Quem já deu uma olhada na lista de filmes da Andanças no Letterboxd, reparou que a seleção já conta com muitos filmes de pessoas fictícias andando pelas cidades mundo afora. Quando comecei a montar a lista, ver todos os filmes juntos fez com que eu logo percebesse algumas coisas - alguns problemas. Já falamos sobre como as mulheres foram excluídas da narrativa do flâneur tradicional, o que levanta a questão de quem realmente pôde e pode flanar pela cidade e de que formas. Mas que mulheres são essas? Nossa organização social é cheia de desigualdades, e podemos percebê-las também quando falamos sobre pessoas e cidades - e uma delas é a discriminação racial.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de Senegal dos anos 60 que, recém independente, ainda carregando as marcas da colonização francesa. A negra de... ou Garota negra, dependendo da tradução (La Noire de...), é um filme de 1966, dirigido pelo diretor senegalês Ousmane Sembène, também conhecido como o “pai do cinema africano”. Aqui, acompanhamos Diouana (Mbissine Thérèse Diop), uma jovem mulher senegalesa em busca de emprego nas casas ricas da cidade. Ela consegue um emprego como babá em uma família francesa e, depois de alguns meses, a família retorna à França e a convida para continuar trabalhando com eles.
A cidade que nos é apresentada, é uma Dakar extremamente desigual. As regiões diferentes que aparecem no filme deixam isso bem claro: as áreas de maior infraestrutura abrigam as casas e prédios dos franceses e outros europeus que moram na cidade, enquanto a população local é marcada pela pobreza e por moradias precárias em bairros com pouca infraestrutura urbana. A cidade demarca as desigualdades que se encrustam no cotidiano dos moradores locais e o filme faz questão de nos mostrar sempre esses contrastes. Elas são o reflexo de uma organização social que define quem pode ter mais e quem deve ter menos - o que, nesse caso, é fortemente definido pela cor da pele e pela nacionalidade e inclui necessidades básicas, como a água.
Diouana é uma mulher sonhadora, elegantíssima, que tem uma boa relação com sua família e vizinhos e quer buscar uma vida melhor. Acompanhamos seus dias pela narrativa dela, por seus fluxos de pensamento. A vemos com frequência andando pelas ruas de sua cidade, nas idas e vindas da vida cotidiana, para procurar emprego, durante o trabalho ou em passeios. Diouana anda por necessidade, mas também por prazer: passeia, brinca, observa as ruas, as pessoas, suas roupas - é uma flâneuse da cabeça aos pés.
Quando chega na França, nas cidades litorâneas do sul, ela logo percebe que aquela vida não é bem o que tinha imaginado e nem o que havia sido proposto a ela. Mesmo assim ela ainda tenta entender, ainda tem um pouco de esperança:
“Talvez, depois do arroz a senhora me mostre a cidade. Nós veremos Cannes, Nice, Monte Carlo. Poderemos ver as belas lojas e quando ela me pagar, comprarei lindos vestidos, sapatos, mantas de seda e uma bela peruca. E tirarei uma bela fotografia na praia. E a enviarei a Dakar.”
Esse é um filme de apenas 60 minutos, mas que é extremamente potente - e também dilacerador. Ele escancara o neocolonialismo, as formas de escravidão moderna, a discriminação racial, a exploração, os danos à saúde mental, o desrespeito às culturas e suas tradições, a violência, o preconceito, a perspectiva que constrói o continente africano e seus habitantes como exóticos, como objetos a serem mostrados como prêmios pelo conquistador. É estarrecedor e é revoltante - e é também uma discussão necessária. Essa não é somente a nossa história (o que já não é pouca coisa), mas também a realidade da sociedade em que vivemos nesse momento.
“A França aqui é a cozinha, a copa, o banheiro e o quarto de dormir. Onde estão as pessoas que moram nesse país? A senhora me dizia: ‘Você verá Diouana, há lindas lojas na França’. A França é esse buraco negro? O que eu sou aqui? Cozinheira? Faxineira? Lavadeira? E quando as crianças chegarem, o que mais eu farei? Estou sozinha. Foi para trancar-me que a senhora me trouxe aqui. […] Aqui, minha vida se passa entre meu quarto e a cozinha. Isso é viver na França?”
Quem pode, realmente, andar na cidade? Quem pode sonhar pelas ruas da cidade? Quando pensamos em filmes com pessoas andando e filosofando pelas ruas, a imagem que nos vem imediatamente à mente é de um casal heterossexual branco em alguma cidade europeia ou norte-americana. Isso porque a maior parte dos filmes mais populares desse gênero tem essa configuração. Nós crescemos com essas imagens e é com base nelas que criamos o nosso imaginário do que seria flanar por aí - assim como Diouana. Depois do convite da família que a emprega, ela começa a imaginar todas as possibilidades que esse novo país pode oferecer e tudo o que poderá fazer passeando pela cidade francesa como anda na sua cidade, durante os seus períodos de folga e fim de expediente. Ela sonha enquanto folheia uma revista Elle francesa, que mostra a ela imagens de um outro mundo. Um mundo que, para ela, parece oferecer uma vida melhor. Mas melhor para quem?
É uma mentalidade colonialista, racista e misógina que traçou (e ainda traça) o mapa das nossas cidades, o nome das nossas ruas, que define quem pode ou não andar por elas e como e onde - o que podem ou não fazer, o que podem ou não querer, qual história daquelas ruas ficará nos livros e nas telas de cinema. A independência de Senegal, recente no período do filme, é assunto que está sempre de pano de fundo nas conversas e na própria cidade, da perspectiva de senegalenses e franceses. Por aqui, nossa própria independência ficou marcada na figura de um homem europeu, com a escravidão mantida, enquanto vários outros movimentos negros por independência e fim da escravidão foram apagados. Duzentos anos depois, esta imagem de autoria da repórter Lola Ferreira, circulou pela internet neste 7 de setembro. Ela mostra jovens negros protestando, de dentro de um ônibus, contra a passeata de motos dos apoiadores de Bolsonaro. Pouco tempo depois, segundo matéria também de Lola Ferreira, o ônibus é parado e eles são revistados pela PM.
Vemos notícias desse tipo todos os dias em vários outros países e aqui - principalmente aqui. Não podemos falar de pessoas andando pela cidade pensando e conversando e refletindo sobre a vida sem pensar nisso, sem ter isso em mente. E é por isso que precisamos de outras histórias, de outros pontos de vista, de outras formas de ver as mesmas ruas - que podem ser tão românticas a uns e tão hostis a outros. Vale a pena ver esse trecho curto de uma fala de Ousmane Sembène, em que o diretor aponta a importância do cinema como uma forma de ativismo.
Precisamos dar atenção a quais imagens romantizamos e o que sustentou (e ainda sustenta) essas imagens. Nos divertimos com elas, buscamos conforto e reflexão nelas, mas não podemos deixar de questionar as narrativas que chegaram até nós, assim como porque elas chegaram e não outras. Olhar para esses filmes faz parecer que apenas um casal branco em uma cidade europeia pode passear pela cidade. E isso não é verdade, mas ao mesmo tempo é. Todos passeamos pelas ruas, mas apenas a alguns foi dada a possibilidade de andar tranquilamente por elas. Um casal negro na mesma cidade não teria a mesma tranquilidade e isso fará parte de sua experiência na cidade. Não podemos nos esquecer disso, assim como das linhas visíveis e invisíveis que demarcam nossas próprias cidades.
De forma alguma eu esgoto o assunto aqui - essa é uma discussão que ainda vai muito mais longe do que apenas um post, do que apenas um filme. Dói ver o brilho de Diouana se apagando, trancada em um apartamento sufocante sem conseguir sair da situação em que se encontra. Queremos um final feliz, torcemos por ela, mas a realidade não é assim tão simples - e Ousmane Sembène sabe disso, e não a ameniza: escancara. Cabe a nós absorver o que vimos e questionar essa realidade que 60 anos depois do filme ainda perdura - e votar com isso em mente no mês que vem.
Até o próximo passeio :)
A negra de… (ou Garota negra) está disponível para assistir na Mubi, assim como o curta O carroceiro (1963), também de Sembène.
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