gostamos ou não. Mas falar de amor… é complicado, diz Jesse. O amor ainda é um conceito abstrato, cujas características definimos a partir do que vemos lá fora, acontecendo com os outros. Será que foi amor o que foi vivido até aqui? Jesse e Céline estão constantemente analisando as relações mais duradouras de pessoas que conhecem, incluindo os próprios pais. Tem várias opiniões sobre elas. Nós, que já sabemos o que vem em seguida, percebemos coisas que eles ainda não percebem. Mas é assim mesmo. Os anos passam e pagamos com a língua aquilo que achávamos que sabíamos tanto.
A cidade dessa versão de Jesse e Céline de vinte anos reflete a sua condição de jovens que ainda estão tentando se achar no mundo. Trens, bondes, bares escuros, cafés baratos. Nada muito sofisticado. Não há muitos recursos e nem muitos apegos e manias. As roupas e sapatos deles estão gastas, o cabelo meio sujo, todos os pertences em apenas uma mala leve e uma mochila. Não há dinheiro para passar a noite em um hotel. A garrafa de vinho é pedida na parceiragem e as taças roubadas de uma mesa usada. Eles ainda não carregam muito consigo. Sua bagagem de vida é leve e pode ser facilmente colocada em um armário para poderem andar por aí soltos, livres, abertos para tudo que a cidade e aquela outra pessoa tem a oferecer. São pessoas absolutamente novas um para o outro e também para si mesmas - universos inteiros esperando e ansiando para serem explorados nos mínimos detalhes.
Os relacionamentos passados são apenas histórias engraçadas a serem contadas com um pouco de vergonha. Era amor? Eles não sabem. Mas provavelmente não, é a conclusão que chegam. E isso aqui, agora, é amor? Os olhos se buscam o tempo inteiro. Até que o primeiro beijo aconteça, são vacilantes, inseguros, estão sempre se desencontrando. Será que é amor? Eles avançam e recuam com medo. Estão sedentos por encontrar nos olhos do outro alguma resposta, qualquer resposta. Mas quando o gelo se quebra os olhares se acham e permanecem. O conforto e a segurança acha espaço para se instar e crescer.
Mas eles continuam não sabendo exatamente o que está acontecendo. As horas passam e a “morte” daquele momento se aproxima. Não há mais tempo para floreios, para racionalidades calculadas. Não há tempo para não expressar aquilo que realmente se quer. Teria sido amor o que aconteceu nessas horas? Eles não sabem, mas dane-se também. O que quer que o amor seja, talvez seja algo parecido com isso e eles não querem perdê-lo. Combinam de se encontrar novamente na mesma estação 6 meses depois.
Fora das janelas do trem, a cidade amanhece, ainda meio vazia. Os habitantes sonhadores e românticos da noite foram embora e é hora da vida cotidiana acontecer. Na paisagem onde Jesse e Céline viram o sol nascer, trabalhadores levam o lixo da noite para os caminhões coletores. No gramado onde se deitaram, uma senhorinha anda devagar ao lado da garrafa e das taças deixadas para trás. Começo e fim se encontram em um ciclo contínuo que nunca acaba - não há um sem o outro.
A cidade segue com seus novos personagens, cada um carregando suas bagagens e sua própria parcela de dúvidas sobre o mundo, a efemeridade da vida e o amor. Porque, afinal de contas, essas são perguntas que nunca cessam. Estão em todas as esquinas, dia e noite. Em todas as grandes e modernas avenidas e nas ruazinhas antigas de pedestres. Estão na cidade que foi e na que será, porque sempre estaremos nesse lugar.
As perguntas mudam de formato enquanto nós mudamos de opinião inúmeras vezes ao longo da vida. Chegamos a saber alguma coisa em algum momento? De forma ampla, acredito que não. O máximo que podemos saber é aquilo que nos toca, que nos guia pelo caminho e que reverbera dentro de nós. Aquilo que nos faz encarar a vergonha e chamar alguém para caminhar junto conosco. Que nos faz arriscar, apostar, ousar, dar uma chance. É amor? Talvez. Mas de um jeito só nosso, e não do jeito que achávamos que seria, ou que fomos levados a acreditar que deveria ser.
“Acho que, se Deus existe, ele não está em nós. Nem em você, nem em mim, mas no espaço que nos separa. Se há algum tipo de mágica nesse mundo, ela deve estar na tentativa de entender e compartilhar. É quase impossível conseguir isso… mas isso não importa. O importante é tentar.”
Na semana que vem, daremos um salto de 9 anos no futuro. Jesse e Céline agora terão 30 e poucos anos. A bagagem é maior, as dúvidas são outras, mas ao mesmo tempo, permanecem as mesmas. Aquilo que acreditam, também. Será que acharam suas respostas, ou só encontraram ainda mais dúvidas?
Te espero semana que vem com Antes do pôr-do-sol :)
Onde assistir
Você pode assistir Antes do amanhecer na HBO Max.
Links extras
- Além do diretor Richard Linklater, Antes do amanhecer também foi escrito por Kim Krazan. Em uma entrevista para o The New York Times, ela conta que também conheceu muitas pessoas em trens viajando pela Europa e teve horas de conversas fantásticas com pessoas que ela sabia que nunca mais veria de novo.
- Na mesma entrevista, Ethan Hawke falou: “Conhecer Julie [Delpy] foi como conhecer um personagem de um romance, como Anna Karenina ou algo assim. Ela é uma pessoa muito profunda. Eu nunca tinha me sentido tão [norte-]americano e estúpido na minha vida.”
- 16 de junho é a data que Jesse e Céline se conhecem e também é o mesmo dia em que os eventos de Ulysses, de James Joyce, acontecem - o chamado “Bloomsday”. Eu ainda não li Ulysses (está na lista!), mas algumas informações de paralelos entre o filme e o livro podem ser vistas aqui. Também foi o dia em que James Joyce conheceu sua esposa Nora Barnacle.
- Esse instagram faz uma seleção de cenas de filmes em que há pessoas lendo e o Ethan Hawke é um dos queridinhos por lá.
- Se você gosta de The Last of Us, nesse vídeo PH Santos faz uma análise do último episódio (do shopping) e mostra a inspiração de uma das cenas de Ellie e Riley na cena da cabine de discos de Antes do amanhecer. A referência está nos 18min36seg, mas vale a pena ver o vídeo inteiro e também todas as análises dele sobre a série.
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Amo tanto essa trilogia! Que legal que você está escrevendo sobre ela, Luisa <3
Amei rever o primeiro filme agora vou pro segundo pra te acompanhar aqui. E pra mim, sempre foi amor. 💞