Na edição passada, comentei que nosso passeio de hoje seria pelos cinemas do passado, mas venho aqui pedir licença para propor um desvio de rota, uma pequena mudança no nosso itinerário. É que eu assisti Vidas passadas (Past lives, 2023, dirigido por Celine Song) na sua estreia na última semana e, como esperado, não consigo pensar em outra coisa desde então. Esse texto precisa sair de mim antes que eu possa voltar para qualquer outro, então vou fazer essa pequena mudança de planejamento. Voltaremos para o roteiro original em breve.
Escolhi fazer esse texto comentando alguns detalhes do filme, então se você ainda não assistiu, ele contém spoilers.
As luzes acendem. Pego as minhas coisas, levanto da poltrona, desço as escadas. Espero meu Uber no saguão de entrada, como já fiz tantas e tantas vezes. Da janela do carro eu vejo essa cidade que não é minha. Eu não cresci aqui. Não cresci muito longe daqui, é verdade, mas não aqui. Não vi as mudanças pelas quais ela passou ao longo das décadas, o que ganhou e o que perdeu. Ainda que estejamos falando a mesma língua, minhas palavras e expressões tem outra raiz, meu sotaque é de outro lugar. Por outro lado, construí aqui uma vida completa. Tenho um endereço que é o mesmo já há alguns anos, uma família, vários amigos, um local de trabalho. A minha história acontece agora nesse cenário. Adotei o ritmo dessas ruas como meu, escolhi esse mundo para dar forma aos meus desejos mais íntimos e profundos. Vivo aqui a vida que eu sempre quis ter. Eu sou daqui.
Mas eu também já fui de outros lugares. Já vivi algumas outras vidas antes dessa.
Nosso passeio de hoje é por duas cidades, dois países, dois tempos, duas vidas. Começamos em Seoul, na Coréia do Sul, onde vivem Na Young (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), duas crianças de 12 anos que estudam juntas e gostam uma da outra. Mas Na Young irá imigrar com a sua família para o Canadá, enquanto Hae Sung permanece.
Eles retomam contato doze anos depois, pela internet. Na Young adotou o nome ocidental de Nora Moon e mora e estuda na cidade de Nova York, enquanto Hae Sung é também um universitário em Seoul. Eles conversam horas e horas pelo Skype, mas as distâncias se tornaram pesadas demais e eles se afastam novamente. O tempo passa mais uma vez, mais doze anos. Nora continua em Nova York, onde tem uma carreira, uma casa e um casamento com Arthur (John Magaro), um estadunidense. Um dia, Hae Sung visita a cidade e os dois combinam de se reencontrar. É a primeira vez que se veem pessoalmente desde que Na Young partiu de Seoul.
Pode parecer que Vidas Passadas é um filme de amor, e é, também. É a história de um amor do passado que volta e se insere em uma vida já estabelecida com outra pessoa. Uma história que nos faz pensar nos “e se” - no que teria acontecido se as coisas fossem de outra forma. Mas, para mim, Vidas Passadas é muito mais sobre os pedaços de nós que deixamos quando saímos de um lugar e ficamos em outro. Nós nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos - uma conceito lógico do que é uma vida. Mas quantas vidas, metaforicamente falando, vivemos dentro dessa? Quantas versões diferentes de nós mesmos já fomos, conforme nos estabelecemos em lugares distintos ao longo dos anos?
A gente consegue sentir a mudança acontecendo. Quanto mais eu sei me guiar por essa cidade que não é minha, mais me esqueço dos caminhos da cidade de onde eu vim. Não que a memória seja limitada, como se houvesse apenas um número específico de nomes de ruas que a gente conseguisse lembrar e os daqui substituíssem os de lá. Não é isso. Mas a memória vai se tornando mais e mais distante a cada dia que passa, quanto mais se aprofundam as raízes que eu estabeleci aqui. A imagem que eu vejo daquela cidade é a do passado e é sempre um choque retornar - um eterno conflito entre quem eu era e quem eu sou agora, duas vidas dentro da mesma pessoa. Bastam algumas horas para o sotaque e a velocidade da fala voltarem. Alguns dias e eu já começo aos poucos a retornar àquela pessoa de vinte anos, bem menos independente e bem mais perdida. Eu não me tornei adulta ali. Talvez eu não saiba realmente como ser adulta por aquelas ruas. Mas a cidade, essa sempre se transforma, e deixa de ser aquela da vida que eu tive. Eu não acompanho o que vem de novo, não sei mais dizer o que existia ali antes. Cada vez vejo menos rostos conhecidos onde antes eu encontrava vários - nesta última vez, com exceção da minha família, não houve nenhum. Já não consigo mais me imaginar ali - e esse é outro baque. A vida que eu tinha, aquela com na qual eu nasci e cresci, já passou.
E quando a gente nota isso, entende que o nosso caminho é em frente.
“Eu imigrei duas vezes para estar aqui em Nova York. Eu quero conquistar algo aqui. Eu quero me comprometer com minha vida aqui, mas ao invés disso estou procurando voos para Seoul.”
Nora percebe isso nos seus vinte anos, quando vê que não pode simplesmente voltar para Seoul, não importa o quanto sinta falta de Hae Sung no seu cotidiano e da vida de infância que tinha naquele outro lugar. Ainda que aquela garotinha viva dentro dela, ela não é mais Na Young. Ela é Nora - e Nora está onde essa Nora adulta sempre quis estar. É bonita a cena dela chagando na cidade grande em um táxi, com algumas malas e um punhado de sonhos. Talvez você saiba o que é isso também - ver ao longe os contornos da cidade onde sempre quisemos estar, tomados pela enxurrada de emoções que é saber que é para lá que estamos indo. É uma imagem que fica para sempre com a gente, mesmo que o destino acabe nos levando para outro lugar mais tarde. Aos prantos, Nora decide romper aquela que talvez seja a última ponte de Na Young com a vida que tinha antes. Segue em frente. E, em frente, há Arthur.
Mas andamos por essa nova vida carregando a imensidão de quem fomos nas vidas que tivemos antes. Experimente encontrar alguém que veio do mesmo lugar que você e, mesmo que você nunca tenha visto essa pessoa antes, a conversa pode ir longe nos pequenos detalhes e experiências parecidas. É um universo antigo que se abre em uma caixa infinita de memórias queridas que vão sempre continuar conosco. Nós fomos dali. Fomos feitos daquele mesmo material que nunca vai ser totalmente compreensível para quem não teve aquela vida. Quando passamos tanto tempo em meio a pessoas que entendem apenas uma parte de quem somos, é sempre bom encontrar (ou reencontrar) pessoas que podem entender aquela outra parte.
Em Nova York, Nora sempre vai ser também alguém que veio de outro lugar. Uma estrangeira com um vida inteira passada muito longe dali. Arthur sabe disso. É dai que vem seu medo e sua insegurança, não só pela presença de Hae Sung - o que talvez seja o símbolo máximo disso -, mas por todo o resto que surge na convivência cotidiana deles. É por isso que ele se aproxima o máximo que pode - aprender a língua, as tradições, a comida. Ele não tem como competir, como mesmo diz. E aquela cena na cama é uma das mais amorosas e sinceras que eu já vi em muito tempo.
“Você sonha em uma língua que eu não consigo entender. É como se existisse todo esse lugar dentro de você que eu não posso ir.”
Da mesma forma, Hae Sung em Nova York lembra uma criança perdida em um mundo desconhecido, com a mesma mochilinha nas costas e a cara de expectativa, só que vestindo uma roupa social de adulto, do outro lado do mundo. Quando encontra Nora, é como se voltassem a ser aquelas crianças de 12 anos de novo. Assim como Arthur não entende tão bem coreano, Hae Sung não entende tão bem o inglês. Nora é o ponto comum entre os dois. Cada um desses homens, assim como cada cidade tão lindamente mostrada, representa uma parte dela. Por outro lado, o reencontro com Hae Sung não é simplesmente uma conexão com alguém que tem as mesmas origens. Existe uma história compartilhada, e isso deixa tudo muito mais complexo.
Mas uma dessas vidas é o presente, e a outra, já passou.
Não dá para negar que as cidades são um personagem à parte nessa história. Elas sempre são. E a gente sabe, é por isso que estamos aqui nessa newsletter, não é mesmo? Nova York é o lugar de Nora e Seoul de Hae Sung. Ela já sabia disso antes, mas ver essa constatação tomando forma física em sua frente é uma outra história. É difícil, é doído. Hae Sung foi quem ouviu isso, lá com vinte anos. Talvez ele precisasse ver com os próprios olhos, sentir as mudanças com a própria pele. Entender seus sentimentos da infância que foram, duas vezes, tão bruscamente interrompidos. Ele precisa entender o mundo de Nora para entender também quem é - e para poder seguir em frente, assim como ela.
“Ele foi apenas essa criança na minha cabeça por tanto tempo. E então, era apenas uma imagem no meu computador. E agora, ele é uma pessoa em carne e osso. É muito intenso, mas eu não acho que seja atração. Eu acho que só senti muito a falta dele. Acho que senti falta de Seoul.”
Quando vemos Na Young no começo do filme, aquela criança cheia de ambições, percebemos que, mesmo que seus pais não tivessem decidido imigrar, ela talvez teria feito isso por conta própria um dia. Ela talvez sempre seria aquela que foi embora. Mas é justamente o fato de ter ido que une Nora a Hae Sung no sentimento profundo que compartilham. Ele se pergunta se ainda teria procurado por ela se ela nunca tivesse partido. Se eles só tivessem seguido caminhos diferentes dentro daquela mesma cidade, como acontece com tantas das nossas amizades de infância.
“Mas a verdade que aprendi aqui é que você teve que ir embora porque é você. E a razão pela qual gostei de você é porque você é você. E você é uma pessoa que vai embora. […] Mas para ele, você é a pessoa que fica.”
Em uma conversa com várias outras atrizes para o The Hollywood Reporter, a atriz Greta Lee diz que, no evento de premiere do filme, viu sua mãe chorando de soluçar na sala de cinema. Foi um estranhamento, ela disse, porque não se lembrava nem de ver sua mãe chorar em outros momentos. Não conseguiram conversar melhor naquele dia. Tempos depois, em uma ligação, sua mãe lhe disse que ainda chorava pensando no filme. Disse que ela era Nora, que a filha havia lhe representado ali.
Greta é uma atriz estadunidense, nascida e crescida na Califórnia de pais imigrantes coreanos, que foi morar em Nova York no início de sua carreira. Não sei dizer se seus pais se conheceram já no Estados Unidos ou se vieram juntos da Coréia, mas não importa. Não é apenas sobre a história de amor, lembra? Talvez a mãe de Greta seja Nora porque deixou para trás uma vida que tinha para viver outra. Perdeu algo, mas também ganhou outras coisas, como diz a mãe de Na Young no filme. E isso nunca é algo fácil de se fazer.
Se você construiu a sua vida em um lugar diferente daquele em que nasceu e cresceu, talvez entenda o choro de Nora. Aquele choro que vem das profundezas e tira da gente todas as forças que temos. Talvez você tenha esse choro no seu peito também, onde quer que esteja - relativamente perto ou a oceanos de distância do lugar de onde veio. Eu não sei explicar, e eu nem estou assim tão longe, e o mais longe que eu fui, não foi por tanto tempo. Mas talvez, se você é alguém que permaneceu, já tenha se apaixonado por alguém que foi embora. Alguém que sabemos que nunca voltará, não importa quantos “e se” divagarmos, como Hae Sung. Ou ainda, amou alguém que ficou, vindo de algum lugar estranho a você, como Arthur.
“A Na Young que você lembra não existe aqui. Mas aquela garotinha existiu. Ela não está aqui sentada na sua frente, mas isso não quer dizer que ela não é real. Vinte anos atrás, eu a deixei com você.”
Vidas passadas é tão devastador porque, nesse mundo de vais e vens cada vez mais comuns, a gente sabe o que é estar no lugar de Nora, ou de Hae Sung, ou de Arthur. Sabe o que é ter o coração dividido ao meio e que o terá assim para sempre, não importa o quanto a memória se desvaneça. Sabe também que, muitas vezes, não teria como ser de outra forma - que nós sempre seríamos essa pessoa que partiu. O choro de Nora é de quem sabe o que é ter duas identidades dentro de um mesmo corpo que não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. De um corpo que precisa deixar que as vidas passem.
Quando o ônibus começa a entrar na cidade, ali da rodovia dá para ver ao longe a linha densa de prédios daqui. É uma sensação boa. A vida nos trouxe até aqui, agora. E é aqui que eu deveria estar. Assim como Nora, assim como Arthur, assim como Hae Sung.
Hae Sung e Nora reconhecem também a força da conexão que tem. Eles compartilham uma vida passada - e talvez bem mais que uma - e isso sempre, sempre estará ali. O In-Yun que os une. Quem sabe em uma próxima, eles pensam também. Quem sabe em uma próxima vida aquilo que os faz serem quem são os permita ficar no mesmo lugar e ter uma história de amor. Te vejo lá, ele fala, como quem diz que talvez esse silêncio de agora, nessa rua calma de uma cidade que não é dele, seja preenchido por outra coisa em uma próxima vida. Mas nem toda conexão profunda precisa ser sobre amor romântico, eles entendem também. Sempre terão um ao outro, e podem seguir mais leves suas vidas com outras pessoas, sem o peso daquele amor infantil que nunca teve oportunidade de mostrar o que era.
E a vida desses três personagens - assim como as nossas - segue sendo, para todo sempre, esse tecido cheio de costuras das vidas que já tivemos.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Vidas passadas está atualmente em exibição nos cinemas brasileiros.
Links extras
Desviei tudo que pude de textos e vídeos que comentassem esse filme, tanto antes de assisti-lo, quanto durante a escrita dessa edição. Por isso, não vou indicar aqui nos links outros materiais sobre ele, mas tenho certeza que tem muita coisa boa por aí. Ambos os textos indicados aqui são inglês, mas dá para lê-los em português com a ajuda do Google Tradutor. Vai por mim, vale muito a pena.
- Do you miss home? Nesta edição da newsletter do músico Nick Cave (em inglês), a pergunta foi sobre a dualidade de ser de um lugar (Austrália) e passar a vida vivendo em outro (Inglaterra). A resposta é ótima e conversa muito com a edição de hoje <3
“Quando eu estiver morto e eles colocarem meus restos mortais no chão, é mais do que provável que eu irei para solo britânico [...]. Mas a essência desses restos mortais empoeirados será total e resolutamente australiana.”
- Uma andança por Nova York com Greta Lee e Celine Song (em inglês). Na entrevista para a revista Rolling Stone, a diretora Celine Song conta que a história de Vidas passadas realmente aconteceu com ela: se mudou para o Canadá quando tinha 12 anos, e também gostava de um menino da escola, com quem retomou contato pela internet anos depois, e ficaram apenas nisso. Ela foi para Nova York com vinte e poucos anos para se tornar escritora de peças de teatro e conheceu seu marido em um retiro artístico. Em um dado momento, se viu sentada em um balcão de bar com o marido de um lado, e seu antigo colega de outro.
“Quando comecei a contar aos meus amigos a história de como foi me sentar entre essas duas pessoas, no entanto, percebi que nossas amizades de alguma forma pareciam mais profundas para mim depois de ter contado. Eles me contaram suas próprias histórias como essa também. Não sobre suas paixões passadas ou algo assim, mas todos pareciam ter alguém que trouxe à tona uma versão passada de si mesmos. Eu pensei, ok, vou tentar escrever isso.” - Celine Song para Rolling Stones (grifo meu)
Tudo fica ainda mais impressionante quando a gente descobre pela entrevista, que, depois de entender como iria elaborar a história (com a cena inicial das pessoas tentando adivinhar o que os três protagonistas são um para o outro), Celine levou apenas um mês para escrever todo o roteiro. E, apesar da sua experiência com o teatro, fez o filme sem ter nenhuma experiência com cinema.
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Seu texto chegou pelas recomendações do próprio Substack e cliquei logo ao ver que falava deste filme... ele não sai da minha cabeça... a delicadeza das cenas, os personagens, a sensibilidade da narrativa... tudo ainda reverbera, simplesmente amei! Adorei suas percepções!
Um texto lindo sobre um filme maravilhoso! Chorei de novo ❤️