Eu não conhecia nada sobre The Last of Us (2023, criado por Craig Mazin e Neil Druckmann) quando a série foi lançada, no início desse ano. Já havia ouvido falar sobre o jogo do qual a série é adaptada, mas não fazia ideia sobre o assunto. Quando eu vi que tinha algo sobre um mundo pós-apocalíptico, com uma infecção por fungos e uma vibe meio zumbi prometendo uma história cheia de ação e obstáculos a serem superados, não me empolguei muito. Deixei passar. Mas, depois de algumas semanas, parecia que a minha perspectiva inicial de alguém completamente ignorante sobre o que essa história realmente era podia estar equivocada - e estava.
Eu não podia estar mais equivocada.
Nosso passeio de hoje faz uma grande andança por um Estados Unidos devastado. Aqui acompanhamos Joel (Pedro Pascal), um dos sobreviventes dessa pandemia que hoje mora em uma zona de quarentena em Boston. Ali, o seu caminho se cruza com o de Ellie (Bella Ramsey), uma menina órfã de 14 anos que já nasceu nesse mundo destruído. De alguma forma que ninguém sabe dizer como, Ellie parece ser imune à infecção. Por conta de uma série de circunstâncias do acaso, Joel fica encarregado de levar Ellie até o oeste do país, onde um grupo da resistência está trabalhando em uma vacina.
A infecção pelo cordyceps - a espécie do fungo que sofreu a mutação - transforma aqueles infectados em uma espécie de zumbi: as pessoas não estão mais vivas, mas se movimentam sinistramente conforme o fungo toma conta de suas funções motoras. A infecção é transmitida via mordida e, em questão de horas, o fungo toma conta de seu novo hospedeiro. Quando a pandemia começou a se espalhar, em 2003, tudo vira um caos completo em muito pouco tempo. Nos vinte anos que seguem, pouco se conseguiu avançar em termos de descobrir uma solução para o problema: as pessoas tiveram que se adaptar e se limitar a somente encontrar formas de sobreviver. Conforme Joel e Ellie percorrem o país, vamos descobrindo como cada grupo fez isso.
As andanças de nossos protagonistas são longas, já que os recursos de deslocamento são escassos e os obstáculos os obrigam a fazer caminhos muito maiores do que precisariam em condições normais. Eles andam, andam muito. Nessa andança, conversam, se conhecem, fazem perguntas. Se abrem um para o outro à conta-gotas, com a desconfiança e o fechamento que virou regra nesse mundo em pedaços. Por onde passam, a série faz questão de nos mostrar bem como as cidades e toda a infraestrutura urbana ficou depois que as infecções começaram a acontecer. Grandes cidades foram bombardeadas em tentativas desesperadas de evitar que a infecção se espalhasse e as ruas foram destruídas de todas as formas possíveis durante o auge da contaminação. Lugares que antes eram lotados de pessoas vivendo suas vidas agora ficam desertos, sem propósito nessa nova configuração das coisas. Mesmo dentro das zonas de quarentena, a rua não é mais um lugar para ficar vagando à toa. Flanar é verbo luxuoso que não ocupa mais o vocabulário de ninguém.
Assistir os caminhos de Joel e Ellie me fez pensar sobre a minha própria experiência em estar no meio de uma cidade grande quando nós mesmos passávamos por uma pandemia. De um dia para o outro, as ruas ficaram completamente vazias. Todas as lojas fecharam as portas, algumas para sempre, e as placas de “Aluga-se” pintavam o horizonte de prédios que víamos da janela. Distâncias que antes eram tranquilas passaram a se tornar longas demais. Sem carro, andávamos para tudo que éramos obrigadas a fazer, mas era uma sensação estranha estar do lado de fora. As ruas pareciam mais hostis do que nunca daquele jeito e estar com os pés no meio da cidade me fazia sentir exposta, vulnerável. Eu passei a andar muito rápido quando estava na rua e nem percebi que continuei andando nesse estado de ansiedade constante por muito tempo depois disso.
O andar de Ellie e Joel nunca é tranquilo. Isso é uma verdade principalmente para Joel, que já viveu um tanto desse mundo lá fora. Eles vivem em constante estado de alerta. Não há momento de relaxamento, de sentimento de segurança. Conforme nossos protagonistas avançam em sua viagem, percebemos que os fungos e os infectados são, em certa medida, o menor dos problemas. Os infectados podem estar escondidos e os surpreenderem mas, até certo ponto, são bastante previsíveis. São os outros o verdadeiro terror dessa história. Assim como Joel e Ellie também podem ser o terror de quem encontram pelo caminho.
Nós encerramos a edição #35, sobre Succession, com a pergunta: o que fica depois que a gente vai? Qual é o legado que deixamos para trás? Ruínas de um império que antes reluziu dourado nas coberturas de prédios imensos e poderosos? Toda a energia de uma influência e poder sem tamanho que agora não tem para onde ir? Isso é algo que os personagens daquela série ainda estão tentando descobrir.
Mas talvez a pergunta que caiba aqui é: o que vai depois que a gente fica? O que nós perdemos, o que saiu de nós, que camada de inocência ou de humanidade ou de propósito se vai depois que o nosso mundo, seja ele qual for, se desmancha ao nosso redor e a gente permanece?
As estruturas que nos cercam nunca são somente sobre tijolos e concreto. Algo muito mais profundo ruiu junto com todos aqueles prédios. A cidade é uma metáfora. Ainda que diversas coisas materiais que tanto importam em Succession - e, consequentemente, no nosso mundo - percam o valor aqui, The Last of Us é também sobre poder. Sobre como o poder pode corromper e o tamanho do estrago que ele pode causar quando nas mãos de pessoas horríveis. Sobre esse governo que toma a frente da situação e faz o que bem entende porque está todo mundo preocupado demais com a própria sobrevivência para inspecionar alguma coisa. Sobre essas pessoas que já foram machucadas demais e agora tomam o lugar de seus carrascos. Sobre homens medíocres e repugnantes que veem na situação de fragilidade de sua comunidade um oportunidade de se tornarem líderes.
Eu poderia estar falando de The Last of Us, de Succession ou da realidade. A ficção pode até estar coberta pelo cenário apocalíptico e por famílias fictícias, mas as coisas estão mais próximas de nós do que a gente imagina. E talvez por isso a gente se envolva tanto com ela. Torcemos, ficamos impactados, atônitos, sem chão. Choramos junto - e deu para chorar um bom tanto com The Last of Us.
Mas The Last of Us também nos mostra que nem tudo que vai depois que a gente fica são necessariamente perdas ruins. Talvez depois de passar por tudo isso, deixamos ir estereótipos e preconceitos que carregávamos conosco quando vemos a ajuda e o companheirismo vir de onde menos esperávamos. O amor também, como nos mostram Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett). Talvez deixemos para trás aquilo que pensávamos erroneamente ser essencial, aquela organização de vida pautada em coisas que nunca imaginamos que poderiam realmente ser modificadas. A comuna que Joel e Ellie encontram no meio da floresta nos mostra isso também. Mesmo em meio a esse mundo apocalíptico, as pessoas encontraram formas de viver bem e, juntas, se protegerem como era possível.
Eu sinto que só agora consigo andar na rua com mais calma. Durante os últimos anos, mesmo com o fim do lockdown e várias doses de vacina, eu ainda andava correndo. Chegava suada em todos os lugares que ia, ofegante. Andava ansiosa, sem respirar direito, altamente cautelosa por algo que eu não sabia dizer o que era. Tinha crises de ansiedade cada vez que ia a um lugar novo, principalmente se esse lugar estivesse cheio de gente. Me acostumei a escolher as poltronas do corredor, porque dali eu conseguia sair mais rápido e com mais facilidade para qualquer lugar. Acho que só agora eu consigo compreender um pouco do que tudo que aconteceu me afetou emocionalmente, e sei que esse ainda é um processo longo. Cada um de nós atravessou um caminho complexo nesses últimos anos e talvez ainda leve muito tempo para a gente se recuperar.
Um passo de cada vez.
Aqui eu estou falando sobre andar, mas também do estado emocional que todas essas coisas deixaram em nós. Assim como The Last of Us até pode ser sobre andar por um propósito e vencer os obstáculos cheios de ação do caminho, mas é muito mais sobre o impacto dos acontecimentos em nós do que qualquer outra coisa. É sobre o que ficou e sobre o que foi de nós. Sobre os caminhos horríveis que podem surgir do caos, mas os bonitos também. É sobre poder, sim, mas também sobre o amor que floresce nos lugares mais improváveis, assim como a imensidão de plantas que cresce devagar nas ruínas do que um dia foi uma cidade acelerada.
E sobre como esse amor pode não ser tudo e muito menos o suficiente para sobreviver, mas que, sem ele, é muito mais difícil continuar.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
The Last of Us está disponível na HBO Max.
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adorei os paralelos entre succession e the last of us, de como as duas séries tratam o tema das cidades como simulacros. suuuuper interessante! da mesma forma, podemos pensar em paralelos quanto as caminhadas intermináveis em ambas - mas com sentidos e objetivos completamente diferentes. são duas séries sobre jornadas, afinal. beijos =)
Adorei sua reflexão. Eu fiquei exausta com as andanças intermináveis em “the last of us” e pensei bastante nelas. E não tinha pensado que sobre o perigo ser os outros. Bingo.