É muito possível que você já conheça nosso passeio de hoje e saiba o desenrolar dessa história cheia de vibes anos 80. Isso porque esse não é só um dos episódios mais populares de Black Mirror (2011 - 2019), mas a própria série foi um sucesso estrondoso alguns anos atrás. San Junipero (2016, dirigido por Owen Harris e escrito por Charlie Brooker, criador da série) é o quarto episódio da terceira temporada, que também conta com outros episódios populares como Nosedive.
Como é de praxe com Black Mirror, sabemos que algum tipo de discussão tecnológica está acontecendo em cada episódio, mesmo que não fique tão claro de início. É o caso de San Junipero. Demora um pouco para entender do que se trata. Por outro lado, depois que percebemos a grande sacada desse episódio, é fácil nos esquecermos dela. Não é para essa tecnologia avançada que voltamos a nossa atenção, embora ela esteja sempre ali, de pano de fundo. Depois do impacto inicial, tomamos esse futuro como dado e o que importa são as coisas mais orgânicas, aquelas com as quais conseguimos nos identificar mais, não importa onde estejamos no tempo e no espaço.
A emoção - é ela que pega a gente de jeito.
Quando pensamos em uma mudança radical de rumos, frequentemente a associamos a um novo lugar: uma nova casa, um novo local de trabalho, uma nova cidade. O ambiente parece exercer um papel central nas transformações que queremos ou esperamos ter, e uma nova cidade sempre traz algum tipo de possibilidade de frescor no olhar, mesmo que estejamos ali por um curto período de tempo - é aquela coisa dos “novos ares”.
Para quem já teve a experiência de se mudar para uma nova cidade onde não conhecia ninguém, esses novos ares vêm quase como uma espécie destacamento da nossa vida anterior. Sofremos o impacto de estarmos em um lugar completamente diferente da nossa realidade, de tudo que é conhecido por nós e tudo que constituiu o nosso passado. Pode ser doloroso, principalmente de início, mas também estranhamente libertador: se nada aqui me conecta à vida que eu tinha antes, talvez eu possa começar uma nova vida por essas novas ruas. Eu posso ser uma nova versão de mim, uma versão que eu gostaria de ser antes e, por alguma razão, não podia.
É no caminho desses novos começos que conhecemos Kelly (Gugu Mbatha-Raw) e Yorkie (Mackenzie Davis), duas turistas na cidade litorânea de San Junipero em 1987. Yorkie chega na cidade pela primeira vez e vai explorando aquele novo mundo com precaução e timidez, enquanto Kelly já visita aquelas ruas há mais tempo: ela se relaciona com facilidade com as outras pessoas, é extrovertida e sabe o que quer. Kelly chama a atenção de Yorkie de imediato e as duas acabam se conhecendo em um bar.
Além de ser um lugar novo para ambas, San Junipero é uma cidade com uma vida noturna agitada, e ali, como aponta Kelly: “ninguém julga ninguém”. Nossas personagens estão em um lugar em que estão distantes de sua vida comum e podem se reinventar, mesmo que só por uma noite de sábado a cada semana. Naquelas horas em que estão respirando novos ares, elas podem ser e fazer aquilo que não puderam explorar antes e experimentar o que teria sido se tivessem vivido de outra forma.
É claro que, quando trazemos isso para a nossa vida comum, é uma perspectiva que não passa sem questionamentos. Quando estamos sempre “destacados” de tudo, o que nos resta? A emoção de ser anônimo em um lugar novo tem um prazo de validade: em longo prazo, precisamos de conexões. Precisamos de pessoas que conheçam nossas histórias, mesmo que apenas a nossa versão dela. Precisamos construir uma vida e sentir que aquele lugar é nosso, caso contrário aquela cidade deixa de funcionar para nós. Precisamos cuidar de algo, nos importar com algo dessa vida ao nosso redor - é o nosso senso de comunidade. E alguns dos moradores e turistas de San Junipero sentem essa falta de conexão também: eles se reúnem em um mesmo lugar distante do centro, onde podem fazer tudo que traga a eles a possibilidade de sentir algo.
A discussão tecnológica, talvez aqui mais do que qualquer outro episódio, é somente um reflexo da nossa humanidade. É uma construção completamente humana para driblar angústias tão humanas quanto: e se eu pudesse começar de novo? E se eu tivesse uma nova chance? E se eu pudesse voltar para onde eu estava? E se eu puder continuar de outra forma?
Vemos que cada pessoa tem interpretações próprias sobre essa possibilidade, o que depende muito do que viveram até então. Para alguém que não pôde experimentar muito da vida, a possibilidade de voltar e começar de novo é uma dádiva óbvia. Para alguém que viveu plenamente as delícias e angústias de estar vivo, o questionamento é maior: faz sentido começar de novo? Cada acontecimento e cada escolha poderiam levar a caminhos diferentes do que levaram, é verdade; mas quem seríamos hoje se as coisas tivessem acontecido de outra forma?
A partir das conversas das duas, conseguimos entender um pouco mais de como foi a sua vida até então, o que buscam ali e o que pensam sobre tudo isso. Vemos que não há resposta certa para todas essas perguntas e talvez nós mesmos não saberíamos como respondê-las. No fim das contas, me parece que o que vale mesmo são as emoções que sentimos nas relações que construímos com os outros, com os lugares e com nós mesmos (já falamos disso aqui), independente da configuração em que nos encontramos.
Não importa quantas vezes eu assista esse episódio (e já foram muitas), ele nunca deixa de me emocionar. E o que emociona não são as possibilidades que uma tecnologia avançada oferece, mas sim os próprios rumos da vida e essa coisa que nós temos de buscar viver nossas emoções. Elas transbordam da gente. Nem sempre conseguimos controlá-las e que bonito pode ser esse se deixar levar. Ficamos hipnotizados com toda a emoção que emerge dessas duas pessoas olhando para trás em suas próprias vidas, naquilo que fizeram ou não, pelo que passaram, o que constituí sua vida hoje, como a querem viver dali em diante e por quais motivos.
É emocionante também ver surgir sentimentos quando não se esperava mais que eles aparecessem na vida daquela forma. Kelly foi uma das primeiras pessoas que Yorkie avistou quando chegou em San Junipero e se sentiu atraída por ela desde então. Mas há diversas amarras que a impedem de agir, mesmo nesse lugar de liberdade. Ela tem medo dos próprios sentimentos - e o mesmo acontece com Kelly mais tarde. A relação amorosa que se forma entre as duas atravessa as barreiras daquele mundo e cria uma realidade mesmo onde ela não existe. Suas histórias estão sempre com elas mas, ao mesmo tempo, não as definem: elas continuam sentindo, desejando e buscando a melhor maneira de serem felizes nas condições em que se encontram.
São as nossas mãos que constroem as coisas, mas são as nossas emoções que dão sentido a elas.
“ - Está na hora. Levando tudo em consideração, acho que estou pronta.
- Para quê?
- Para o resto.”
Até o próximo passeio :)
Você pode assistir San Junipero e todos os outros episódios de Black Mirror na Netflix.
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