Sabe aqueles dias em que parece que um caminhão passou por cima de você? A vida está seguindo em um determinado ritmo, com seus altos e baixos e pequenas agitações e aí de repente, do nada, as coisas se aceleram vertiginosamente. Ou então tudo aquilo que você tinha como certo desmorona e você começa a questionar tudo que viveu até ali. Parece que a vida decidiu nos jogar direto no fogo para a gente ver o que acontece. São momentos divisores de águas: quem eu era antes e quem eu percebo que posso ser agora. Nunca saímos ilesos e, normalmente, deixamos uma trilha de erros e confusões durante esse caos, mas são sempre momentos em que algum tipo de fenda se abre e a gente tem a oportunidade de vislumbrar o mundo de outra forma, diferente daquela que vínhamos trazendo conosco antes. Pode ser bom, pode ser ruim, depende do quanto estamos abertos para abrir mão das certezas que já não tem mais espaço para existir na nossa vida.
Daria para dizer que a adolescência é o momento em que isso acontece: estamos cada dia sempre um pouquinho diferentes do que éramos no dia anterior. Mas esse talvez seja o período em que a coisa está concentrada. A verdade é que a gente passa a vida inteira tendo esses choques entre o que é e o que a gente achava que era.
É por isso que, apesar de Booksmart ou Fora de série (2019, dirigido por Olivia Wilde) ser um filme de comédia adolescente delicioso, levinho e super divertido, ele também traz umas boas coisinhas a pensar para nós que já deixamos a adolescência há um certo tempo.
Nosso passeio de hoje é uma grande aventura de carro pela noite da cidade de Los Angeles, nos Estados Unidos. Aqui vivem Amy (Kaitlyn Dever) e Molly (Beanie Feldstein), duas melhores amigas de infância que fazem tudo juntas e que estão em seu último dia de aulas antes da formatura no ensino médio. Elas são as melhores alunas da turma e se empenharam arduamente para ocupar esse lugar. Enquanto Amy é mais quieta e se envolve mais com ativismos, Molly toma a frente como presidente da turma e não é lá muito popular entre os seus colegas e professores. Mas tanto esforço deu o resultado desejado: ambas foram aceitas nas universidades de elite que sempre sonharam estudar e, especialmente para Molly, esse é só o primeiro passo de um grande planejamento de vida que já está todo traçado.
Molly é abertamente ambiciosa e também é ela que mais vê os seus colegas como os adolescentes mais imbecis e inúteis do planeta. De alguma maneira, ela aprendeu a separar as coisas de uma forma bastante extrema: se você quer ter sucesso e ser respeitada, precisa seguir certas regras; se você não as segue, jamais chegará naquele lugar e estará fadado ao fracasso. E ela não só viveu toda a sua curta vida até ali a partir dessa premissa, como também enxerga seus colegas por essas lentes bastante dicotômicas: ou você é isso ou é aquilo, e cada lugar tem seu resultado esperado. Mas ela vai descobrir que não é bem assim. Depois de ouvir os colegas falando mal dela no banheiro, ela se apoia no seu sentimento de superioridade para confrontá-los, só para descobrir que eles vão ou para a mesma universidade que ela, ou para outras tão prestigiadas quanto ou já tem carreiras promissoras prontas para começar.
Molly foi jogada no fogo e está lá desacreditada como se um caminhão tivesse passado por cima dela: seus colegas viveram tudo que aquele período da vida tinha a oferecer, enquanto ela se privou de todas essas experiências para focar exclusivamente em seu objetivo. Mas de que adiantou tanto esforço se no fim das contas eles chegaram no mesmo lugar que ela?
Decidida a virar o jogo nos 45 do segundo tempo, ela convoca Amy para irem à festa do menino popular da escola naquela noite e compensar os quatro anos em que elas nunca saíram. Elas seguem então em uma andança pela cidade de Los Angeles tentando encontrar a casa e tendo uma série de encontros inesperados, festas erradas e desvios da rota original.
“Bom dia vencedora. Respire fundo. Ótimo. Você está pronta para dominar o dia. Você se esforçou mais do que todo mundo e é por isso que você é uma vencedora. Você entende que grandiosidade exige sacrifício. Visualize o que você ainda quer alcançar. Erga-se no topo da montanha do seu sucesso e olhe para baixo, para todos aqueles que alguma vez duvidaram de você. Fodam-se esses perdedores. Fodam-se eles e as suas caras estúpidas.”
O que mais me pegou, assistindo dessa vez, é perceber o quanto todo esse posicionamento e forma de pensar de Molly são tão adultos. Ou melhor, imitam uma ideia do que supostamente seria um pensamento adulto. É como se ela achasse que está muito a frente e acima daquele mundo ao redor dela. A gente vê ela e Amy interagindo juntas como as duas adolescentes que são, mas enquanto filosofia de vida, ela tem uma postura muito mais madura do que precisa ter. Não falo sobre responsabilidades ou comprometimento, mas sobre essa dureza. Sobre um não se permitir ser iniciante, não se permitir ser boba, não se permitir errar.
Fiquei pensando em todas as vezes que eu me cobrei para saber mais do que eu poderia saber com a idade ou experiência que eu tinha. Que eu me cobrei para ser alguém que eu ainda não era. Que eu me culpei por não ter tomado decisões como essa pessoa que eu supostamente já deveria ser. Não porque eu não sou capaz de ser ela, mas porque eu simplesmente não cheguei nesse lugar ainda. A gente consegue pegar atalhos até certo ponto, ler a respeito, estudar o que fazer; mas é só com a experiência que conseguimos realmente entender o que aquilo significa e descobrir a pessoa que somos nesse novo cenário. A reflexão vale para o passado, mas vale também para todas as vezes que nos deparamos com algo novo que nos era totalmente desconhecido antes. Não tem como saber tudo antes do tempo.
E nessa coisa de tentar bancar uma imagem de algo que ainda não somos, deixamos de aproveitar o momento em que estamos, com toda a sua gama de possibilidades e todo o privilégio de ser iniciante que talvez nunca mais teremos da mesma forma.
Do alto de quem já está há uns bons anos fora do ensino médio, essa divisão que Molly faz das pessoas e de si mesma parece meio absurda, mas eu entendo essa forma de pensar. Crescendo nos anos 90 e 2000, a gente era bombardeado de estereótipos adolescentes por todos os lugares, especialmente nos filmes estadunidenses. A menina inteligente e esquisita que dá a volta por cima e tem a vida dos sonhos e o garoto bonitão e popular que agora está acabado e perdeu toda a graça. É um clássico. Mas a vida não é assim tão simples e as pessoas não são assim tão unidimensionais. É o que talvez a gente tenha descoberto desde que deu adeus à escola e é o que Molly vai descobrir nessa noite caótica.
Colocar-se acima de seus colegas atrapalha Molly de viver a plenitude da sua adolescência, com todos os sentimentos confusos e impulsividades que esse momento pode ter e que ela tem dentro de si. Também dificulta que ela veja seus professores como os adultos cheios de falhas e perdidos que eles são. Dificulta até que ela veja Amy de verdade. Aos construir essas barreiras para se proteger, ela também impede que todos a alcancem e façam parte da sua vida genuinamente.
É interessante perceber como os seus colegas mudam com o andamento do filme. Não porque eles mudaram realmente, mas porque sempre estivemos os vendo pelas lentes de Molly. Conforme a armadura vai cedendo, ela (e nós) vamos vendo que aquelas são também pessoas complexas, com sonhos e inseguranças, que são na verdade bastante legais e que só estão ali fazendo as coisas que mais gostam enquanto se importam também com o próprio futuro. Elas percebem que ninguém cabe na caixa em que elas as colocaram, incluindo elas mesmas.
E isso é extremamente libertador.
O que Molly e Amy vivem em uma noite é um intensivo de quebra de estereótipos em um momento em que elas estão bem abertas para experimentar e dispostas a perceber que elas também são um estereótipo aos olhos dos outros. Mas a verdade é que esse é um trabalho de uma vida inteira que nem sempre é simples e a gente nunca vai parar de precisar relembrar disso, tanto nas nossas relações com os outros, quanto com nós mesmas. E claro, lembrar que essas descobertas podem ser muito mais divertidas do que a gente imagina e que a versão de nós que nos espera do outro lado dessa fenda pode ser muito mais interessante do que jamais sonhamos.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Booksmart está disponível na Amazon Prime.
Informações extras
- Esse foi o filme de estreia na direção da atriz Olivia Wilde, que você com certeza já viu em vários outros filmes por aí. É engraçado lembrar que ela própria atuou em um drama adolescente anos atrás, fazendo um dos pares românticos problemáticos de Marissa na série The O.C.
- A atriz Kaitlyn Dever, que interpreta Amy, estará na segunda temporada de The Last of Us (sobre o qual já falamos aqui!), que tem previsão para estrear apenas em 2025.
- Amy é uma personagem lésbica que ainda não teve nenhuma experiência com garotas e tem várias inseguranças com isso. No filme Está tudo bem comigo? que entrou no catálogo da Max recentemente, Dakota Johnson interpreta uma mulher de 30 e poucos anos que está se descobrindo lésbica agora e tem inseguranças muito semelhantes às de Amy, com o peso de achar que ela já devia ter descoberto tudo isso antes. É um bom exemplo do assunto da edição de hoje e de como a gente está sempre nesse processo de se descobrir, quebrar estereótipos e perceber que ainda não sabemos tudo.
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Lu, tô atrasada na sua News desde essa edição. Eu amo esse filme e seu texto me fez querer rever. 💌
quando eu era mais novo, achava que todos os adultos eram muito bem resolvidos, com vidas estáveis e um futuro claramente definido. daí a gente vira adulto e percebe que não é nada do que venderam… 😂😂😂