Andanças #37: Amor à flor da pele
Escrever para tentar entender aquilo que não sabemos explicar
É irônico que, justo na semana em que decido escrever sobre escrever, travo completamente. Essa edição era para ter saído no dia 25 de abril, mas não teve jeito. Tenho estado em um processo mais intenso de escrita na minha tese e percebendo uma grande dificuldade em sentar para escrever algo diferente depois de já ter passado várias horas escrevendo todos os dias. E não é só o desgaste físico e mental: é difícil articular uma escrita mais informal, emocional e instintiva depois de tanto tempo em cima da escrita acadêmica, cheia de regras. E a verdade é que meu cérebro ainda não está conseguindo entender muito bem como operar nessa nova rotina e nem como equilibrar essas duas escritas nesse momento em que os prazos começam a apertar em um horizonte muito próximo.
Talvez a minha escolha de filme para essa edição também não ajudou muito. Desde que assisti Amor à flor da pele ou In the mood for love (花樣年華, 2000, dirigido por Wong Kar Wai) pela primeira vez alguns anos atrás, ele se tornou imediatamente um dos meus cinco filmes favoritos. E eu descobri, nesses vários dias em que tentei escrever essa edição, que às vezes é muito difícil escrever sobre aquilo que a gente mais gosta. Há muitas coisas em jogo. E esse é um filme que representa particularmente um desafio ainda maior: tem algo nele que me toca muito, mas que eu não sei explicar muito bem o que é. Quando o assisto, sou inundada por uma enxurrada de sentimentos e sensações que ainda não encontraram caminho para se expressar no vocabulário que eu já acumulei na minha vida até agora.
Mas o que une essas formas diferentes de escrita talvez seja a necessidade e a vontade de buscar - por aquilo que não sabemos explicar, por aquilo que ainda não tem nome, pelas respostas que não temos e que queremos tanto encontrar, por uma solução para nossos anseios e questionamentos mais profundos. Talvez seja isso que impulsiona a escrita de um trabalho acadêmico ou a escrita de cada edição dessa newsletter. Tem sido assim nesses últimos 13 dias em que tentei escrever esse texto e é também em um grande processo de busca que estão nossos protagonistas.
“Fiquei curioso para saber como começou. Agora eu sei. Os sentimentos podem aparecer de surpresa.”
No passeio de hoje, vamos até Hong Kong no início dos anos 60. A sra. Chan (Maggie Cheung), secretária em uma agência de viagens, e o sr. Chow (Tony Leung Chiu-wai), um jornalista, são pessoas que alugaram quartos em apartamentos vizinhos, onde moram duas famílias que são bastante próximas. Ambos são casados, mas seus parceiros nunca estão presentes: o marido da sra. Chan é piloto de avião e está sempre viajando e a esposa do sr. Chow está sempre ocupada com o trabalho. Enquanto tudo à sua volta segue um ritmo próprio, nossos protagonistas parecem estar em um constante estado de espera, como se algo que já deveria ter começado em suas vidas ainda não se iniciou - ou algo que já deveria ter acabado ainda está em suspensão. Eles aguardam, mas talvez não saibam exatamente pelo o quê e andam por aí na procura pelas respostas que ainda não possuem.
E é nas andanças noturnas que encontram um lugar confortável, longe dos olhares das tantas pessoas com quem moram e trabalham. É na rua, enquanto andam e esperam, que podem deixar que seus sentimentos e pensamentos corram soltos sem interrupções, julgamentos e questionamentos - quando seu marido vai voltar? Não viu sua esposa hoje? Com frequência, a sra. Chan sai sozinha à noite para ir ao cinema e vai com sua bolsinha de moedas e sua térmica para comprar lámen em uma barraquinha da vizinhança, desviando dos convites de seus locadores para jantar junto com eles. O sr. Chow também faz o mesmo movimento, com seu jornal embaixo do braço. Eventualmente, os dois se cruzam nesses caminhos.
A solidão de um intersecta a do outro nas escadas, nas pequenas ruas mal iluminadas, nos esconderijos que ambos criaram para buscar entender os vazios que eles ainda não sabem exatamente quais são - e nem que esses vazios são tão parecidos com os do outro.
Estamos sempre em uma constante busca por palavras que sejam capazes de exprimir aquilo que ainda não sabemos bem como nomear. Vamos aprendendo com o tempo, é claro, aumentando nosso vocabulário - tristeza, alegria, solidão, confusão, prazer. Mas como decifrar algo que é novo? Como entender aquilo que envolve uma salada de sentimos e vontades confusas? Talvez seja por isso que lemos, assistimos filmes e andamos por aí observando as pessoas vivendo: para conseguir ver nos outros um espelho de nós mesmos e talvez, assim, conseguir nos ver melhor. Há sempre um limite na empreitada individual por respostas: o risco do autoengano está o tempo todo nos cercando.
E se escrever, ler e observar são tarefas solitárias, talvez seja no contato com o outro que surge realmente a possibilidade de vermos além de nós mesmos. Ler e ser lido, ver e ser visto, ouvir e ser ouvido. É nos laços invisíveis que nos unem aos outros que temos a chance de sermos compreendidos e, quem sabe, compreender as nossas próprias questões. Em algum nível, a chave de toda procura está nas trocas que fazemos no caminho.
A sra. Chan e o sr. Chow são ávidos leitores e, conforme se aproximam, descobrem que tem esse interesse em comum. Começam a trocar livros, comentar as histórias seriadas publicadas nos jornais. Eles já sabem, instintivamente, que algo na forma como eles veem o mundo é parecida e a leitura é só uma manifestação material disso. O sr. Chow gostaria de escrever aquelas mesmas histórias de artes marciais um dia. Seus olhos brilham quando descobrem no outro alguém com quem falar sobre aquilo que gostam e ressurgem alegres de seu estado de espera. Será que ler essas histórias os lembrem daquilo que sentem falta? Será que os aproximam de uma resposta?
Mas além de serem pessoas parecidas, o destino se encarrega de dar a eles mais uma coisa em comum: descobrem que seus parceiros os estão traindo juntos, bem embaixo de seus narizes. É andando também que buscam entender como o caso começou. Encenam como seus cônjuges teriam se comportado, o que eles teriam dito, refazem seus passos para entender a razão daquilo tudo. Estabelecem juntos uma conexão e uma troca com o outro que está passando exatamente pela mesma coisa, e veem na conversa, no falar e ouvir, uma possibilidade de tentar entender.
“não quero voltar para casa”
Quanto mais o mundo desmorona ao seu redor, mais eles se encontram, conversam e andam. Os sentimentos são outros agora, transbordam - e é preciso juntar essas novas palavras. O sr. Chow decide que vai escrever suas histórias de artes marciais e que o resto não importa - e convida a sra. Chan para fazê-lo junto com ele. Escrever passa a ser mais um refúgio para os seus vazios, mas agora oficialmente compartilhado. A procura continua, mas talvez agora estejam mais perto, muito mais perto, do que antes. Existe aventura, existe impulso, existe jogar tudo pro ar, o risco, os segredos.
Ao escrever, eles buscam também uma forma de navegar pelos sentimentos que começam a ter um pelo outro e que ainda não compreendem.
“Nos velhos tempos, se alguém tivesse um segredo que não quisesse compartilhar, sabe o que faziam? Subiam em uma montanha, achavam uma árvore, faziam um buraco e sussurravam o segredo dentro do buraco. Depois tapavam com barro. E deixavam o segredo guardado para sempre.
Talvez eu precise escrever muito mais para conseguir transformar em palavras o que esse filme me faz sentir. Como descrever o arrepio que percorre o corpo toda vez que o violino toca, a câmera fica lenta e nós sabemos que aquele é um momento em que as coisas mudam? Como explicar o conforto que as cores quentes e cômodos mal iluminados apinhados de coisas trazem? Como traduzir o quanto todos esses silêncios e olhares são capazes de tirar o fôlego? Como dizer que eu entendo essa sensação de dúvida, de medo de se jogar no desconhecido quando há tanto a perder, de saber que ali tem algo que movimenta a profundidade do nosso ser, mas que não podemos simplesmente ir?
Siempre que te pregunto
Qué cuándo, cómo y dónde
Tú siempre me respondes
Quizás, quizás, quizás
Amor à flor da pele é, pra mim, poesia escrita com sons e imagens. Os movimentos de nossos protagonistas são como coreografias de teatro e andar é quase uma dança. Tem uma melancolia naquelas ruas vazias à noite, nos pequenos detalhes que compõem a sua rotina solitária e nas faltas que ambos sentem, na adrenalina quando veem que estão cada vez mais perto de suas respostas
Talvez depois de escrever - finalmente - esse texto, eu esteja mais perto também. Do que, eu não sei exatamente. Mas essa é uma busca que ainda vai longe.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Amor à flor da pele está disponível para assistir na Mubi - e com esse link você pode acessar um período de teste gratuito de 1 mês no site :)
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o primeiro parágrafo caiu como um abraço aqui! estou na mesma, imersa em outro tipo de escrita
que incrível sua percepção sobre o filme, ainda não tinha visto, com certeza será meu programa do final de semana, obrigada!