Andanças #54: Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas
Adolescência, urgências e coisas que não mudam
“- Tinha dias que eu me dizia: obedece, é mais simples.
- Sim, eu digo isso frequentemente. Faz o que te pedem, desaparece, torne-se invisível. Mas, merda, não consigo.”
Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas (Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 a Bruxelles, 1993, dirigido por Chantal Akerman) é uma pérola escondida no universo dos filmes andantes. Ele é um andante clássico: um dia e uma noite na vida de nossa protagonista enquanto ela anda pela cidade e conversa sobre a vida e suas questões com um cara que conhece no caminho. Ele faz parte de uma coleção de nove filmes chamada “Todos os garotos e garotas da sua idade” (Tous les garçons et les filles de leur âge), encomendada pelo canal de televisão francesa Arte nos anos 90. A ideia era que cada um dos diretores focasse na adolescência, incluindo uma cena com uma festa e músicas daquela determinada era, com um toque autobiográfico nas histórias (Fonte). Na época em que esse filme foi feito, Chantal Akerman já era uma diretora bastante conhecida e estava na casa dos 40 anos.
É difícil explicar o que faz esse filme de apenas 1 hora, disponível somente em uma qualidade meio baixa, feito no ano em que eu nasci e retratando um mundo que nem os meus pais viram direito, ser tão atual e conseguir me causar tantas reflexões em pleno 2023.
O ano é 1968, mas o mês é abril, não maio. A cidade é Bruxelas, não Paris. Nossa heroína de hoje é só uma adolescente de 15 anos que um dia decidiu não voltar mais para o Liceu. Ainda não é uma adulta - não está no centro das greves dos estudantes universitários e trabalhadores que parariam e remexeriam as estruturas do país vizinho, marcando a história do século XX. As coisas estão em ebulição por todos os lados perto dali e ela sabe, mas elas ainda não mudaram exatamente no seu cotidiano, na sua vida imediata, nas demandas que aquela sociedade exige dela agora - agora. A urgência é o sentimento que a guia, como um grito que dá voltas na garganta sem ainda conseguir se expressar por completo na materialidade de sua vida.
“- Mas você tem ideia de quando isso vai acontecer?
- Ah, dentro de alguns meses.
- Não sei se vou conseguir esperar até lá.”
Começamos nosso passeio vendo o pai de Michèle (Circé Lethem) a deixando no ponto de ônibus para a escola, ainda antes do sol raiar. Mas os planos de nossa protagonista são outros: ela pega o metrô, rasga o boletim, cansou disso tudo. Lê o jornal, senta em um café e fuma enquanto pensa nos seus próximos passos. Ela não sabe exatamente o que quer fazer, mas sabe o que não quer: a escola e toda essa estrutura que a cerca e que exige uma certa postura dela, uma certa forma de ser uma garota.
Há duas pessoas no dia de Michèle: sua amiga Danielle (Joëlle Marlier), com quem ela se encontra ao longo do dia e Paul (Julien Rassam) um rapaz que conhece no cinema. Paul é de Paris, desertou do exército e agora anda sem rumo tentando se achar em Bruxelas. De certa forma, os dois são parecidos: largaram a instituição que os sufocava e vagam pela cidade sem conseguir dizer exatamente o que querem.
“- Quando explodir, tudo vai ser diferente. Não vamos mais ser obrigados a nos deixar dominar. Nem de se casar, nem de se vestir bem.
- Nem de ir para o exército.”
Apesar das angústias localizadas no tempo e no espaço, tem algo de muito atemporal nas conversas dos dois. Algo que atravessa fronteiras também. Eles falam sobre sofrimento, sobre sexo, sobre esconder os sentimentos, sobre se casar ou não. Se beijam no cinema, roubam discos e livros, filosofam sobre aquilo que aprenderam e que mais os toca, negam profundamente aquilo que veem nos adultos ao seu redor e que não querem para si. Com um certo exagero até - eles ainda vivem nos extremos, ainda não conhecem as infinitas camadas de cinza entre o que se quer e o que é possível que constitui o ser adulto.
Eles são jovens e querem romper com o mundo que receberam de seus pais. Eles só não sabem como. Não estão envolvidos em grandes movimentações, não fazem parte de grandes grupos, ainda não estão inseridos em um contexto que lhes dê suporte para bater de frente em uma causa comum. São só eles e seus sentimentos naquelas ruas antigas. Não fazem mais parte do mundo em que cresceram, mas tão pouco fazem parte de mundo algum ainda. E é aí que mora a angústia.
“- Mas você não é obrigado a se divertir. Você só tem que fingir. Não tem que se divertir de verdade.
- Você faz o quê então?
- Bom, quando a festa decola, você beija o tempo todo, mesmo se não tem vontade. É assim que funciona.”
Quando olho para trás e vejo as escolhas que fiz desde a adolescência, percebo que elas também foram consideravelmente guiadas pelo o que eu não queria. Pode ser que esse tenha sido o seu caso também: fomos traçando nossos passos a partir da rejeição do que estava posto para nós. Tem coisas que fazem parte da geração e do contexto ao qual pertencemos, do mundo que vivenciamos ao longo daqueles anos e tem coisas que também são muito nossas. A gente vai para lá e para cá tentando cravar brechas na realidade, buscando e testando saídas que vemos como possíveis, mas demora um certo tempo para que a gente entenda exatamente o que quer. Construir os próprios passos a partir da afirmação e não apenas da negação.
Mas o quanto aquelas que eram as nossas angústias mais profundas, nossas expectativas mais altas, nossos desejos mais latentes não continuaram e continuam conosco desde então? O quanto a nossa vida de hoje é a manifestação daqueles sentimentos que não sabíamos explicar, dos pequenos gostos que já tínhamos certeza que eram nossos, das negações em que nos apoiamos para trilhar nossas vidas enquanto ainda não sabíamos afirmar quem éramos. O quanto a pessoa que somos hoje é o resultado daquelas primeiras palavras ousadas e dos pequenos atos de rebeldia sem causa ou motivo aparente além de uma necessidade muito íntima de fazer outra coisa, de ser outra coisa.
Tem algumas coisas muito interessantes sobre esse filme e uma delas é que ele busca retratar uma juventude do final dos anos 60, mas é filmado no início dos anos 90. Como um filme essencialmente andante que se passa na rua o tempo todo e sem nenhum grande orçamento a la estúdios de Hollywood com cenários de época, a cidade que vemos na tela é a daquele momento e diversos anacronismos aparecem (e em parte eles são propositais também, eu diria). Recebemos a informação de que se passa nos anos 60, eles falam sobre a guerra do Vietnã, crises por ter que usar saias e a gente se envolve e esquece que na loja de discos onde eles entram estão sendo vendidos CDs. Que as roupas e os penteados das pessoas seguem a linha minimalista dos anos 90 e que os carros são bem mais novos do que aqueles dos filmes da novelle vague daquela época. Confesso que nem me lembro dos carros ou dos transeuntes. Foi só na segunda assistida que reparei nos CDs.
Isso traz um ar ainda mais atemporal para a história. Anos 60, anos 90, final dos anos 2000, hoje. Nós vivemos as angústias e características de nosso tempo, mas a vontade de romper com o que não faz sentido e os sentimentos que vem a partir disso são tão parecidas, que esquecemos da temporalidade do espaço. Tanto faz a coerência temporal, porque a linearidade das coisas aqui é também uma ilusão. Avançamos em muitas coisas e temos outras para ainda avançar. Avançamos e retrocedemos. Não saímos do lugar em tantas outras. O conservadorismo que sufoca Michèle e Paul também nos sufocou quando éramos nós os adolescentes de 15 anos andando por nossas ruas e questionando as regras que supostamente tínhamos que cumprir. E ele continua aí, mais forte do que a gente achava que seria possível. Nada é garantido.
Outro ponto interessante é que, diferente de outros clássicos filmes andantes, a história aqui não é sobre Michèle e Paul: sobre os dois desconhecidos que se encontram por acaso e que se apaixonam perdidamente um pelo outro em poucas horas. Não. Se existe alguém que constitui o dia de Michèle, esse alguém é Danielle. Tudo que nossa protagonista faz é para se aproximar dela, tê-la por perto, conviver com ela, amá-la. É o que guia todas as suas ações ao longo do dia, é o que ela anseia quando chega a festa que vão juntas à noite, é o assunto de suas conversas com Paul e o limite que coloca a ele desde o começo. Talvez ainda leve um tempo maior para que ela se compreenda, no seu processo de formação, como uma mulher lésbica. Mas, por ora, ao longo desse dia, vemos Michèle entendendo aos poucos esse sentimento pela amiga e também a afirmação de que, neste caso, quer algo que não pode ter. It’s a man’s world.
Se entendermos esse como um filme autobiográfico, sabemos um pouquinho do que vem depois: em Notícias de casa (sobre o qual já falamos aqui), uma jovem Chantal deixa Bruxelas para trás e vai sozinha para Nova York sem um tostão no bolso, buscando fazer o que quer onde as coisas estão acontecendo. Vemos as escolhas que vieram depois dos questionamentos e negações, nos primeiros passos que a levariam para o caminho de diretora de cinema renomada que viria logo em seguida.
São muitas coisas para pensar. As urgências, o saber somente o que não se quer, o movimento de quebra das regras que atravessa gerações, aquilo que sufoca e incomoda, a descoberta confusa da própria sexualidade. Minha impressão é que de, não importa o quanto eu tente abraçar essa 1 hora de filme em alguns parágrafos, nunca vou conseguir colocar completamente em palavras tudo que ele me faz pensar ao mesmo tempo e as várias camadas dele que eu mesma ainda não decifrei.
A minha adolescência foi completamente diferente desta que vemos aqui, mas ao mesmo tempo não foi. Exclua os cigarros e adicione as mensagens de texto, e as questões que nos envolveram não são tão diferentes assim - e o quanto elas guiariam nossas vidas dali em diante, também não. Talvez seja assim para todas as gerações, em alguma medida. Talvez seja isso que faça esse filme abrir tantas possibilidades de reflexão até hoje.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Retrato de uma garota do fim dos anos 60 em Bruxelas não está em nenhum streaming, mas você pode assisti-lo (com legendas em português) no Youtube.
Links extras
- O capítulo Girl Talk: Portrait of a Young Girl at the End of the 1960s in Brussels, de Judith Mayne no livro Identity and Memory: The Films of Chantal Akerman é ótimo para pensar mais sobre o filme, sua relação com a nouvelle vague e outros filmes de Chantal, assim como a relação entre as duas mulheres do filme e o processo de se entender lésbica em uma história de formação.
- Esse texto ótimo da
sobre as diferentes gerações na .Outros passeios
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Fiquei curiosa com esse filme, minha última profe de francês adora a Chantal e indicava sempre seus filmes. Adolescência é uma fase muito andante, lembro de passar horas batendo perna no centro da cidade onde morava pra tentar gastar os pensamentos e a energia de ainda não saber direito quem eu era. Concordo que aquelas decisões de sei o que não quero são as que permanecem com a gente... Se entendi direito o que ce quis dizer. Enfim, mais uma méga dica ❤️