Andanças #87: Um dia
As voltas e reviravoltas da vida - e uma das histórias de amor mais bonitas e devastadoras que eu já vi
“Para que servem os dias? Dias são onde vivemos. Eles vêm, nos acordam, um após o outro. Eles servem para sermos felizes. Onde mais viver a não ser nos dias?”
Curitiba, 09 de julho de 2024.
As coisas parecem estar mudando. Eu não sei ainda para qual direção, não sei quais os detalhes dessa nova vida que parece estar se formando para mim. Mas dá para sentir a mudança vindo, assim como ela foi sentida em tantos outros julhos antes desse. Dessa vez, estou em um período de encerramento de um ciclo bem longo e em julho do ano que vem as coisas estarão diferentes independente da minha vontade. Mas eu não tenho como dizer como. Assim como eu também não pude prever todas voltas que a vida deu nos últimos 10 anos. Em cada um desses julhos, eu estive encerrando e começando fases - afinal, esse também é o mês do meu aniversário - em lugares diferentes da vida. Geograficamente falando e também metaforicamente. Em um ano eu tinha medo do que estava por vir, no outro, eu estava vivendo o que eu achava ser o auge da minha vida até então. Mas aí no ano seguinte eu estou lá mais uma vez na mesma cama de infância, em mais um inverno gelado da minha cidade natal. Vem outro auge, períodos intensos não só na minha vida pessoal, mas também no mundo. Calmarias, caos, medos e relaxamento - às vezes até tudo acontecendo ao mesmo tempo nos mesmos 31 dias. Olhando para trás, em cada um desses julhos eu vivi algo que me remexeu e me trouxe até onde eu estou hoje: exatamente nesse sofá, nessa noite fria e gelada de Curitiba, escrevendo esse texto para você, onde quer que você esteja na vida nesse momento - algo que a minha versão de 2014 provavelmente jamais sonhou que faria um dia.
Olhando para todas as coisas que esses anos me trouxeram, é muito interessante perceber o quanto, muitas vezes, elas começaram com uma movimentação muito pequena. Um acaso, o lugar certo na hora certa, uma ideia que começou minúscula em uma conversa, um “e se eu tentar isso?”. Ou então um encontrão sem querer, seguido de um pedido de desculpas. Pouquíssimos segundos que podem não dar em absolutamente nada… ou mudar completamente tudo.
E é com um encontrão desses que começa o nosso passeio de hoje.
Edimburgo, 15 de julho de 1988.
É noite de festa de formatura na Universidade de Edimburgo, na Escócia. De um lado, temos Dexter (Leo Woodall): um rapaz rico, bonitão e extremamente popular. Do outro, temos Emma (Ambika Mod): uma garota meio nerd, que dança junto do seu pequeno grupo de amigas. Os dois esbarram, olhares são trocados, uma química paira no ar em meio a champanhe que voa sob as cabeças do jovens animados e esperançosos com o futuro. Podia acabar aí e ambos seriam apenas um nome vagamente lembrado na memória universitária de cada um.
Mas Dexter ficou curioso e vai atrás de Emma, o que dá início a várias horas de conversa que se estendem por uma caminhada noturna pela cidade até em casa e uma grande andança pela cidade no dia seguinte, até uma montanha chamada Arthur’s Seat. Há um romance óbvio e a linguagem corporal de ambos indica que eles gostariam de muito mais, mas algo os segura de volta. Emma, principalmente, está decidida a não ser apenas “uma nota de rodapé” na vida de Dexter, não quer ser mais uma garota com quem ele ficou e de quem se esqueceu. Eles se despedem com promessas de continuar amigos e se manter em contato a partir de onde quer que a vida os leve agora que a faculdade acabou e que eles partirão para outras cidades.
Esse primeiro encontro de Emma e Dexter é só início de uma grande andança que acompanharemos aqui, avançando por vinte anos na vida dos dois.
Um dia (One day, 2024) é um minissérie da Netflix que adapta o livro de mesmo nome (2009) de David Nicholls. Talvez você lembre de outra adaptação dessa história, relativamente recente: o filme Um dia (One day, 2011, dirigido por Lone Scherfig), com Jim Sturgess e Anne Hathaway nos papéis principais. Como aqui se trata de uma minissérie de 14 episódios, há tempo de sobra para desenvolver muito mais coisas em mais detalhes: em cada episódio, pulamos pelo menos um ano na vida dos dois e os vemos sempre no mesmo dia 15 de julho, mesma data em que eles se conheceram em 1988. Conforme cada um vai seguindo com a própria vida, vamos observado na janela dessas 24 horas como as coisas estão indo para eles. Às vezes eles estão juntos no mesmo lugar e às vezes acompanhamos cada um separadamente.
De início, pode parecer que essa história cai naquele velho clichê da garota inteligente que se apaixona pelo menino popular e vice-versa. Mas, assim como falamos na edição passada, a vida é muito complexa que os estereótipos que aprendemos sobre os outros (e nós mesmos) quando somos jovens. É muito bonito ver um filme ou série que consegue não só captar isso mas nos mostrar como tudo vai mudando ao longo do tempo, conforme a idade passa e uma gama muito maior de experiências acontecem com nossos personagens. Vemos que ninguém cabe de verdade em nenhum desses papéis que um dia, lá atrás, definiram muito da nossa existência social no mundo.
Em um ano você bem, no outro pode ser que não. Demissões, mortes, doenças, uma pandemia no mundo inteiro - há uma infinidade de coisas que podem acontecer com você ou com pessoas próximas que tem o poder de te impactar profundamente. Da mesma forma, pode ser que em um ano você esteja bem longe de onde achava que estaria naquele momento da vida, mas passam alguns julhos e tudo muda - e lá está você vivendo a vida que sempre sonhou. A gente não costuma ver tanto por aí representações que mostram o que vem depois do final feliz ou do final trágico. A Trilogia Before talvez seja um ótimo exemplo disso, com um intervalo também de 20 anos entre o primeiro filme e o terceiro. Mas mesmo assim, os saltos maiores no tempo fazem a gente ver só uma parte da história toda. O que aconteceu na vida de cada um em cada ano depois daquele primeiro encontro em Viena? Quais foram os altos e baixos até chegar à situação de Paris? E depois, até a Grécia?
A gente sabe como são essas voltas todas na nossa vida cotidiana, o que pode fazer parecer que ela não é tão interessante quanto o que vemos nos filmes. Mas já parou para pensar que existem vários filmes inteiros focados só nas poucas horas do dia de uma pessoa? Talvez você tenha vivido horas como essas e elas podem ter sido absolutamente memoráveis na sua vida, mas só você sabe de todos os outros dias comuns, em que nada de incrível aconteceu, que vieram depois dela. Aquele era só um recorte, só um foco em alguns minutos dentro de uma vida inteira muito mais ampla. O que não quer dizer que esses minutos não façam diferença em tudo que vem depois, como bem sabemos.
E é justamente nisso que Um dia vai fugindo mais e mais do clichê conforme avançamos nos episódios e nos anos de vida de cada um. Não, a estudante brilhante não necessariamente vai ter um futuro promissor imediato. O cara popular e rico vai continuar vivendo a vida dos sonhos, porque afinal essa é a sociedade capitalista e patriarcal em que vivemos. Os princípios de cada um são testados o tempo todo conforme novas situações lhes acontecem. As pontas soltas que eles nunca resolveram entre si tomam outras proporções com o passar dos anos, as arrogâncias são esmagadas pela realidade, os ideais deixam de fazer sentido e estar perdido tem um prazo de validade.
Vemos a idade chegando e com ela novas arrogâncias sendo cultivadas, traumas se aprofundando e influenciando os passos seguintes - não só os deles, mas os nossos aqui fora também. A vida pega nossos medos e nos joga contra a parede com eles: olha só, vai lá, resolve, passou da hora já. Até as nossas opiniões, como espectadores, são massacradas durante a série: achamos que certos personagens são uma coisa e mudamos nossa perspectiva conforme os anos (e os episódios) passam. Às vezes, as pessoas até são aquilo que parecem ser naquele momento - arrogantes, esnobes, ciumentas, otárias -, mas o tempo passa e faz todo mundo bater com a cara no chão em algum momento. A vida de ninguém é tão simples quanto parece e o que vem disso pode ser alguém muito diferente do que existia antes. Nem sempre, claro, mas é sempre possível se surpreender com as pessoas. Ninguém é estático nessa vida.
É difícil um série grande como essa ser andante o tempo todo, mas uma boa parte da história entre Emma e Dexter acontece andando pelas ruas de onde quer que eles estejam. Passeamos aqui por Edimburgo, Roma, Grécia, interior da Inglaterra, Paris e, na maior parte do tempo, pelas ruas de Londres. Seja nesses inícios, para se conhecer melhor; seja depois de tempos, para se atualizar do que aconteceu; seja em um momento de limite emocional em que todas as insatisfações são jogadas no asfalto entre os dois. A cidade também é sempre muito presente na vida individual de cada um: andanças tranquilas por verões europeus, vais e vens de um trabalho itinerante na estrada, caminhadas noturnas pelo subúrbio ou por cidades famosas. É que, se a gente vai falar de como a vida acontece, não tem como deixar a rua de fora. É lá fora que a gente trabalha, se inspira, conversa, conhece pessoas, ama, briga, tem alguns dos melhores e dos piores momentos das nossas vidas, encontra soluções e mil problemas. É na rua que a gente descobre quem é e o que pode ser. Não teria como falar de uma vida sem falar dos lugares por ela passou e esses lugares tem uma importância primordial nessa história, algo que a gente só vai ter uma dimensão do quanto, depois que esses vinte anos passam. E não é assim na nossa vida também?
Eu nunca li o livro de Nicholls, mas assisti o filme de 2011. Lembro de ter gostado, mas ele não me chamou muito a atenção. Lembro de ser andante e por isso ele estava na nossa lista para edições futuras. Mas já no primeiro episódio a série me ganhou por completo e foi um esforço não assistir todos os episódios um atrás do outro. A relação de amor entre Emma e Dexter é maravilhosamente desenhada aqui de um jeito que faz a gente se apaixonar por eles e odiar eles e amá-los de novo profundamente com o tempo. Essa é uma das histórias de amor mais bonitas e mais profundamente devastadoras que eu já vi e a série sabe como contar isso para nós. Mesmo sabendo a história do filme, a sensação é que eu vi outra coisa, muito mais complexa e que me envolveu emocionalmente de uma forma infinitamente maior. Está para além da duração e do tempo para detalhar: a química entre os atores é muito boa e tudo é muito bem feito aqui. Eu sempre soube qual era o desfecho dessa grande andança, mas isso definitivamente não me impediu de chorar desesperadamente no fim. Tem uma delicadeza durante toda a série que chega em um ápice no final e faz a gente pensar em tantas coisas, que dá vontade de chorar de novo só de lembrar.
É inevitável retomar tudo que aconteceu antes, todas as voltas e mais voltas da vida até chegar ali. E aí a gente vê que mesmo com todos os medos, mesmo com tudo que pode dar muito errado e tudo que pode dar muito certo (e ambas as coisas vão acontecer inevitavelmente), vale muito a pena viver tudo isso. A gente sempre fez o que pode fazer naquele momento e isso basta. A vida segue e ficam com a gente os aprendizados de todas as dificuldades que superamos, todas as coisas boas que vivemos e, principalmente, de todas as pessoas que mais amamos e que nos amaram de volta. Em cada pequeno pequeno dia, cada comum e extraordinário 15 de julho.
E pensar que tudo isso veio de um rápido esbarrão em uma festa.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Um dia está disponível na Netflix.
Links extras
- Você pode assistir o filme de 2011 no Telecine (e é possível fazer um teste grátis do streaming pelo Amazon Prime).
- A trilha sonora da série é ótima, com Lilac Wine, de Jeff Buckley lindíssima aqui <3
- David Nicholls também escreveu outro livro que foi adaptado para o cinema: Garoto nota 10 (Starter from 10, 2006, dirigido por Tom Vaughan, disponível na Max), que conta com um elenco estreladíssimo e bem conhecido se você está por dentro das produções britânicas: James McAvoy, Rebecca Hall, Benedict Cumberbatch, Alice Eve, Catherine Tate e Mark Gatiss, só para citar alguns.
- No último cafezinho, comentei sobre a novidade da Andanças nesse mês de julho (que também é mês de aniversário da newsletter!): agora teremos uma seção específica para críticas de filmes variados que estão sendo lançados no cinema. O primeiro texto sairá logo logo e é do filme Twisters, que estreia nos cinemas amanhã. Você poderá ler o que eu achei sobre ele aqui.
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atrasadíssima no comentário mas eu assisti em uma noite e uma madrugada e achei q nunca mais ia parar de chorar rs. além da série ser linda a trilha sonora é perfeita
Eu amei essa série e seu texto me fez amar ainda mais! Quanta delicadeza na sua escrita 🥹