Andanças #50: De repente 30
Será que a gente realmente deixa de ser alguma coisa para se tornar outra?
Nosso passeio de hoje tem aquele ar de um velho caminho querido e conhecido que havíamos esquecido que existia. Você provavelmente conhece a história: Jenna Rink (Christa B. Allen/Jennifer Garner) é uma garota que, em seu aniversário de 13 anos, deseja ter 30 - a “idade do sucesso”. O que Jenna não esperava é que o seu desejo se tornaria realidade e ela se veria, de repente, 17 anos no futuro. Do dia para a noite, ela tem que aprender a se virar como a mulher adulta que aparenta ser pelas ruas doidas da cidade de Nova York. O problema é que, internamente, ela só tem 13 anos e não faz a menor ideia de como chegou ali e nem o que aconteceu durante todos esses anos. Jenna percebe que conseguiu tudo que mais queria - e também que isso teve seus preços. Nas andanças pela cidade, vai tentando decifrar quem realmente é, enquanto aproveita o seu sonho realizado e lida com as ações da sua versão de 30 anos.
Há exato um mês atrás, completei 30 anos.
Para a pré-adolescente dos anos 2000 que eu fui, é impossível chegar nessa idade e não pensar naquele “30, a idade do sucesso” que a gente conhece tão bem. Eu decidi que faria uma edição de De repente 30 (13 going 30, 2004, dirigido por Gary Winick) no meu aniversário desde que comecei a Andanças e, na minha elaboração, o texto giraria em torno justamente dessa ideia de sucesso e o que eu pensava disso agora que tinha chegado nessa idade - afinal, seriam os 30 realmente a idade do sucesso? Fiz meu planejamento, fui desenvolvendo a ideia central do meu argumento por meses, já tinha subtítulo pronto, a crítica à comédia romântica na ponta da língua e muito o que dizer sobre as duas versões da nossa protagonista.
Só que a última vez que eu assisti esse filme inteiro foi com 13 anos.
E aí eu assisti ele de novo com 30 e tudo foi por água abaixo.
Eu sabia que veria na Jenna adolescente uma versão de mim mesma nos anos 2000, folheando minhas revistas e querendo ser algo que eu ainda não era. Sabia também que, em certa medida, eu entenderia melhor agora as escolhas feitas pela Jenna de 30.
O que eu não esperava é que, do alto dos meus 30 anos, eu iria me identificar com a Jenna de 13 completamente perdida na vida da Jenna de 30.
Na minha cabeça de adolescente, o tempo era algo muito linear e era somente essa parte que eu conseguia interpretar do filme. Toda essa história de Jenna era pura e simplesmente a mágica da ficção acontecendo e existiam sempre duas personagens - a adolescente e a adulta - que calharam de fazer meio que uma troca de corpo e consciência, como um Sexta feira muito louca em que a gente visse só a Lindsay Lohan no corpo da Jamie Lee Curtis. Nunca passou pela minha cabeça interpretar essa troca como uma metáfora para uma ideia de uma não-linearidade do tempo.
A gente costuma pensar que a vida é feita de passagens bem definidas que, uma vez atravessadas, deixam para trás tudo que existiu antes. Queremos eliminar todo traço da infância quando nos tornamos adolescentes, achamos que nos transformamos em jovens adultos quando atravessamos os 20, que definitivamente somos adultos nos 30. Vemos as pessoas que cuidaram de nós enquanto crescíamos como esses seres que sempre foram os 100% adultos que conhecemos. Pensamos que cada fase é algo completo em si mesmo que não permite permeabilidades com nenhuma outra fase da vida. E, quando identificamos esses momentos em que as outras versões de nós transbordam na superfície, achamos que algo está errado. Que eu ainda não sou adulta o suficiente.
Mas será que a gente realmente deixa de ser alguma coisa para se tornar outra?
Meu palpite, depois de ver o filme e viver essas semanas com ele em mente é que não: a gente está sempre sendo tudo ao mesmo tempo.
Foi a cena do táxi que me pegou. Ainda meio desnorteada e querendo saber mais do que aconteceu, Jenna tenta pegar um táxi para falar com seu melhor amigo de infância, Matt (Mark Ruffalo). E ali, na saída do prédio onde ela é, em tese, uma figura poderosa, ela não faz a menor ideia de como conseguir chamar um táxi na loucura da cidade onde está. Ela pede licença, pede desculpa, tenta de formas muito acanhadas chamar a atenção de algum dos carros que passavam correndo pela Madison Avenue. Vendo aquela Jenna aparentemente adulta sendo e se sentindo só uma garota no caos da cidade grande me fez pensar o quanto, em muitas situações, em me sinto assim também.
Slow down, you crazy child
You're so ambitious for a juvenile
But then if you're so smart
Tell me why are you still so afraid?
Nós somos mais confiantes quando transitamos por situações e lugares que nos são conhecidos, mas a coisa muda de figura quando algo novo, não planejado, imprevisível, caótico e muito maior do que nossa capacidade de controle acontece. Acho que não importa se temos 30, 60 ou 90: sempre existirão aquelas situações que nos tirarão o chão, nos revirarão do avesso, nos farão nos sentirmos pequenos diante da imensidão de uma vida que a gente compreende cada vez menos. E talvez compreender cada vez menos seja justamente um sinal do amadurecimento: nós começamos a não carregar mais tantas certezas quanto antes, porque já vimos várias delas caírem por terra inúmeras vezes. Os vinte anos, principalmente, são uma eterna insistência em continuar levantando depois de ver nossas fantasias adolescentes se dissiparem uma por uma. Ao 30, a gente talvez comece a entender que, na verdade, não sabe de nada. Que, não importa quanto tempo já tenhamos vivido, sempre vai existir algo que a gente nunca viu, que a gente não sabe como lidar.
Que atire a primeira pedra quem, em um momento de crise, não quis apenas “ar, um copo d’água e um travesseiro fofo”. Quem não quis voltar para o seu lugar seguro da infância quando tudo está desmoronando. Diante de alguns momentos da vida, seremos sempre apenas aquelas adolescentes perdidas de novo.
As últimas semanas dos meus 29 e as primeiras dos meus 30 foram turbulentas. Uma mistura de emoções incríveis e outras muito tristes que eu ainda estou tentando processar. Vi a vida chegar e a vida ir, fui novata e velha conhecida, me vi de volta às raízes e fui mais longe do que já tinha ido nos últimos anos. Me locomovi mais do que eu esperava, chorei muito mais do que eu esperava. Foram semanas de extremos. Eu me senti só uma criança em diversos momentos, ainda muito nova para compreender algumas coisas que talvez só virão com o tempo e a experiência. Por outro lado, em outras situações, eu me vi como a adulta que eu às vezes esqueço que sou, naquela história de ainda não se achar adulta o suficiente. Percebi que eu sei lidar com crises, sei brigar, sei me guiar por situações novas, socializar com pessoas que eu não conheço, mover o que precisa para as coisas funcionarem. Que eu sei dar suporte, orientar e ser apoio.
A gente vai crescendo e aprendendo a ser um pouco mais do que já fomos, mas acho que todas essas versões permanecem vivendo dentro de nós. E não só a criança com medo, mas também aquela ingênua e criativa, a adolescente confiante e sonhadora, a jovem ousada e corajosa, tudo que já entendemos como fazer, todas aquelas pequenas adultezas que fomos aprendendo no caminho. E se a Jenna não tivesse se transportado para sua versão mais velha, mas só despertado no corpo adulto que deixou sua criança interior de lado? Em alguma medida, aquela Jenna de 13 anos sempre esteve ali, do contrário ela não trabalharia na revista e não teria um closet exatamente como da reportagem que viu naquela época. Me peguei pensando no quanto a vida que eu vivo hoje e as escolhas que eu fiz são resultado de diversos sonhos e vontades mais profundos que já habitavam a mente da Luisa de 13. A gente se transforma de muitas maneiras, mas talvez uma espécie de essência permaneça, alguma coisa que sempre esteve e sempre estará ali conosco.
“Acho que nós… Todos nós queremos sentir alguma coisa… que esquecemos ou abandonamos. Talvez porque não tenhamos percebido o quanto deixamos para trás. Precisamos nos lembrar do que já foi bom. Se não… nunca saberemos reconhecer o que é bom, nem que esteja na cara.”
Quem nunca brilhou de alegria quando se viu realizando um sonho antigo, antiguíssimo? Quem não se sentiu confortável em suas próprias versões de festas do pijama e radiante quando finalmente pode comprar com o próprio dinheiro coisas que não podia ter quando criança? Que cantou a plenos pulmões as músicas que ouvia quando adolescente? Com 30, podemos viver a plenitude das experiências sem se preocupar com os clubinhos, com as limitações, com o que vão pensar da gente. Temos a vantagem de poder soltar nossa adolescente interior e se jogar nas coisas com a liberdade que a vida que temos hoje nos permite, mesmo que isso se dê apenas em pequenos prazeres.
Assistir o filme agora foi, talvez, uma experiência ainda mais divertida do que quando eu tinha 13 porque, de certa forma, aquela Jenna adolescente vivendo uma vida de 30 fala diretamente com a garota de 13 anos que vive dentro de mim e que se emociona e se diverte horrores com cada situação engraçada que nossa protagonista passa. Eu até torci pelo final feliz com o casamento no quintal, para o pavor da minha versão de 22 anos.
Antes, eu planejava escrever sobre o que eu falaria para a Luisa de 13, agora com 30. Eu falaria sobre como a vida que ela sonhava e desejava está hoje aqui (com suas adaptações - somos adultos afinal de contas), sobre como a gente já fez e viu mil e uma coisas nesses 17 anos. Que, como a Jenna, a gente também dançaria Thriller na frente de uma monte de gente dali a 3 anos, provavelmente por causa do filme. Que dali a 10 anos, em uma tarde de verão quente, a gente estaria fazendo um piquenique no mesmo lugar onde ela faz suas fotos para a revista. Que a gente também viveria nossas comédias românticas doidas e descobriria que tanta idealização nunca dá certo. Que em 2023 a gente continuaria usando um all star surrado, comendo um docinho antes do almoço, que volta e meia a gente vê o vídeo da Avril Lavigne cantando ao vivo My Happy Ending e que a letra nunca saiu da memória. Que a gente continua indo na biblioteca e pegando mais livros do que consegue ler, fazendo amizades virtuais e colecionando idas ao cinema. Que nenhum dia desses 17 anos foi monótono.
Mas a verdade é que eu não preciso falar nada disso.
Esse é um corpo de 30, com todos os seus cabelos brancos, linhas de expressão e efeitos da gravidade que ele vai ter cada vez mais. Mas foram todas essas Luisas que vieram antes que fizeram e fazem esse agora acontecer. Elas estão aqui o tempo todo. O que eu preciso dizer talvez é que: olha, a gente sabe mais coisa agora. A gente já não comete mais os mesmos erros (a maioria, pelo menos), a gente tem mais conhecimento, mais experiência, mais recursos de todos os tipos para dar sustentação ao que queremos ser. A gente não precisa mais ter os mesmos medos e inseguranças.
E o sucesso? Bom… sei lá. Talvez sucesso mesmo seja ser o mais profundamente aquilo que somos dentro do que nos é possível.
E o que a gente precisa é lembrar que, não importa quantas turbulências ainda aconteçam, quantas montanhas a gente ainda tenha que atravessar, não importa o quanto a gente mude, se transforme, amadureça, tem sempre aquela pequena versão de nós mesmas pronta para guiar o caminho e que a gente não pode se esquecer nem se perder dela. Porque é com ela que a gente se diverte - e que podemos ser a melhor versão de nós mesmos.
Slow down, you're doing fine
PS: Essa edição foi escrita na versão de 30 anos do meu escritório, com a mesa virada para a janela do segundo andar, dois gatos bebês dormindo do lado do computador, uma luz quente em um canto, a mesa de desenho em outro e muitos livros. Uma versão um pouco mais elaborada do que aquela do meu escritório de 3 anos que vocês podem ver na foto acima.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
De repente 30 está disponível para alugar no Amazon Prime.
Links extras
- Não é um link, mas um pequeno parênteses: fiquei pasma quando descobri que a frase “30, a idade do sucesso” só existe na versão dublada do filme. Fiquei pasma de novo quando percebi que eu nunca tinha assistido esse filme no áudio original. Foi até meio estranho assistir legendado, confesso.
- Falando de Nova York, preciso fazer uma atualização da nossa edição #46 de Sex and the City: desde que ela saiu, acho que And just like that… melhorou muito e está com ares muito mais parecidos com a série original. Não fui muito fã de como essa temporada terminou, mas gostei de acompanhar a melhora. Ainda sobre isso, esse artigo de opinião do The New York Times (em inglês) dialoga muito com aquela edição, falando sobre como a preocupação financeira desapareceu ao longo do tempo na história.
- E atualizando também nossa edição #49, cheguei com um dia de atraso em Montevidéu por conta do clima, mas fora isso a viagem foi incrível. A cidade é linda e fazia tempo que eu não andava tanto. Tive várias impressões legais nessas andanças e elas com certeza irão aparecer por aqui ao longo do tempo. Ah, e se você tiver algum filme andante uruguaio para me indicar, me escreve!
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Luísaaa! Feliz aniversário de novo :) Nossa, adorei esse texto e me lembrou uma coisa que vi uma vez no instagram (e nunca soube a autoria): “O que ninguém te conta sobre aniversários é que quando vc fica um ano mais velha você ainda tem todas as idades que teve antes dessa. Quando vc acorda no dia do seu aniversário, você espera se sentir com a sua nova idade mas você não sente. Você abre os olhos e é tudo exatamente como era ontem. Eu ainda me sinto como se tivesse 23, e eu tenho, atrás do ano que me fez ter 24. Um dia eu posso dizer uma coisa idiota, e essa é a parte de mim que tem 13 anos. Ou talvez eu não me sinta tão confiante, e essa é a parte de mim que tem 15. Talvez eu queira muito aprender algo novo, e essa é a parte de mim que tem 10. E se por qualquer razão eu precisar chorar como um bebezinho, essa é a parte de mim que tem um ano. Porque a maneira que a gente envelhece é mais ou menos como uma cebola, um ano dentro do outro, e os nossos aniversários são todos comemorações dos anos anteriores”.
Morrendo de amor com sua foto sentadinha na mesa cor-de-rosa! Muito fofa. Parabéns atrasado, caí aqui depois de ler seu comentário na publicação mais recente da Lu. Que surpresa boa <3 Uma das coisas que mais gosto aqui no Substack é o quanto as newsletters conversam sem que a gente se dê conta. Revisitei um texto antigo que escrevi justamente aos 30 anos, após rever Donnie Darko e De Repente 30. Um dia depois, vim parar nesse texto gostoso de se ler sobre um dos filmes que abordei na minha news.
De repente 30 é perfeito para nos reconciliarmos com nossas crianças (e adolescentes) interiores. Não me lembrava de ser tão simples e ter uma vibe tão boa. Revê-lo anos mais tarde só fez crescer o amor. Daqueles "abraços" que a gente nem imagina que precisa, mas acabam vindo em boa hora.