Andanças #34: Não sei como ela consegue
O estereótipo irreal da mulher malabarista que corre pela cidade de salto alto
“- Escute, não consigo me lembrar. O que Kate faz mesmo? É algo complicado com dinheiro, não é?
- Na verdade, é bem simples. Ela… é malabarista.”
Se você tem mais de 20 anos hoje, talvez alguma parte, mesmo que muito pequena, da sua visão sobre o mundo e sobre si mesma foi influenciada pelas inúmeras comédias românticas que assistimos ao longo dos anos 90, 2000 e 2010. Algumas eram realmente boas e se tornaram clássicos revistos até hoje. Outras, nem tanto.
É o caso do filme que acompanharemos no nosso passeio de hoje, Não sei como ela consegue (I don’t know how she does it, 2011, dirigido por Douglas McGrath). Mesmo na época, ele passou um pouco batido e talvez você nunca tenha ouvido falar dele. Não é um filme realmente bom, para falar a verdade. Mas nesses últimos dias tenho pensado bastante sobre a quantidade de coisas que eu espero, gostaria e me cobro para fazer todos os dias - sem que, no meu caso, exista uma demanda externa para isso - e ele me veio à mente, recuperado de algum lugar das profundezas da minha memória.
Na trama, Kate (Sarah Jessica Parker), é uma mulher casada com dois filhos pequenos que trabalha no setor de finanças em Boston, nos Estados Unidos. Seu marido também trabalha e a família conta com uma babá que passa o dia com as crianças. O trabalho de Kate exige que ela viaje de tempos em tempos e isso já é uma questão entre eles. As coisas pioram quando ela consegue uma oportunidade de negócio que demanda que ela passe metade da semana em Nova York e viaje ainda mais do que antes.
Enquanto trabalhadora com uma carreira promissora, mãe e dona de casa, Kate é mostrada o tempo todo como uma mulher malabarista: aquela que consegue - pelo menos na maior parte das vezes - dar conta de tudo.
Dá para ir longe nessa discussão, já que a grande maioria das mulheres que também são mães sempre esteve nessa posição de malabarismo, sem ter outra alternativa, desde muito antes das mulheres brancas de classe média adentrarem o mercado de trabalho. A questão é que, mesmo considerando todos os privilégios da elite branca representada aqui, a mulher malabarista ideal da comédia romântica ainda consegue se vestir bem, estar com o skin care em dia e chegar apenas levemente atrasada mesmo morando em cidades grandes extremamente caóticas.
E isso leva ao meu ponto de hoje: o quanto esses filmes distorcem o tempo e o espaço e nos ensinaram que sempre podemos fazer um pouco mais.
Kate passa o tempo todo em aviões, táxis, andando para lá e para cá ou literalmente correndo para chegar nos lugares. O malabarismo do seu dia-a-dia envolve uma boa dose de correria e um punhado de andanças com os colegas de trabalho nos intervalos. Até aí tudo bem: alguma versão dessa correria faz parte das nossas rotinas também. Mas aqui a situação se complica porque Kate é também uma personagem andante. Não a vemos dirigindo em nenhum momento e nem usando o transporte público, apenas táxis em situações de trabalho. De alguma forma, ela consegue levar a filha na escola enquanto segura uma torta e depois correr para o escritório, onde chega apenas um pouco atrasada. Poderíamos pensar que ela mora perto da escola e do trabalho, ok. Ainda assim, tudo isso foi feito com saltos altos e finos pelas ruas de pedras de Boston.
Existe ainda o fato de que, mesmo com tantas viagens e sem conseguir dormir direito, Kate acorda com os cabelos perfeitamente ondulados e os olhos brilhantes, sem nenhum sinal de cansaço ou esgotamento. Ela também está sempre maquiada e muito bem vestida. Quando o filme quer mostrar que ela está meio “fora do lugar”, bagunça minuciosamente alguns fios de cabelo e deixa uma parte da blusa para fora da calça. Kate fala sobre como suas sobrancelhas estão enormes (não estão) e de como ela é praticamente um contraceptivo ambulante.
(é claro que ela não é).
É difícil ver Sarah Jessica Parker nesse papel e não lembrar de Carrie, de Sex and the City (1998 - 2004; 2008; 2010). Carrie é uma personagem andante irreal também. Ela nunca usa o metrô ou o ônibus e também não pega táxis o tempo inteiro, mas ainda assim consegue ir a lugares de Manhattan que ficam consideravelmente longe um dos outros - e tudo isso com saltos de grife. Mas Carrie não tinha horários, nem filhos, nem grandes obrigações e nem muita coisa para carregar além de uma bolsinha pequena. Dentro do cotidiano completamente irreal de sua personagem (isso já é assunto para outro dia), ela podia levar o tempo que fosse para caminhar e se arrumar todos os dias.
“Nós, mães trabalhadoras, sentimos que equilibramos 50 pratos no ar. Mas dê mais 10 pratos para Kate, e ela continuará equilibrando. Fazer um relatório para amanhã? Feito. Costurar asas de fada para o recital de Emily? Ela está fazendo. Visita surpresa dos sogros? Ela se vira, sem misturar vodka com tranquilizante! É incrível. Ela é incrível.”
E, enquanto na tela Sarah Jessica Parker dá conta de tudo em roupas magníficas com apenas alguns pequenos contratempos engraçados e ouve que “você faz o complicado parecer encantador!” do galã de 007 estranhamente compreensivo, do lado de cá, uma legião de mulheres cansadas sente que ainda não está fazendo o suficiente.
Pode parecer bobo ver esse filme hoje e notar essas discrepâncias logo de cara, assim como as frases prontas clichês e absurdas que ele carrega (o diálogo que abre esta edição é trazido no filme sem nenhum toque de ironia ou sarcasmo). Independente da qualidade da comédia romântica, é possível identificar muitos e muitos problemas nas narrativas ali contadas quando as vimos a partir dos olhos do agora. Há muitas versões estereotipadas do que as mulheres supostamente seriam ou deveriam ser. Mas isso é o que compreendemos hoje. Aquelas histórias, por mais limitadas que fossem, se tornavam pontos de referência de estilo, comportamento e modos de viver em uma época que a internet ainda estava só começando a oferecer outros pontos de vista. E nós crescemos com isso. Esses 30 anos do auge da comédia romântica como conhecemos foram a minha vida inteira - e eu fui uma ávida consumidora delas. Era ótimo, não vou negar: tem dias que só um rom-com ruim com um sorvete açucarado são capazes de salvar.
Mas, depois de uma vida inteira vendo essas mulheres complemente irreais brilharem nas telas, me pergunto o quanto eu não passei a exigir de mim, enquanto mulher adulta, padrões também complemente irreais.
Se um filme cuja premissa é “uma mulher que dá conta de tudo” não leva em consideração o tempo, as distâncias, o custo e o trabalho que realmente leva para dar conta de tudo, começamos a nos basear em um padrão que não existe. E a sociedade ao nosso redor exige isso de nós também, como se fosse possível resolver tudo com um passe de mágica.
Vejo isso em mim quando, mesmo sem pressões nem demandas e nem nenhum ambiente de competição, tento dar conta de muito mais do que seria humanamente possível em um dia. Me faz lembrar daquela frase que rolava no Pinterest na mesma época desse filme, de que a Beyoncé tem a mesma quantidade de horas em um dia que você. Sim, mas nós não temos faxineiras, cozinheiras, babás, assistentes, social media, motoristas, jardineiros, cabeleireiros e maquiadores, personal stylist, personal trainer, e por aí vai. O nosso dia não tem a mesma quantidade de horas da Beyoncé. E o de Kate, enquanto representação de uma pessoa com vários privilégios, mas ainda assim comum, também não deveria ter.
As discussões que surgiram na internet depois de 2010 começaram a abrir nossos olhos para algumas coisas que não eram tão óbvias antes. Certas coisas não passam mais. As próprias comédias românticas mudaram, se tornaram mais diversas e abordam temas e realidades que não existiam no mundo nos filmes do mesmo gênero do passado. Alguns filmes mais recentes, como Tully (2018, dirigido por Jason Reitman e protagonizado por Charlize Theron), já desmistificam um pouco mais essa imagem da mulher mãe que dá conta de tudo e que, mesmo com os privilégios, está em pedaços.
Não sei como ela consegue tem ainda vários outros problemas. Esse é só um pequeno recorte dentro do que é possível abordar em apenas uma edição. Mas de uma maneira geral, esse é um assunto que se ramifica e abre um universo de possibilidades para discussão. Certamente não abordei tudo aqui, mas a conversa continua nos comentários e nas edições futuras.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Você pode assistir Não sei como ela consegue na Netflix.
Links extras
- A Mina Le sempre faz vídeos muito interessantes sobre a história da moda e, em seu vídeo mais recente (em inglês), fala sobre a nossa obsessão com sapatos não-práticos. Mina traz um pouco da história do surgimento do salto alto em diferentes culturas (é muito interessante!) e também aborda um pouquinho do absurdo das andanças de Carrie e seus Manolo Blahnik por Manhattan.
- Tully, filme que citei no texto, é uma baita recomendação e você pode assisti-lo na HBO Max.
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Luisaaa fala da vida irreal da Carrie por favor que sei que tem uma penca de amantes/sonhadoras/lunaticas/aspirantes a escritora que nem eu que tem esse estereotipo na cabeça (emoji derretendo do whatsapp) kkkkk
Achei esse texto necessário, Luisa. Compartilhei na minha news. ♥️