Se, assim como eu, você também foi uma adolescente que se debruçava horas sobre revistas femininas, comédias românticas, séries adolescentes e, mais tarde nos anos 2000, inúmeros blogs de moda, Tumblr e Lookbook (lembra dele?), talvez você entenda o que eu digo quando falo do sonho da cidade grande. Pode até ser que, diferente de mim, você realmente estivesse em uma cidade grande, como São Paulo ou Rio de Janeiro, mas o sonho não se tratava simplesmente de morar em uma cidade grande.
Vou chamar aqui de sonho, porque essa é uma fantasia com um recorte bem específico: a de viver uma vida glamurosa na cidade grande.
E a fantasia da vida glamurosa na metrópole envolvia alguns elementos base. Se a gente pensar em termos mais analíticos, era uma fantasia que representava e visava as mulheres brancas e heterossexuais de classe média, com corpos bastante dentro do padrão e uma condição de vida que permitia o sonho, ainda que não necessariamente envolvesse a realização dele. Se a gente dissecar a fantasia, geralmente ela era composta dessa mulher jovem descobrindo a cidade grande, com uma vida financeira não tão bem resolvida, mas acesso - de alguma forma - a roupas caras e bonitas, lugares badalados e um apartamento legal. Como essa mulher não era uma herdeira (ter acesso a tudo previamente tiraria o charme da história nesse caso), a fantasia normalmente envolve um emprego que a aproximava de todas essas coisas - revistas de moda, principalmente. Não sabemos exatamente quanto ela ganha, quanto gasta com suas despesas básicas e com a manutenção desse estilo de vida, porque essas são informações irrelevantes nessa fantasia. As coisas também tendem a acontecer para ela: esbarra nas pessoas certas que aumentam o seu acesso, conhece mais de um cara muito legal (e rico) e eles disputam o amor dela, as coincidências a colocam no lugar certo na hora certa e ela com certeza tem um grupo de amigas leais e tão cool quanto ela.
Muitas protagonistas de comédias românticas dos anos 90 e 2000 exalavam essa fantasia pelas ruas de suas grandes metrópoles, mas talvez nenhuma delas more com tanta força no nosso imaginário quanto Carrie Bradshaw.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas agitadas da Manhattan dos anos 90 de Sex and the City (1998-2004, criada por Darren Star). Não vou me prolongar nas descrições porque você provavelmente sabe do que a série trata, mesmo que nunca a tenha assistido. Aqui acompanhamos Carrie (Sarah Jessica Parker), Samantha (Kim Cattrall), Miranda (Cynthia Nixon) e Charlotte (Kristin Davis), quatro amigas solteiras na faixa dos 30/40 anos que moram sozinhas, são relativamente bem sucedidas, independentes e estão o tempo todo em andanças pela cidade experimentando a vida, o amor, a amizade, o trabalho e, principalmente, o sexo. Em cada episódio, elas se encontram em algum café, bar ou restaurante para conversar e são nessas mesas que a maior parte das reflexões e debates que elas fazem sobre esses assuntos acontecem. Essas mulheres já tem o seu ideal de vida glamurosa minimamente estabelecido. O que importa aqui é como elas navegam por essa cidade e como experimentam o que ela tem a oferecer.
Cada uma das personagens tem as suas próprias histórias se desenvolvendo, mas é Carrie que acompanhamos mais de perto. Ela é uma escritora e tem uma coluna com o mesmo nome da série, onde fala sobre o sexo e a cidade a partir de uma perspectiva pessoal e do que ela observa com as amigas. Cada episódio gira mais ou menos em torno de uma coluna, que tem um tema central, com Carrie nos narrando um pouco do que está escrevendo. A série foi um sucesso absoluto e, depois do seu fim, ainda foram feitos dois filmes dando sequência à história, ambos dirigidos por Michael Patrick King: Sex and the City: O Filme (2008) e Sex and the City 2 (2010). Também foi feita uma série que conta a história de Carrie adolescente (interpretada por AnnaSophia Robb), The Carrie Diaries (2013-2014), e, mais recentemente, um spin-off da série original chamado And just like that… (2021-presente), que teve a estreia de sua segunda temporada neste último mês. Tanto Sex and the City quanto The Carrie Diaries são baseados em livros de mesmo nome da escritora Candace Bushnell.
Para quem teve esse sonho adolescente da cidade grande, é difícil por os pés em uma dessas cidades e não pensar em Carrie de alguma forma. Muito mais do que as outras, ela acabou se tornando a materialização, em uma única personagem, de todas as nossas fantasias do que significava ser uma mulher jovem morando em uma metrópole. Isso porque ela engloba, ao mesmo tempo, o glamour e essa coisa de ainda não estar muito bem resolvida, o closet cheio e o fogão subutilizado, o dinheiro que é um tanto mas não o suficiente, as vantagens da cidade e alguns de seus contras. Aquela coisa de ser bem resolvida consigo mesma, mas também estar meio perdida, de se vestir muito bem mas ser meio desastrada. De não saber se casa ou se compra uma bicicleta.
“Eu gastei 40.000 dólares em sapatos e agora eu não tenho onde morar?”
Carrie foi, talvez, um espelho dessa geração de mulheres brancas de classe média que vivia na cidade grande uma vida muito diferente daquela que, talvez, suas mães levaram com a mesma idade. Por sua vez, a personagem também exerceu influência de volta, apresentando um estilo de vida cujos elementos se tornaram referências que permanecem até hoje. A fachada da casa de Carrie no Village continua um agitado ponto turístico, assim como a Magnolia Bakery, onde elas iam comer cupcakes. Talvez eu nunca soubesse o que é um Manolo Blahnik se não fosse a série e é difícil ler Cosmopolitan em um cardápio sem pensar nas amigas fofocando em algum balcão de bar concorridíssimo de Manhattan. Para as gerações que viram a série enquanto adolescentes ou jovens adultos antes da era do Instagram, é em Carrie que pensamos quando romantizamos a vida na cidade grande.
E isso acontece porque Carrie é essa personagem impossível. Se a gente parar para pensar com a perspectiva de hoje, todas as outras amigas são muito mais realistas e, por esse motivo, mais relacionáveis quando a gente vê a série agora. Financeiramente falando, o contexto delas é coerente: Charlotte já parece fazer parte da elite tradicional nova iorquina e suas relações sociais estão nesse grupo; Miranda é uma advogada formada em Harvard que trabalha em um escritório de advocacia; Samantha é uma self-made woman proprietária de sua própria empresa e toda sua personalidade decidida mostra que ela sabe muito bem se virar e prosperar. Enquanto isso, Carrie é essa pessoa que a gente não sabe bem como paga suas contas e compra sapatos de grife só com uma coluna semanal. Esse elemento do irreal, do conto de fadas, da fantasia de não saber bem como acontece, apenas que tudo dá certo no final é o que sustenta o sonho - e, sem ele, Carrie não para em pé como personagem.
Mas essa irrealidade é um problema? Acho que não. Às vezes a gente só quer fugir do caos cotidiano mesmo e o sucesso de Emily em Paris (2020-presente) está aí para mostrar isso - uma série que, inclusive, é do mesmo criador de Sex and the City e que atualiza o sonho da vida glamurosa na cidade grande, mas cuja irrealidade não passou sem críticas nos nossos tempos. Acho que o que acontece mais é um cansaço. Carrie sempre foi e continua sendo uma personagem impossível, assim como o sonho do glamour da cidade grande nesses termos é, em certa medida, impossível também. O que falta para Carrie é o que a gente sabe que acontece na vida real: conflitos. Conflitos de todo tipo mesmo, dos pequenos até aqueles que puxam o nosso tapete e nos deixam completamente sem chão, tendo que reavaliar nossa existência.
Pode ser que, ao se mudar, você teve que morar com várias pessoas e muitos conflitos vieram daí. Pode ser que aqueles empregos que pareciam glamurosos eram altamente abusivos e/ou pagavam muito mal. Pode ser que você não tenha conseguido se encaixar tão bem como esperava no ritmo acelerado da cidade grande ou não tenha conseguido fazer muitos amigos por um longo tempo. Pode ser que algo maior totalmente fora do seu controle te obrigou a voltar, ou pode ser que a cidade tenha sido dura com você. Pode ser que faltou dinheiro, ou saúde, ou emprego. A realidade dissolve o nosso sonho adolescente e apresenta a cidade como ela realmente é, cheia de altos e baixos e possibilidades, mas também muitos problemas. Pode ser que depois disso a gente perceba que não é para nós e está tudo bem. Pode ser que a gente decida permanecer, mas seguimos com uma visão mais real do que significa estar ali, com todos os custos - financeiros ou não - que isso envolve.
É como se Carrie nunca aprendesse, nunca tivesse que enfrentar reais consequências pelos seus atos. E, quando olhamos para trás hoje, vemos que ela é uma das personagens mais problemáticas em vários sentidos. Por mais que a nova série tenha adicionado esses elementos de conflito com a morte de Big e a questão do envelhecimento, eles não são o suficiente. Carrie continua lá sem precisar se preocupar com trabalho e dinheiro (agora ela é rica, mas mesmo assim deve existir uma boa dose de burocracia para administrar tudo isso) e esbarrando em homens bonitos, simpáticos e estranhamente legais e compreensivos. O conflito de Charlotte com as filhas é muito mais interessante e, Miranda, se fosse melhor escrita, teria uma história muito rica também com a descoberta da homossexualidade aos 50. Samantha a gente nem sabe onde está, mas ela com certeza não está nos decepcionando. As novas personagens Lisa (Nicole Ari Parker), Seema (Sarita Choudhury) e Nya (Karen Pittman), também trazem ótimas perspectivas dentro daquele contexto, mesmo que não saibamos muito sobre o seu passado.
Acho que o cansaço acontece porque, em certa medida, a gente já passou pela criação do nosso próprio sonho da cidade grande e, talvez, a desconstrução desse mesmo sonho. Talvez seja também um reflexo do mundo que nós millenials encontramos quando crescemos e nos mudamos para essas cidades. A gente já vê um infinito de recortes irreais da realidade e da cidade nas redes sociais o tempo inteiro. Morar em uma cidade grande é caro, o neoliberalismo está aí fazendo a gente trabalhar durante todo o tempo que temos, é difícil manter relações significativas e a nossa saúde física e mental está em frangalhos. A gente já sabe que ser escritora não tem tanto glamour assim, que manter um apartamento bem localizado na cidade é puxado, e que manter um certo estilo de vida seca as nossas contas bancárias.
Quando penso em um processo de formação dentro desse sonho da cidade grande, acho que o que mais se aproxima dos meus sentimentos é Frances Ha (2012), sobre o qual já falamos aqui ou ainda Lady Bird (2017), de Greta Gerwig. Talvez Frances também foi alguém que cresceu com o sonho da vida glamurosa na cidade grande, afinal ela é uma millenial como muitas de nós. Mas quando a decisão de sua amiga abala o seu mundo, ela percebe que precisa ver as coisas de uma forma diferente e se desapegar das fantasias que tinha construído para si mesma e viver a realidade como é, com as possibilidades que estão ali na sua mão. É a partir dessa revisão de seus ideais que Frances cresce para se tornar uma versão melhor de si mesma - e nós também.
Talvez o Instagram e o Tiktok tenham ocupado esse lugar de manter a fantasia viva e atulizada para os anos 2020. É como se o que a gente vê lá reproduzisse um looping eterno de uma versão de Carrie, onde tudo dá certo o tempo todo e onde os conflitos só dão mais charme à história e, de alguma maneira, as pessoas sempre tem dinheiro para fazer e comprar tudo. E a cidade capitalista, de certa forma, se adapta a isso com a gentrificação absurda na moradia e também nos serviços. O quão caro a gente está pagando para manter (e mostrar) a fantasia da vida glamurosa que, muitas vezes, não existe de verdade? O que a gente, como consumidor, anda destruindo para alimentar o sonho? Se a gente não olhar para a cidade (e para a vida) como ela é, a gente não sai do lugar, fica presa em um consumismo sem sentido e nem ajuda nossas cidades grandes a melhorarem, a serem um bom lugar para todos.
Sex and the City é uma série que foi muito inovadora no seu tempo, não só nos temas que abordava - muitos ainda super tabus na época -, mas também por levar as câmeras para a rua e mostrar nossas protagonistas andando pela cidade real e caótica ao seu redor. Mas ela também envelheceu mal em vários aspectos e está tentando avidamente se redimir em seu spin-off, principalmente com relação à representatividade. Talvez a gente possa, do lado de cá, repensar também as estruturas que construíram nossas fantasias no passado para seguir em frente melhor. Tem muitas outras coisas que dá para falar sobre a série e quem sabe no futuro a gente traga mais um pouco dela. Até lá, a conversa continua nos comentários.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
A série Sex and the City e seus dois filmes estão disponíveis para assistir na HBO Max. Já a série The Carrie Diaries era transmitida pela antiga CW e não está disponível em nenhum streaming no momento.
Links extras
- Já falamos um pouquinho sobre Carrie e o estereótipo irreal da mulher que corre pela cidade em saltos altos em uma edição de alguns meses atrás, que trouxe outro filme com Sarah Jessica Parker como protagonista, Não sei como ela consegue.
- Nesse vídeo (em inglês) da Mina Le, ela investiga mais o nosso sonho millenial de ser uma editora de revista de moda e aborda alguns dos tópicos que eu trouxe aqui também. É muito bom!
- O canal do Youtube The Take (em inglês) traz vários vídeos analisando diversos aspectos de Sex and the City, desde os positivos e que fizeram da série um ícone de uma época, até os mais problemáticos e estranhos. Recomendo Se Samantha fosse a estrela, A traição do final de Sex and the City e O que Sex and the City fez errado.
- Agradecimentos especiais a
do (uma newsletter ótima para você conhecer), que levantou a bola do tema da vida irreal de Carrie nos comentários da edição #34; e também à minha irmã Renata, com quem eu tive uma longa conversa essa semana sobre tudo isso antes de escrever essa edição e que contribuiu bastante para as reflexões de hoje.Outros passeios
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meudeus O LOOKBOOK!!!
li o livro sex and the city depois de ver toda a série e admito que só tive mais preguiça da Carrie.acho que se tivesse lido o livro antes eu nunca teria visto um episódio rsrs ee nunca consegui sair do ep 1 do spin off :( devo dar mais uma chance?