Nosso passeio de hoje é o mais recente e o mais distante até agora: vamos à Tóquio pré-pandemia em Roda do destino (Wheel of Fortune and Fantasy, 2021, dirigido por Ryusuke Hamaguchi - o mesmo diretor de Drive my car, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro nesse ano). O filme é composto por 3 curtas (chamados de episódios) com personagens diferentes, que não se relacionam entre si. No entanto, há uma temática em comum em cada uma dessas pequenas histórias: os caminhos, ou rumos, por onde seguimos nossas vidas.
“- Então, talvez eu esteja com raiva do nosso destino.
- Destino?
- Nosso destino não é culpa de ninguém.”
A definição de destino é consideravelmente ampla. Pode ser entendido como um lugar para onde nos dirigimos, uma direção; fatos que estão fora do nosso controle ou a que estamos sujeitos independente de nossa vontade; o futuro, um desfecho ou ainda, algo para o qual estamos destinados. Fortuna, sorte. Tudo isso está contido na mesma palavra e, se pensarmos em nossas vidas, todos esses significados - embora diferentes - também convergem e estão acontecendo juntos, o tempo todo. Fazemos uma escolha e seguimos uma direção, até que algo inesperado acontece e temos um novo desfecho que não esperávamos; uma onda de sorte nos leva diretamente para aquilo que se encaixa para nós e aí novamente fazemos uma escolha. É a roda da vida fazendo o seu trabalho de tecer as linhas do destino, do nosso destino.
A tradução do título para o português acrescentou significado nesse caso. Roda da fortuna e fantasia (como seria o título em tradução literal) dá uma boa noção da ideia central do filme, mas Roda do destino vai direto ao ponto. No tarô, a carta da roda do destino (ou da fortuna, dependendo da tradução) tem relação com o ciclo da vida. Não só o processo de nascer, crescer e morrer, mas também os ciclos que se repetem ao longo de nossa vivência no mundo. A roda da fortuna vem nos dizer que tudo é cíclico: passamos por fases e o que está acima da roda, eventualmente estará abaixo e vice-versa. Este artigo sobre os significados da carta resume bem algumas das ideias centrais que vemos também no filme:
“A Roda da Fortuna nos convida, portanto, a ficarmos abertos às oportunidades que o destino nos oferece, a tirar vantagem da boa sorte e a lidar com marés de azar, de negações ou com os períodos nos quais as coisas não vão bem. Por mais acertadas que sejam nossas atitudes, nem sempre o momento é propício para que possamos atingir aquilo que desejamos. Nem sempre é nossa culpa, nem sempre é nossa responsabilidade. A consciência de fazer o melhor que podemos e de dar o nosso melhor deve imperar em qualquer experiência, tenha ela um desfecho glorioso ou não. Assim, o conceito de que ‘somos responsáveis pelo nosso próprio destino’ ganha um novo sentido e uma outra dimensão.”
Nessas três histórias, acompanhamos três personagens principais em conversas cheias de reflexão e profundidade com um ou dois personagens. Meiko (Kotone Furukawa) é uma modelo que ouve a amiga falar sobre um encontro que teve enquanto as duas voltavam para casa depois de um dia de trabalho. Nao (Katsuki Mori) é uma estudante universitária um pouco mais velha do que seus colegas e é desafiada pelo cara com quem está saindo a seduzir um professor que ele não gosta. Moka (Fusako Urabe) é uma mulher que vai de Tóquio até a sua cidade natal para um reencontro da turma do ensino médio.
O título dos episódios - “Magia (ou algo parecido)”, “Porta escancarada”, “Mais uma vez” - nos remete ao próprio movimento da roda. No topo da roda, o destino é visto como magia, como algo destinado a ser, a coincidência que é forte demais para não ser vista como força maior do universo. Mas, em outra história, o destino aparece como fora do controle, como algo que está além de nós e que nem sempre dá o resultado como gostaríamos: a roda gira e vem para baixo, e, assim como a porta, se escancara na nossa frente sem aviso prévio. Mas o que está abaixo eventualmente sobe e o destino surge como sorte que gera um desfecho e uma oportunidade de olhar mais uma vez para o que ficou para trás, ainda que de outras maneiras não esperadas.
“Não é um problema sério. Mas, às vezes, penso por que estou aqui. Eu poderia ter sido qualquer coisa, mas o tempo voou e eu não percebi.”
Esse mesmo movimento é visto também em cada episódio. Eles tem altos e baixos. Pensamos que estamos vendo um desfecho, um destino, e de repente as coisas mudam - para melhor ou para pior - mas nada é permanente. As personagens fazem o melhor que podem, ponderam suas decisões passadas, sofrem, tentam de novo, imaginam o que poderia ser e fazem suas escolhas. E isso não acontece apenas para as três mulheres principais: os movimentos estão ali para todos os personagens em cada encontro improvável. Quando a roda gira, elas tentam e o rumo que o destina as leva nem sempre era o que esperavam, e não há nenhum culpado nesse caso. Mas às vezes o que encontram é melhor. E o que é melhor nem sempre é um desfecho glorioso de filme hollywoodiano: às vezes é somente uma nova percepção de nós mesmos, a sensação que temos de que nos transformamos depois daquilo - ou então, de que ainda somos nós mesmos apesar de tudo.
Nesses giros da roda, nossas personagens estão sempre na cidade. Entre idas e vindas, a cidade é esse lugar onde o improvável está ali, em cada esquina. É esse universo de possibilidades por metro quadrado. Quais as chances de encontrarmos por acaso alguém do nosso passado na rua em uma cidade enorme? A roda da fortuna vem nos mostrar que essa chance pode ser igualmente nula e certa. Não há limite geográfico para a sorte - e nem para o azar.
É nas ruas também que nossas personagens vão sozinhas para pensar, para manifestar suas emoções, para ter esperança ou para mergulhar em culpa. A cidade possibilita a caminhada solitária onde não é preciso prestar contas a ninguém, onde não precisamos justificar nossos sentimentos. A cidade tudo recebe. Será que é no mar de desconhecidos da calçada que somos a versão mais crua de nós mesmos? Sempre podemos encontrar alguém conhecido nesses giros da roda, é claro. Mas talvez, quanto mais improvável isso parece ser, mais confortáveis nos sentimos para manifestar o que estamos sentindo sem precisar performar um papel para os outros (e isso pode ser bom, ou ruim, dependendo do que você guarda). Talvez seja por isso que podemos sentir uma onda de novidade em nós quando visitamos um lugar desconhecido. Não são só aquelas ruas e pessoas que não conhecemos: é aquela parte de nós que nunca havíamos visto. A cidade é também um lugar para se encontrar.
Para a roda do destino, a única fatalidade é a morte: enquanto estivermos vivos, ela vai girar. O que está ruim não ficará ruim para sempre, e, do mesmo modo, o que é bom não permanecerá imutável para sempre. O dia seguinte sempre vai nascer. Volta e meia coisas que estão fora do nosso controle acontecem e tudo muda para novos destinos. E que bom. São os novos caminhos por onde andaremos, os novos rumos que jamais pensaríamos em seguir. Nem sempre as coisas estão em nossas mãos, não temos tanto controle quanto pensamos que temos. Tudo que podemos fazer é o nosso melhor, ou o que é possível - e deixar que a roda gire e nos leve para onde tivermos que ir.
Até o próximo passeio :)
Roda do destino está disponível gratuitamente no site do Sesc São Paulo até o dia 25/10/22.
Ah, e temos uma novidade! Agora você pode acompanhar a lista de todos os filmes que já passaram por aqui e os próximos que virão nessa lista do Letterboxd (você pode acessar ela mesmo sem uma conta no site, é só clicar!). Ela já tem 113 filmes, acredita?
Chegou na Andanças por esse post? Você também pode gostar de: