Andanças #66: Meu amigo robô
Talvez um dia, quando você se sentia mais sozinho e perdido no mundo, você tenha encontrado alguém
Talvez um dia você já tenha sido uma pessoa que quis muito viver em uma cidade grande, daquelas muito grandes. Aquele lugar mágico onde tudo é possível, onde todas as coisas mais legais parecem acontecer todos os dias, onde os sonhos nos esperam a cada esquina e onde todas as pessoas importantes e interessantes estão.
Mas é muito difícil conseguir se preparar para o tamanho de uma cidade muito grande sem nunca ter vivido em uma antes. É uma sensação estranha. É como se existissem mais coisas ao nosso redor do que o nosso cérebro fosse capaz de processar. E, em alguma medida, a gente se fecha se não tomar cuidado. Nos mantemos no que é conhecido, no pequeno mundo que construímos para nós ali. É um pouco assustador saber que há tantas pessoas lá fora, mas nenhuma te conhece. As mil e uma possibilidades às vezes vão te engolir e você não vai passar tanto tempo assim em nenhuma delas. A gente está ali, mas está ali mesmo?
A verdade é que nada, nem ninguém, tem a capacidade de nos preparar para o tamanho da solidão que é possível sentir em uma cidade muito grande.
Nova York, anos 80. É por aqui que andaremos hoje em uma cidade lindamente animada e habitada por animais em Meu amigo robô (Robot dreams, 2023, dirigido por Pablo Berger), um dos filmes indicados ao Oscar de Melhor Animação deste ano. Aqui acompanhamos Cão, um morador do East Village. Quando o conhecemos, ele está jogado no sofá jogando vídeo game contra ele mesmo. Esquenta no micro-ondas uma embalagem de comida congelada e espera ela ficar pronta. Da janela ele vê o interior do apartamento do prédio ao lado, tão perto - perto demais. Ali, um casal iluminado assiste algo divertido na TV enquanto dividem uma pipoca e um abraço amoroso. Na tela de sua TV desligada, Cão vê o reflexo cinzento da sua vida: o sofá vazio, a comida na embalagem de plástico, um rosto cansado e solitário. Sozinho.
Até que uma propaganda de um robô aparece na TV. Um robô amigo, feito para fazer companhia. Cão pula para o telefone, pede o seu e mal consegue esperar o pacote chegar. Ele o monta com todo cuidado, da forma que consegue, e ali, no chão da sala de seu apartamento pequeno, Robô surge em sua vida - e tudo muda.
Robô acabou de nascer no mundo, então ele vê tudo com os olhos frescos e complemente animados e apaixonados por aquela cidade efervescente. Cão o leva para todo tipo de andanças divertidas, como se todo o itinerário já estivesse pronto há muito tempo, apenas à espera de alguém com quem compartilhá-lo. Robô aprende rápido e se delicia com tudo. Cão, por sua vez, que talvez já estivesse acostumado e apático com aqueles caminhos e as particularidades dele, começa a se animar de novo também. São os músicos no metrô, as pessoas no parque, as mil e uma lojinhas tão características do bairro - tudo ganha uma nova cor. Robô descobre a cidade e a si mesmo na companhia da única pessoa que tem e Cão faz o mesmo, em um processo de olhar com novos (ou velhos) olhos para o mundo vibrante que existia ao seu redor e que talvez ele tivesse esquecido de como era. É difícil olhar para as coisas com animação quando estamos mal, não importa o quão mágico possa ser o lugar em que estamos.
Mas esses tempos passaram - a vida agora é outra para nosso protagonista.
Talvez um dia, quando você se sentia mais sozinho e perdido no mundo, você tenha encontrado alguém. Alguém que fez os seus dias brilharem, alguém com quem você compartilhou alguns dos melhores momentos que já viveu. Alguém que possibilitou a você se tornar uma nova pessoa e ver aquela cidade ao seu redor de outra forma. Não precisa ser um relacionamento romântico: pode ter sido uma amizade ou mesmo um animal de estimação - alguém que encontrou por acaso no meio de um caminho que você já duvidava se era realmente seu. Talvez ali você tenha sido feliz, verdadeiramente feliz, como nunca antes.
My thoughts are with you
Holding hands with your heart to see you
Only blue talk and love
Remember, how we knew love was here to stay
Um dia, Cão decide levar seu amigo para um passeio na praia e, à noite, Robô não consegue sair do lugar. Ele é pesado demais para que Cão o carregue e não tem jeito: é preciso deixá-lo lá e retornar no dia seguinte com os materiais necessários para o seu reparo. Só que aquele era o último dia do verão. No dia seguinte, a praia estava fechada e só abrirá novamente na próxima temporada.
Cão tenta de tudo, e em todas as vezes é obrigado a ver seu amigo lá longe na praia, sem que ele consiga o resgatar. Robô também consegue ver as tentativas do amigo, mas não há nada que ele possa fazer. Só lhes resta esperar. E, enquanto esperam e cada um a sua maneira, Cão e Robô contam histórias para si mesmos para continuarem, para aguentarem, para se manterem vivos naquela situação que os entristece tanto. Imaginam desfechos possíveis, sonham sonhos bonitos e tem todo tipo de pesadelos. Vão vivendo conforme as estações passam lentas ao seu redor.
A gente faz isso também. A solidão que vem depois uma separação brusca dentro de um lugar que já tem a capacidade de nos fazer sentir tão solitários é muito difícil. Independente de qual for a história em que decidimos nos agarrar para continuar, a verdade é que saímos sempre quebrados, completamente devastados por aquilo que podia ser e não foi. Que tinha tudo para dar certo e não deu.
Não teve nada que eu li ou ouvi que pode me preparar para esse filme, absolutamente nada. Um cachorro compra um robô para lhe fazer companhia e os dois vivem dias de muita alegria até que precisam se separar e encontrar uma forma de se reunirem de novo. É só uma sinopse. É só o começo de tudo que acontece aqui.
Eu comecei a chorar no meio do filme e só parei de verdade horas depois de ter chegado em casa. Saí dali me perguntando o que é um final feliz. A gente aprendeu com os filmes que é quando as pessoas envolvidas na história atravessam todas as suas desventuras e se reúnem novamente no final. Mas ninguém conta que as desventuras mudam a gente. Que o tempo tem ação. Que cada dia solitário vivido nessa separação faz com que algumas coisas morram e que outras nasçam - a gente perde algumas coisas e ganha outras. Há um juízo de valor também, como se tudo que viesse depois jamais pudesse ser tão bom quanto aquilo que veio antes, mas isso está longe de ser verdade. Nem todo final feliz é o desfecho da mesma história.
Nós sempre seremos esse amontoado das vidas que tivemos antes, esse tecido cheio de costuras de nossas vidas passadas. Aprendemos com as pessoas e os sentimentos, absorvemos coisas. Criamos gostos e preferências que sempre carregaremos conosco. Pode ser uma música favorita, um passeio, um modo de viver. Carregamos aquilo adiante por onde quer que o destino nos leve e o misturamos com as novas experiências que surgem. As coisas vão ser estranhas no começo, desajeitadas. Há muito para consertar, muitas dores e cicatrizes recentes. Não temos mais aquele frescor, sem dúvida. Mas essa bagagem significa que estamos vivos, tão vivos quanto já estivemos - só não mais os mesmos.
Na rua eu fui andando e olhando essa cidade que é minha. Era uma tarde de domingo de carnaval quente e ensolarada, um dia bonito como nem sempre faz por aqui. Fiquei feliz em estar andando de óculos escuros enquanto passava pela multidão fantasiada que andava em direção ao carnaval na praça ali em frente. Tinha vida pulsando por todos os lugares ao meu redor.
E como é bom estar aqui, no presente.
Até o próximo passeio :)
Qualquer referência desse texto à edição de Vidas Passadas não é mera coincidência.
Onde assistir
Meu amigo robô ainda está em exibição em alguns cinemas brasileiros. Em Curitiba, ele estará na sessão matinê do Cine Passeio, às 10h45 da manhã, neste próximo sábado e domingo.
Esse já é com toda certeza um dos melhores filmes que vi esse ano - não perderia ele por nada se fosse você.
Links extras
- Robot dreams é baseado em uma história em quadrinhos de mesmo nome de Sara Varon. Não encontrei uma tradução para o português, mas você pode comprar a edição em inglês aqui.
- Esse vídeo da equipe do filme assistindo a nomeação dos indicados ao Oscar (o diretor Pablo Berger achando que não seria indicado, para depois ver o nome lá <3). - veja também no mesmo carrossel o vídeo da equipe de Godzilla minus One (filmaço!) assistindo a nomeação, com várias miniaturas do Godzilla em cima da mesa <3
- Eu não assisti nenhum dos outros filmes concorrendo à categoria de melhor animação ainda, mas já prevejo mais lágrimas com O menino e a garça, de Hayao Miyazaki, que quero muito assistir.
- O que Vidas Passadas, Anatomia de uma queda e Pobres criaturas tem em comum: crescer é perigoso, da
.- Um designer que transforma cartazes colados nas ruas de NYC de graça.
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Amei e já querendo ver o filme! Obrigada 🧡
tinha passado batido pelo título do filme. agora fiquei com muita vontade de ver.