O mundo tem hoje cerca de 8,04 bilhões de habitantes. Cidades muito grandes, como Buenos Aires, tem mais de 15 milhões de habitantes. São Paulo, quase 23 milhões. Esses são apenas residentes. Existe ainda todo o imenso número de pessoas que vem e vão todos os dias, que estão nessas cidades de passagem. Tóquio é a cidade mais populosa do mundo, com mais de 37 milhões de habitantes. Em 2003, esse número girava em torno de 35 milhões.
E a pergunta que fica é: com tanta gente por metro quadrado, como é que às vezes a gente pode se sentir tão sozinho em uma cidade como essa?
Nosso passeio de hoje é com Encontros e desencontros (Lost in translation, 2003, dirigido por Sofia Coppola), em que acompanhamos dois turistas estadunidenses de passagem em Tóquio por motivos distintos. Charlotte (Scarlett Johasson), veio acompanhar o marido fotógrafo em um de seus trabalhos. Bob (Bill Murray), um ator famoso e meio decadente, veio gravar um comercial para uma marca de uísque local. Ambos estão hospedados em um mesmo hotel luxuoso cheio de atividades e eventualmente acabam se encontrando.
Cada um deles está ali solitário, mas de maneiras diferentes. O marido de Charlotte está sempre fora ou cercado de pessoas ou cansado demais ou centrado demais em si mesmo. Ela sai, observa, se mistura, liga para pessoas conhecidas, mas todos estão seguindo com suas vidas e ela volta a sobrar no meio da multidão. Bob, por outro lado, está sempre cercado de pessoas: a equipe de trabalho que cuida da sua agenda, os funcionários do hotel que estão sempre o cumprimentando com tratamento vip, os fãs que o reconhecem e querem conversar, os inúmeros fax meio sarcásticos da esposa que chegam na madrugada. Ele não consegue nem fugir de si mesmo: quando as portas do elevador fecham, está ali um espelho com sua imagem o encarando de volta. Quando liga a TV, é o seu filme que está passando. Diferente de Charlotte, que acaba sempre sozinha, Bob está o tempo todo acompanhado - porém, tão sozinho quanto ela.
Na semana passada, viajei de Curitiba até Maceió. Foram horas e mais horas de aeroportos, escalas em cidades diferentes, conexões que não deram certo, engarrafamentos, multidões de passageiros indo e vindo. O filme (e esta edição) sempre estiveram na minha cabeça enquanto eu mesma me via na condição de turista, ainda que dentro do mesmo país, de uma língua que é a mesma e de uma cultura que é semelhante. Não viajei sozinha e eles não estão realmente sozinhos também: tem o companheiro, a equipe, colegas na cidade. No entanto, diferente deles, eu não me senti sozinha em nenhum momento - nem nessa e nem em nenhuma das outras viagens que fiz nesse ano. Mas não foi sempre assim. Fiquei pensando que a solidão não é necessariamente sobre ter ou não pessoas por perto. Não é exatamente sobre o que está fora de nós, mas sobre o que está dentro.
Olhei para o passado, para o presente, para o filme, para a multidão que me cercava nos aeroportos e nas cidades desconhecidas por onde passei na última semana e fiquei pensando que, independente da quantidade de pessoas ao nosso redor, a gente se sente sozinho onde não tem história. Ou melhor, onde a gente não consegue estabelecer uma história em tempo que faça sentido para que possamos nos sentir acolhidos e minimamente em casa. É o que acontece quando vamos sozinhos a um lugar novo e não conseguimos (ou não queremos) nos adaptar. É o caso de Bob.
Mas e quando vamos acompanhados, como Charlotte? Sua história não está somente nela, mas também na outra pessoa que a acompanha. Teoricamente, um poderia dar suporte ao outro nesse lugar desconhecido. Por que a solidão, então?
A gente também se sente sozinho quando vê a história que tínhamos se esvair pelos dedos e nos deixar para trás.
Em Flanêuse, Lauren Elkin fala sobre a sua própria experiência como uma jovem turista estadunidense que vai à Tóquio acompanhando o namorado que está lá à trabalho, de forma muito similar à Charlotte. Ela faz o paralelo de sua experiência com o filme, frisando esse estado de suspensão em que a protagonista se encontra e o conflito que passou a acontecer com o companheiro por a ter convencido de seguir junto para aquela situação. Para Lauren e Charlotte, a solidão não está apenas em caminhar sozinha em meio a uma multidão de desconhecidos sem conseguirem se conectar, mas na solidão dentro do que deveria ser casa, onde quer que estivessem. É uma solidão que vem de dentro, das profundezas, que cria raízes. O ambiente externo se torna um reflexo do que está dentro, seja ele do outro lado do mundo, ou aqui, na mesma língua e nos mesmos costumes que conhecemos tão bem.
“Ficava ressentida com X por se mudar para lá, ficava ressentida com ele por continuar lá, mas quando nos ressentimos demais com o companheiro logo fica impossível continuar juntos. Então, o restante do ressentimento despejava sobre o Japão.”
- Flâneuse, Lauren Elkin, p. 192.
A gente não pensa tão bem assim quando se encontra nessa situação. Quantas vezes eu rejeitei um lugar porque estava desmoronando por dentro? Aquelas pessoas, aquela vida, aquela forma de fazer as coisas, aquela multidão me sufocava, mas não era culpa delas. Não foi uma vez que eu me senti sozinha longe de casa dentro de um relacionamento e isso não aconteceu em um só relacionamento também. Quantas horas eu passei olhando o horizonte pensando no que estava fazendo ali, como Charlotte, como Lauren? Não importava o quão maravilhoso era o lugar, eu queria ir embora. Pegar o primeiro ônibus, o primeiro avião, e sair dali. A história que havia me levado até aquele lugar escorria pelas minhas mãos e adentrava o chão de uma paisagem que eu não queria mais ver. A cada passo, eu tinha um pouco menos. E quanto menos história eu tinha, mais sozinha eu me sentia.
Mesmo Bob está, de certa forma, nesse lugar também. Sua apatia com o entorno, sua frustração com o trabalho… pode ser que tudo venha da mesma raiz de já se sentir, há muito tempo, sozinho em meio às inúmeras pessoas que o acompanham. De a história que carrega ser apenas a lembrança de outros tempos, e não do seu presente.
“Fica mais fácil?”
Um raio… e depois noite! - Efêmera beldade
Cujo olhar me fez renascer tão de súbito,
Só te verei de novo na eternidade?Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!
Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem o sabias!- Trecho de A uma transeunte, de Charles Baudelaire*
Em sua análise do soneto de Baudelaire, Walter Benjamin* diz que esses são versos que “deixam transparecer os estigmas que a existência numa grande cidade inflige no amor”. Segundo ele, o poema dá a entender que a aparição que fascina o citadino só pode ter sido trazia a ele, verdadeiramente, pela multidão e que tão rápido quanto vem, também se vai. Mas existe um nível de reconhecimento para que uma troca de olhares aconteça, mesmo em meio a uma multidão. Existe ver algo de si mesmo naquela outra pessoa, mesmo que a consciência não saiba dizer exatamente o que é. É o lampejo do que é e do que poderia ter sido, tão veloz quanto qualquer uma das coisas que nos cerca em uma grande cidade. É o amor à primeira e à última vista. Amor que vem de súbito e que vai embora sabendo que jamais será encontrado novamente. E esse olhar, esse amor instantâneo, qualquer que seja o tipo de amor, cria história. Naquela multidão, naquela rua desconhecida, vimos algo ou alguém que nos fez sentir alguma coisa e somos preenchidos pelo sentimento. Não importa se nunca falamos com a pessoa, se nunca adentramos o lugar, se nunca vermos de novo o que nos chamou atenção. A história foi criada. Não estamos mais sozinhos.
Depois de um olhar de reconhecimento, Charlotte e Bob se tornam amigos. Juntos, eles conseguem criar uma história, uma conexão com a cidade que não conseguiam estabelecer antes. Correm pela noite de Tóquio, encontram amigos, vão a lugares estranhos, comem comidas diferentes, saem da bolha protetora do hotel, conseguem se envolver com a vida na rua. A história que criaram juntos fez com que vivessem o lugar de outra forma e não se sentissem mais sozinhos como antes. A cidade ganha um sentido que ainda não tinha. Elkin também fala sobre como, apesar das dificuldades e dos problemas no relacionamento, passou a gostar da cidade. Diferente de Charlotte, ela não fez um amigo, mas conseguiu estabelecer uma conexão pessoal com certos lugares. Criou uma história que era só sua. Não estava mais só.
“Aquela última cena do filme, quando Bill Murray cochicha alguma coisa no ouvido dela e o público não escuta, é genial. Seja lá o que há para ‘aprender’ com viagens e andanças, isso não pode ser resumido num filme ou num livro, mas sim sussurrado de uma pessoa para outra, quando elas rompem inesperadamente com a identidade que julgavam ter, as duas sozinhas e juntas numa cidade estranha.”
- Flâneuse, Lauren Elkin, p. 199.
Tenho hoje uma relação meio conflituosa com esse filme. Eu gosto da história, do que ela retrata, me identifico com os sentimentos mistos que nos acometem nessas situações de solidão. Por outro lado, tem alguns aspetos da forma como isso se dá que não envelheceram muito bem e que me incomodam, problemas talvez mais nítidos hoje do que conseguíamos ver um tempo atrás. Existe um certo deboche, superioridade e falta de consideração com a cultura local, principalmente em Bob, que não desce direito. É uma assimetria de poder que não dá para ignorar - a narrativa norte-americana vendo o outro da sua perspectiva e a representando como bem entende. Outro problema que tem ressurgido pela internet com relação ao filme é a diferença de idade entre os protagonistas. Mesmo que a gente desconsidere isso, Scarlett Johansson tinha apenas 17 anos durante as filmagens do filme, que abre com uma cena de nudez sua. São coisas para a gente pensar.
Há uma outra história, de bastidores, que envolve o filme também. Entre 1999 e 2003, a diretora Sofia Coppola era casada com o também diretor Spike Jonze. A história que circula por aí é de que o marido de Charlotte em Encontros e desencontros é baseado no diretor e a relação dos personagens, no fim do relacionamento real. Dez anos depois, Spike Jonze também fez um filme sobre se sentir sozinho no meio da multidão e nas ruínas de um relacionamento. Na semana que vem, na parte 2 dessa edição, veremos essa outra perspectiva da mesma história. Outra forma de estar sozinho na multidão.
Te espero lá :)
Onde assistir
Encontros e desencontros está disponível para assistir no Telecine.
Referências
*A referência de Benjamin é do livro Baudelaire e a modernidade, da editora Autêntica, com tradução de João Barrento, de 2015. O trecho do poema de Baudelaire é o mesmo mencionado no livro, retirado da edição de As flores do mal, com tradução portuguesa de Fernando Pinto do Amaral, em edição de 1992 da editora Assírio & Alvim.
Outros passeios
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Amei o insight! De fato a gente se sente só onde ainda não há histórias.
Só porque me veio à cabeça que uma das melhores experiências da minha vida assim o foi pois tinha pessoas como tu, Luísa, mesmo desconhecida, para que eu não incorresse em solidão. Existia um lar, ainda que abstrato, e isso fez tudo ser mais incrível. Saudades!