Olá! Com algumas coisas mudando na rotina do lado cá, ando sem conseguir enviar a newsletter às sextas ou sábados como era de costume. Vou seguir testando esse envio no início da semana e talvez ele seja o nosso novo dia oficial. Talvez não. Já peço desculpas pela bagunça. Às vezes é difícil se soltar das exigências que colocamos sobre nós mesmos, mas talvez escrever a longo prazo seja assim mesmo: a gente vai fazendo como é possível e o importante é continuar. E continuar em conjunto com vocês é sempre melhor <3
Bem-vindes ao passeio de hoje :)
Eu não sei se existe um outro período em nossas vidas em que nos sentimos tão pequenas quanto na adolescência. A confiança da juventude pode até não nos deixar demonstrar do lado de fora, mas o sentimento está lá, de uma forma ou de outra. Não somos mais crianças, mas também ainda não somos adultas. Já sabemos um tanto sobre a vida, mas não o suficiente para nos guiar pela imensidão do mundo que se estende além das nossas paredes. Andamos como quem pisa em ovos, e é difícil sair ilesa. Estamos nos descobrindo, nos formando. Ainda não sabemos bem quem somos, mas precisamos fazer escolhas que vão definir nosso futuro. Como saber por qual caminho seguir?
No passeio de hoje, vamos até uma parte de Paris que aparece muito pouco nos filmes. Garotas (Bande de filles, 2014, dirigido por Céline Sciamma, a diretora de Retrato de uma jovem em chamas) nos mostra os subúrbios (ou banlieues) de Paris, com seus imensos conjuntos habitacionais construídos após a 2ª Guerra Mundial para resolver a crise de moradia na cidade. Nos conjuntos voltados para a população de baixa renda, muitos de seus habitantes são famílias negras e árabes, que são a maioria dos personagens que vemos no filme. Com o tempo, a crescente falta de recursos e oportunidades para a população fez com que muitos desses conjuntos passassem a apresentar vários problemas sociais, como altas taxas de desemprego e crime.
É em uma dessas regiões que vive Marieme (Karidja Touré), uma garota de 16 anos que vê a sua vida se complicar conforme cresce. Ela precisa cuidar das irmãs enquanto a mãe trabalha como faxineira, lidar com um irmão violento e abusivo, além de descobrir que não poderá mais continuar na escola geral por conta de suas reprovações. Na rua, ela conhece Lady (Assa Sylla), Adiatou (Lindsey Karamoh) e Fily (Mariétou Touré), meninas que estão na mesma situação que a dela, mas que se unem e formam um grupo que domina as ruas da vizinhança. É com elas que Marieme começa a descobrir outros caminhos possíveis, a fazer novas andanças e a se formar como a pessoa que quer ser.
Se pensarmos os caminhos à nossa frente como parte de uma grande cidade de possibilidades, não dá para ignorar que essa cidade metafórica - assim como as nossas, reais, com seus prédios, vizinhanças e calçadas - é completamente desigual. Com qual sexo nascemos e com qual gênero nos identificamos, a cor da nossa pele, nossas condições financeiras, de onde viemos e de onde nossa família veio, com quem sentimos prazer. Essas são só algumas das coisas que já definiram onde e como crescemos. Nesse processo de formação, elas continuam ali, abrindo ou fechando caminhos.
Para que homens poderosos se achem do tamanho de prédios, como Logan Roy de Succession, uma quantidade enorme de pessoas é reduzida todos os dias, com a sociedade ao seu redor as fazendo acreditar que são menores do que realmente são. E crescer com esse constante apequenamento é tarefa complicada. Já nos sentimos pequenas em todas as nossas dúvidas. Como acreditar que somos maiores quando tudo ao redor diminui? A câmera mostra uma Marieme sempre tão pequena em relação ao tamanho daquele espaço construído em concreto e vidro ao seu redor. Ela parece minúscula quando está sozinha e talvez é assim que se sinta também, sem perspectivas de para onde sair enquanto a realidade lhe aperta cada vez mais. Sua expressão muda quando está com as outras meninas: cresce, começa a ter noção do tamanho e da força que realmente tem e que pode ter. Mas mesmo quando as meninas andam em grupo, ainda parecem pequenas em relação à imensidão desses projetos de “grandes homens” do passado e do presente que constituem a cidade que não foi feita pensando nelas.
Enquanto assistia Garotas, ia me lembrando do livro de Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: Histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, publicado em português pela Fósforo em 2022. Nele, a autora investiga como era a vida de tantas meninas negras que vinham para as grandes cidades do norte dos Estados Unidos fugindo da escravidão no sul. Elas estavam nas grandes cidades, “livres”, mas limitadas aos bairros negros, ao racismo da cidade e às condições sociais que bloqueavam para elas qualquer visão de um futuro promissor. A realidade dessas meninas negras francesas não parece estar tão distante assim disso. Assim como aquelas do livro, nossas personagens também só querem a perspectiva de uma vida boa e confortável. Querem ter seus pequenos e grandes prazeres atendidos e viver todo o esplendor que a cidade grande pode oferecer. Querem ir além de sua realidade, por isso lutam - literal e metaforicamente - para serem respeitadas, para que as deixem em paz, para que possam andar como querem e fazer o que quer que lhes dê na telha.
Se o ambiente construído vai delimitando caminhos e tamanhos enquanto crescemos, a organização social dos espaços também impõe seus limites. O mundo é dos poderosos e a rua é dos homens. Mas elas não querem nem saber dessa história.
Com Lady, Adiatou e Fily, Marieme muda de nome, se torna outra - Vic - e conhece uma nova forma de caminhar por aquelas ruas. As meninas se impõem, brigam, dominam, fazem o que querem, são encrenqueiras, como diria Saidiya. Sabem como aquelas ruas funcionam e driblam o perigos que sabem muito bem como identificar. Avançam em todo o esplendor da sua juventude, dançam juntas na calçada. Uma das cenas mais bonitas do filme é quando as meninas juntam o dinheiro que arranjaram e pagam por uma pernoite em um hotel na cidade. Elas só querem aproveitar juntas o conforto de uma cama boa, se maquiarem, vestirem roupas bonitas com as etiquetas no lugar para devolução, comer algumas besteiras gostosas, aproveitar um banho de espuma. Elas não estão nem aí para os homens, poderosos ou não. São crianças que só querem brincar e se divertir, sem ter que carregar o peso do mundo em suas costas. Juntas, elas cantam Rihanna a plenos pulmões e dormem uma sobre as outras sabendo que estão seguras e que, enquanto estiverem ali, tudo ficará bem.
So shine bright, tonight you and I
We're beautiful like diamonds in the sky
Mas crescer é uma coisa complicada, sabemos disso. Mesmo com todas as diferenças de nossas realidades, tem algo sobre o processo de formação no mundo que é comum à todos nós: as angústias, as dúvidas, as escolhas boas e as ruins, as primeiras vezes, as experimentações, as atrações, as descobertas e os erros. Testamos os caminhos que estão ao nosso alcance na busca pela vida que mais queremos, mesmo que ainda não saibamos bem qual é essa vida. Seguimos nossos impulsos, nosso coração. Cada uma delas está nesse processo e precisa enfrentar o que o seu contexto individual lhe traz. O que é mais insuportável? O que oferece mais possibilidades? O que estamos repetindo com nossas escolhas? Por onde queremos ir? Como eu cresço do jeito que quero crescer?
Nem todas nossas escolhas serão ótimas, mas são parte de um processo que trilhamos sozinhos, no fim das contas. O que faz diferença são as companhias que nos dão suporte no caminho, que seguram nossa mão nos momentos mais difíceis, que mantém as portas abertas sempre que quisermos voltar, que nos abraçam em compreensão mesmo quando discordam de nossos passos e que oferecem um lugar seguro no olho do furacão mesmo que nós também discordamos de suas escolhas.
É em outras meninas e mulheres como ela que Vic encontra sua força e se sente segura para avançar. Há entre ela e as mulheres ao seu redor um laço de segurança e suporte que não encontra em nenhum outro lugar. Elas sabem que podem até parecer pequenas nesse mundo de homens, de brancos, de ricos, mas juntas relembram uma para as outras que não são tão pequenas quanto querem que acreditem. Sabem que cada uma que cresce leva todas as outras consigo. E assim elas seguirão criando os caminhos da vida que querem, formado umas às outras e ocupando a cidade - a real e a metafórica - como bem entenderem.
“Lembram quando fomos na Euro Disney? Estávamos perto do castelo. Parei ali e olhei para vocês. Vocês estavam felizes. Estavam lindas. Para mim, aquele foi o momento perfeito. E nunca mais esquecerei dele.”
Ainda há muitas outras coisas que poderíamos falar sobre esse filme além do recorte que eu trouxe aqui e outras interpretações e nuances que a minha perspectiva não alcança. Como sempre, a conversa continua nos comentários.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Garotas está disponível para assistir na Mubi - e com esse link você pode acessar um período de teste gratuito de 1 mês no site :)
Links extras
- Essas fotos dão uma noção maior da dimensão de alguns conjuntos habitacionais nos subúrbios de Paris. É surreal o tamanho desses prédios tão perto uns dos outros, formando blocos cinzas gigantescos.
- Um outro filme que também explora a temática da moradia nos conjuntos habitacionais franceses é Edifício Gagarine (2020, dirigido por Fanny Liatard). A história gira em torno de um condomínio real que foi demolido em 2019 e mostra a vida de um menino adolescente que quer ser astronauta e vê o lugar onde mora se esvaziando aos poucos. Disponível na Globoplay.
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Adorei essa indicação de filme. Adolescência é um período que sempre volto pra tentar me compreender, foi difícil ser pequena, numa cidade pequena... Verei! Beijo
Céline Sciamma é a maior que temos ❤️🔥❤️🔥❤️🔥