“- Então, nos veremos de novo?
- Você gostaria?
- Gostaria muito.”
Nosso passeio de hoje é pelas ruas frias de Helsinki, na Finlândia, com Folhas de outono (Kuolleet Lehdet, 2023, dirigido por Aki Kaurismäki). Aqui, acompanhamos Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen), dois adultos trabalhadores se virando para pagar suas contas. Cada um tem a própria rotina, os próprios pequenos prazeres e transgressões no trabalho e em casa, os próprios altos e baixos na vida solitária que vivem. Um dia, o amigo de Holappa o convence a ir na noite de karaokê em um bar e Ansa também está lá com uma amiga. Um olhar é trocado: aquele olhar poderoso que emerge da multidão e nos deixa sem rumo e sem certeza de mais nada.
Mas esse é um olhar cauteloso também, como se carregasse consigo muito mais do que uma faísca de atração - é quase um lamento. Porque eles sabem. Sabem que um olhar poderoso como esse pode causar uma imensa bagunça. E, sabendo, se afastam dele o mais rápido que podem. Como disse o ator Jussi Vatanen em uma coletiva de imprensa (em uma tradução livre): “Porque pode ser assustador… se apaixonar. Porque essas pessoas não são mais adolescentes ou jovens.” Cada um carrega e sabe o peso da própria bagagem. O receio vem, as dúvidas também. Valeria a pena mexer nessa vida já construída por uma novidade que não se sabe que tipo de sentimentos e experiências vão nos trazer?
Mas como saber sem arriscar?
Eles recuam, mas o destino se encarrega de fazer seus caminhos se cruzarem de novo e de novo. A cidade tem dessas, desses encontros improváveis onde e quando a gente menos espera, como se alguma energia trocada naquele olhar quisesse que aquelas duas pessoas fossem atraídas novamente uma para a outra, não importa o tamanho da multidão e do espaço que as separa. Podemos chamar do que quisermos, mas a gente sabe também. Sabe que algumas coisas estão muito além dos contos de fadas e das comédias românticas: coisas que a gente não sabe como explicar, as coincidências, o lugar certo na hora certa. Elas acontecem fora das telas também.
“- Eu nem sei o seu nome.
- Eu te conto na próxima vez.”
Depois de se esbarrarem por acaso, Ansa e Holappa tem um encontro em um café e vão ao cinema assistir um filme de zumbis. Na saída, percebem que ambos querem um próximo encontro e Ansa dá a Holappa seu telefone em um pedaço de papel. Mas poucos minutos depois, Holappa acaba perdendo o papel sem perceber. Ele a procura, mas também não sabe seu nome. Ela o espera, mas não sabe o que aconteceu. Enquanto isso, continuam lidando com os próprios problemas e a vida vai dando voltas para os dois. Depois de um encontro inesperado e do vislumbre do que poderia ser, voltam a caminhar sozinhos.
No fim das contas, todos nós sabemos o que é ter medo de uma nova possibilidade que parece surgir de repente quando menos esperávamos, seja ela em qual área da vida for. Sabemos o que é querer muito que algo dê certo e ao mesmo tempo não saber muito bem como lidar, nem as palavras certas a se dizer. E se eu falar uma besteira? E se eu acabar mostrando muito rápido quem eu sou e a pessoa se assustar, ir embora? Enquanto isso, a vida vai passando e nos atropelando com todo o caos que acontece dentro e fora de nós, tomando a frente nos pequenos acasos que nos aproximam, mas também nos afastam.
“- Lembra da noite em que você cantou no karaokê? Estavam lá duas… mulheres. Saí com a mais baixinha depois. Quase nos casamos.
- E por que não se casaram?
- Perdi o número dela.
- Por que não procura na lista telefônica?
- Não sei o nome dela.
- Isso é certamente um problema.”
Os olhares de Ansa e Holappa dizem muito - dizem tudo, na verdade. Com o olhar eles investigam o outro e suas reações, tentam adivinhar o que se passa naquela outra pessoa para avaliar quais passos podem dar e para qual direção podem permitir que seus sentimentos avancem. Com o olhar eles esperam, anseiam, tentam, desistem, apostam. Desejam. Desejam profundamente que aquilo dê certo, mesmo que suas poucas palavras um para o outro não deixem isso tão claro. Mas a gente sabe, ah se sabe. Aqui a gente nem precisa de falas longas e complexas - cada pequeníssima ação diz tudo que precisamos saber. E sabemos muito bem o que cada olhar desse significa.
Cada novo encontro ao acaso de Ansa e Holappa traz esse conflito entre querer muito fazer dar certo e, ao mesmo tempo, estar com todas as camadas de proteção levantadas. A gente quer sentir, quer se envolver, mas também quer respeitar os próprios limites, ser fiel aos próprios valores, não deixar que erros passados voltem a ser cometidos. Como disse Jussi na mesma entrevista que citei antes (tradução livre), “e esse era o nosso objetivo: tentar tornar engraçado ou divertido essas duas pessoas que estão sozinhas há muito tempo… como elas encontram forças para dar uma chance ao amor”.
E não é só o outro que aparece e muda tudo. Algumas pessoas vão surgindo no caminho de cada um deles e os ajudando em momentos essenciais. O acaso dos encontros inesperados também une Ansa a uma cachorrinha perdida, a quem ela dá o nome de Alma e que se tornará sua grande companheira nas andanças que faz mais para o final do filme. Não é que eles estivessem exatamente atrás de alguém ou de todas essas pessoas e animal que cruzam seus caminhos, mas tê-los faz toda diferença. Ter um ao outro faz toda diferença. Caminhar junto, e não mais só.
Quando as luzes do cinema acenderam e os créditos começaram a rolar logo após a última cena (linda, por sinal), a primeira coisa que passou na minha cabeça foi: como é bom ter alguém nos esperando. Não importa quem seja - uma relação romântica ou não, uma pessoa ou um animal. E, da mesma forma, como é bom ter alguém por quem esperar. Como é bom caminhar em conjunto.
Guardei o sentimento no coração (e nas minhas anotações) e voltei para casa para aqueles - humana e felinos - que me esperavam.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Folhas de outono entrará no catálogo da Mubi nesta sexta-feira, dia 19 de janeiro. Já coloca na agenda!
Se você está em Curitiba, o filme ainda está em cartaz com duas sessões matinês no Cine Passeio neste sábado e domingo, às 10h30 da manhã.
Links Extras (e curiosidades)
- Meu trailer favorito de Folhas de Outono <3
- A crítica excelente da Isabela Boscov sobre o filme.
- O filme tem uma trilha sonora incrível e uma das músicas principais, Syntynyt suruun ja puettu pettymyksin (algo como Nascido para tristeza e vestido com decepções), do grupo feminino finlandês Maustetytöt (que significa literalmente Spice Girls!) não sai da minha cabeça. Aqui, uma performance ao vivo da música em 2020 :)
- Quanto mais eu pesquiso sobre o filme e conheço um pouco mais de seus pequenos detalhes, mais me apaixono por ele (e já morrendo de vontade de assistir de novo!). As entrevistas com os atores Alma Pöysti e Jussi Vatanen são muito legais e dão uma outra perspectiva sobre a história e o processo de atuação e filmagem, além de outras nuances do roteiro e de como as cenas foram planejadas para ser. Destaco a coletiva de imprensa de Cannes (citada no texto nas falas de Jussi), depois de o filme ter recebido o Prêmio do Júri neste ano; e essa sessão de Perguntas e Respostas após uma exibição no Lincoln Center, em Nova York (ambas com legendas automáticas em inglês).
- A cachorrinha Alma que atua no filme é na verdade a cachorrinha do próprio diretor! Ambos comentam como ela é super concentrada e roubava as cenas no set.
- Esse é o primeiro filme de Aki Kaurismäki que eu assisto e já quero muito ver outros. A Mubi está com uma coleção chamada A arte de ser humano: filmes de Aki Kaurimäki, com 25 filmes do diretor disponíveis para assistir.
- A atriz Alma Pöysti interpreta a artista finlandesa Tove Jansson no filme biográfico sobre ela, Tove, sobre o qual já falamos aqui.
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
vi o filme no fds e adorei tudo que vc escreveu aqui <3
Fiquei com mais vontade ainda de assistir <3