Nos bastidores das últimas edições, tem acontecido por aqui uma verdadeira investigação sobre a escrita. Me sinto um pouco estranha no processo que eu mesma elaborei e que funcionou durante tantas edições. Encaixar essa escrita no meio da nova rotina tem sido quase como começar de novo, sentindo todos os bloqueios que dificultam esse processo. Durante a escrita da edição de hoje, percebi de novo aquilo que eu mesma escrevi na edição #34: a auto cobrança em excesso. Esqueço que uma newsletter é, na verdade, uma carta enviada a quem lê, em uma relação de proximidade que se estabelece entre nós, e não precisa ser um ensaio elaborado sobre um tema complexo, pelo menos não toda semana. Sigo nesse processo de entender o que funciona e o que não, tentando me soltar das pressões que coloquei pra mim mesma. No fim das contas, é como se essas Andanças fossem também uma grande pesquisa.
Acho que os filmes - assim como toda arte, talvez - também podem ser uma espécie de investigação por parte de seus criadores. Um olhar para o passado para entender quem foram, de onde vieram, qual caminho percorreram, o que se ganhou e o que se perdeu, ao mesmo tempo que desenvolvem e evoluem a sua linguagem e expressão. É uma pesquisa e um experimento, uma estrada que se pega para entender o que aconteceu e onde se quer chegar. É o que a diretora Chantal Akerman faz em Notícias de casa (News from home, 1976).
“Minha querida filha,
recebi a sua carta e espero que escreva com frequência. Em todo caso, espero que esteja em casa em breve. Espero que esteja se comportando e que já tenha achado um emprego. Acho que você é feliz em Nova York, então ficamos felizes também, mesmo sentindo a sua falta. Quando você voltará? […] Escreva em breve. Estou ansiosa para ouvir sobre o seu trabalho, Nova York, tudo. Um grande abraço de nós três. Sempre pensamos em você.
A sua mãe que te ama.”
Nova York, década de 70. Uma jovem cineasta belga chamada Chantal Akerman, então com 21 anos, atravessou o oceano e se mudou para a cidade com alguns trocados no bolso, arriscando a sorte para ver o que ia rolar no lugar onde tudo parecia acontecer. Ela viveu ali por dois anos, de 1971 a 1973 e Notícias de casa é filmado alguns anos depois, quando ela já havia retornado para a Europa. O que vemos durante todo o filme é uma sequência de filmagens da cidade, enquanto a voz de Chantal lê cartas escritas por sua mãe no período em que morou lá.
Sua mãe está sempre perguntando sobre como as coisas estão, como está o trabalho, se ela recebeu os 20 dólares enviados na carta anterior. Vai lhe atualizando sobre o clima de Bruxelas, a saúde de todos na família, as últimas fofocas e como andam os negócios. Envia roupas e dinheiro como pode e cobra a filha pelo intervalo grande entre as cartas. A mãe se encontra em um dilema dificílimo de resolver: gostaria de ter a filha por perto, mas também quer que ela seja feliz seguindo seus próprios passos.
Nunca ouvimos nenhuma resposta da filha. A leitura de Chantal é fria, rápida, sem entonações de voz. Em diversos momentos, a leitura é sobreposta pelos ruídos cada vez mais altos da cidade. Os intervalos na leitura entre uma carta e outra nos dão alguma ideia sobre o tempo que Chantal demorou para escrever e algumas das cartas da mãe indicam que, quando o fez, ela não contou muita coisa.
“Querida, estou contado que escreva. Não trabalhe demais. Estou lhe mandando muito amor.”
Como alguém que mora já há um certo tempo em uma cidade diferente daquela onde eu cresci, eu entendo Chantal. Existe uma urgência de descobrir quem nós somos, de explorar uma parte de nós que nem sempre é possível de florescer no lugar onde crescemos. É agora ou nunca mais. Nesse processo, nossa atenção se volta muito mais para onde estamos do que para onde viemos. É muita coisa para lidar, muita coisa para processar, ainda mais em uma cidade gigantesca que parece querer te esmagar a todo momento. Eu entendo o espaço entre uma carta e outra, os endereços que mudam sem aviso prévio, a ausência de fotos, as palavras que não dizem tudo. “Você nunca escreve como está indo realmente”. A gente nem sempre o faz mesmo. Talvez porque o “realmente” ainda é uma realidade que estamos tentando entender e não queremos preocupar quem se importa tanto, mas não pode fazer nada.
A Nova York de Chantal é caótica, cinza, com poucas árvores, cheia de vazios e lixo pelas ruas. Ainda que os ladrilhos do metrô permaneçam exatamente os mesmos, em corredores igualmente mal iluminados e quentes, a cidade daquela época era outra. É a Nova York dos filmes de ação e policiais, das gangues de rua, dos vagões de metrô preenchidos de grafiti e das luzes neon colorindo a noite nas imensas avenidas. Na época, não existiam as mil e uma possibilidades de comunicação que temos hoje. Tudo que a mãe de Chantal tem são algumas poucas palavras escritas em um pedaço de papel e o testemunho de alguns conhecidos que veem a filha durante alguma viagem. Sua preocupação é completamente compreensível.
“Estamos muito orgulhosos que esteja se virando. Só tenha cuidado ao sair de noite sozinha. Nova York é perigosa.”
Tenho uma teoria de que quanto mais jovens, mais corajosos somos. Sabemos que precisamos nos encontrar em outro lugar e partimos do ninho para nos jogar no desconhecido, muitas vezes sem nem hesitar olhar para trás. É com o tempo que passa e a idade que chega que vamos criando uma nova perspectiva sobre o que se passou. Ser a filha jovem que parte de mala e cuia em um avião talvez seja mais fácil do que ser aquela que se despede da sua cria ainda tão jovem e inexperiente sobre o mundo. Em parte, a gente sabe disso quando vai. É por isso que contamos certas coisas só depois de um tempo e que nem sempre falamos como realmente estamos ou confessamos aquele pensamento que passa pela cabeça em um dia ruim: que diabos eu vim fazer aqui tão longe.
Mas a gente cresce, dá conta das coisas aos trancos e barrancos e segue em frente. A experiência que acumulamos da tentativa e erro fazem de nós mais cautelosas, mais espertas. Quando menos esperamos, somos nós que estamos tentando passar esse conhecimento para aqueles mais jovens. A gente conhece melhor as armadilhas, os sinais de alerta, a profundidade dos perigos e das furadas possíveis. E, quando isso acontece, entendemos melhor nossas mães.
Talvez a Chantal que fez esse filme também a entenda melhor. Afinal, ela voltou para as mesmas ruas caóticas que percorreu um dia para ler as cartas que demorou para responder. Sua relação com a mãe é complexa. Nessa entrevista, ela conta que sua mãe foi uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas e que nasceu poucos anos depois do fim da guerra, em 1950. Tem muitas coisas que atravessam essa relação, tanto em termos individuais quanto sociais, e talvez os filmes sejam uma forma de ela investigar e entender essas complexidades, esses sentimentos mistos. Chantal ainda fez vários outros filmes sobre sua relação com a mãe e sobre ambientes domésticos de uma forma geral, como o seu aclamado Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles.
“Você diz que não voltará em breve. Eu anseio tanto lhe ver. Nós celebramos o aniversário de Judith no domingo. Todos estavam lá, menos você. Mandarei algumas fotos.”
Nem sempre voltamos e nem sempre voltar é realmente uma opção. Criamos nossas raízes e nossas famílias em outro lugar. Acho que depois de um tempo fora, percebemos o quanto somos parecidas com aqueles que nos criaram. As manias, o jeito de falar, a forma de fazer as coisas, os defeitos e as virtudes - uma grande mistura que não fica tão clara quando a convivência é constante. Partir é bom e muitas vezes necessário, mas, conforme o tempo passa, também é duro ser aquela que não estava - “só faltou você”. Morando longe, a gente passa a vida equilibrando esses corações que se dividem, sabendo que nunca se estará plenamente em um lugar e nem no outro, nutrindo como é possível as casas que temos espalhadas por aí.
Eu vejo esse filme como uma espécie de resposta atrasada, sua carta de amor complicada à essas duas partes de si mesma, esses dois pedaços de seu coração. É uma carta de amor à Nova York, cidade que a recebeu e onde cresceu como cineasta, mas também uma carta de amor à sua mãe, que tão constantemente se preocupava com ela. É como se ela mostrasse à mãe como aquela cidade era imensa e devoradora, como os ruídos ensurdecedores passavam por cima das vozes que vinham de casa, e, ao mesmo tempo, o quão ricas eram aquelas ruas, quão cheio de possibilidades era aquele mundo. É um pedido de desculpas pela ausência, mas também uma amostra de que existia algo de casa naquelas andanças caóticas - e que muita coisa boa nasceu dali.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Você pode assistir Notícias de casa e outros filmes da diretora na Filmicca.
Links extras
- Se você está em Curitiba, em junho teremos o Olhar de Cinema, festival internacional de cinema de Curitiba, que contará com a exibição especial de Jeanne Dielman. Aliás, a vinheta andante do festival ficou o máximo <3
- Outro filme de Chantal que também trata de cartas entre mãe e filha é Letters Home. O filme é uma interpretação dramática das cartas trocadas entre Sylvia Plath e sua mãe, desde o momento em que Sylvia sai de casa pela primeira vez até perto de sua morte. O filme costuma estar no catálogo da Mubi, mas não está disponível atualmente. Se encontrar ele por lá em algum momento, não deixe de assistir!
- Imigração: o silêncio da língua, uma carta linda sobre estar em outro país da Vanessa Guedes na Segredos em órbita
- Sobre São Paulo e Rio de Janeiro, da Luciana Andrade na .flows magazine
- As andanças em família da Mariana P. Bragança pela Europa na
.- A Jillian Hess é uma professora universitária que pesquisa cadernos de anotações e mostra um pouco de suas pesquisas na
. Uma de suas últimas edições foi sobre o caderno usado por Francis Ford Coppola durante as filmagens de O poderoso chefão e está bom demais. Em inglês, mas vale nem que seja só para ver as fotos do livro cheio de anotações.Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
Sempre bom ler outras escritoras repensando o processo de escrita 💖
E obrigada pela e recomendação!
Me senti abraçada por essa edição, já morei longe da minha mãe algumas vezes... Sentindo sentimentos. Um texto pra guardar. Adorei ter te conhecido pessoalmente 💐