Eu não sei dizer quando algumas coisas começaram. Não sei se elas tem um início claro, para falar a verdade. Os bloquinhos de madeira coloridos com os telhados vermelhos e pequenas pontes? Os livrinhos de contos de fadas baratos misturados nas revistas na fila do caixa do supermercado? As fitas VHS que eu ganhei quando nem sabia falar direito e que assisti sem parar? As canetinhas coloridas e os vários desenhos e historinhas feitas nas salas de recreação onde eu ficava enquanto meus pais faziam compras, na época em que elas ainda existiam?
O que é isso que faz a gente amar tanto algumas coisas específicas ao longo da nossa vida? Que faz com que, crianças, nós mergulhemos profundamente em algo que, mesmo quando a gente deixa de lado mais tarde, sempre acaba voltando, reaparecendo quando menos esperamos. É aquele conjunto de coisas que faz seu coração vibrar, seu ser se sentir inteiro.
Não seria essa a parte mais cruamente verdadeira de quem somos?
Nosso passeio de hoje é pela cidade cravada no meio dos Estados Unidos que dá nome ao filme: Columbus (2017, dirigido por Kogonada). Columbus é uma cidade curiosa: localizada no interior do estado da Indiana, tem pouco mais de 51 mil habitantes - uma cidade pequena como tantas outras espalhadas pelo país. Ela é, entretanto, considerada um paraíso da arquitetura moderna. Segundo o site visit Columbus, a cidade é “um dos raros lugares na terra onde a ideia de que a arquitetura pode melhorar a condição humana foi colocada em teste”. O guia do visitante lista ali mais de 90 edificações e peças públicas de arte projetadas por artistas e arquitetos internacionalmente renomados. Em Columbus, a cidade é uma protagonista tanto quanto nossos personagens - se não até mais.
Casey (Haley Lu Richardson) é uma jovem de cerca de 20 anos que viveu praticamente sua vida inteira na cidade. Ela trabalha na biblioteca e sabemos que ela não foi para a faculdade após o ensino médio, como a maioria dos seus colegas. Apesar de receber uma proposta para estudar na costa leste, há algumas questões que a fazem ficar. Casey gosta de Columbus, mas quer permanecer ali pela mãe, com quem uma relação complexa na qual ela assume o papel de adulta responsável. Casey também tem um paixão profunda por arquitetura.
Jin (John Cho) é um homem na faixa dos 40 anos que trabalha como tradutor e mora em Seoul, na Coreia do Sul. Ele vem até Columbus às pressas porque seu pai, um arquiteto renomado que estava visitando a cidade, passou mal e precisou ser hospitalizado ali. Há outra distância além da geográfica entre ele e o pai - distância que se vê anulada quando ele se hospeda no quarto em que o pai estava, cercado das coisas dele.
Jin e Casey se encontram sem querer em uma pausa para um cigarro e percebem que o acaso que os conecta: Casey ia na palestra que o pai de Jin faria ali. É a fagulha que dá início a uma série de passeios e conversas pela cidade nos dias seguintes, em que Casey vai apresentado a Jin seus prédios favoritos e por onde eles vão se tornando um apoio emocional um para o outro.
Ainda que eu não saiba dizer como exatamente as coisas começaram, eu me lembro bem de alguns momentos e sensações que tive quando já estava um pouco mais velha e conseguia discernir melhor as coisas. É aquele clique, quando algo parece se juntar e fazer sentido dentro de nós, uma epifania. O tempo para por um instante e tudo parece se mover em câmera lenta, como se nós tivéssemos sido transportados para uma outra dimensão. É acalentador e assustador ao mesmo tempo, uma agitação que percorre todo o corpo e uma paz que acalma o espírito. Você percebe que tudo que escolheu tem um porquê, que todos os seus passos até aqui vieram de uma certa vontade, de um certo interesse, de um motivo. Que mesmo que sejam várias coisas e todas diferentes, em um algum lugar dentro de você elas se unem e fazem sentido. É, para mim, a sensação mais palpável da mágica, do mundo que diz de volta para nós: É aqui.
O que é aquilo que você ama, com a maior paixão que você consegue carregar no seu coração? Com o mais profundo dos sentimentos que o seu corpo mortal e humano consegue sentir? Que preenche a sua alma?
Casey é uma mulher jovem que calhou de morar em uma cidade onde a arquitetura moderna é um de seus principais atrativos, mas é recente a sua descoberta por esse amor. Ela conta para Jin, em uma das cenas mais lindas que eu já vi, como isso começou sem querer, quando ela estava ali observando um prédio que ela já havia visto a vida inteira. É um amor fresco, apaixonado, livre de todos os perrengues que a gente sabe que toda profissão tem. Ela ainda não passou pela faculdade e todas as dificuldades que surgem aí, todos os ranços e amarguras que vem da realidade. Ela vê como uma observadora externa, vivendo o momento anterior à bifurcação de caminhos que faz as coisas mudarem para sempre.
É diferente com Jin, que cresceu no meio de tudo isso e não sente nada a respeito. Ele já viveu mais, tem rancores acumulados com o pai e, aparentemente também com o próprio trabalho - que ele diz não ser tão legal quanto parece. Vem o ceticismo, o sarcasmo, a pressa em sair da situação em que está - camadas acumuladas que soterram o amor por algo em algum lugar lá no fundo. Dá para ver um pouco disso também em Gabriel (Rory Culkin), o colega de trabalho de Casey, que diminui a própria formação. Eu entendo, não se trata exatamente de uma arrogância, mas de ter vivido com a própria pele a constatação de que a realidade de fazer e viver o que amamos também é complexa, ambígua, contraditória. Que ela nos acolhe e também nos derruba, nos faz bem e, às vezes, mal. Ainda assim o amor escapa pelas falas sarcásticas e cheias de defesas dos dois: são as anotações encontradas no livro estudadas por horas, a tentativa de decifrar e traduzir as anotações do pai, o jeito de falar sobre algo, o brilho no olhar, a atenção dada a alguns detalhes que Casey, com sua outra paixão, não percebe.
Adultos, nós colocamos coisas no nosso caminho. Deixamos que nossas amarguras comandem, que todos os nãos que já recebemos direcionem nossas vontades. A gente cansa, tem medo, desiste, não sabe bem para onde ir e toma o caminho mais seguro. Deixamos, muitas vezes, que os corações partidos nos definam. Que nossos arrependimentos tomem conta como se eles sempre fossem a única coisa que tivemos.
Como se nunca tivesse sido diferente.
Mas a gente sabe que isso não é verdade.
Assisti Columbus pela primeira vez quando tinha pouco mais que a idade de Casey, uns 23 anos. O filme veio em um período em que tudo estava vertiginosamente acelerado e, quando esses momentos da vida acontecem, a gente não raciocina tanto, mas sente muito. Ainda era só o começo, ainda era tudo tão confuso. Eu assisti Columbus apenas nessa vez e ele se tornou um dos meus filmes favoritos, mas eu ainda não entendia bem o motivo, lá atrás. Hoje, em que eu talvez esteja mais próxima de Gabriel e Jin, tudo faz mais sentido.
Um filme andante em que dois personagens discutem arquitetura da forma mais apaixonada que eu já vi no cinema. A fotografia é linda, o uso das cores complementares, os enquadramentos são perfeitamente dispostos e espelhados ao longo do filme, a cena do carro à noite é arrebatadora para mim, assim como todos os closes no rosto de Casey. Está tudo aqui. Todos aquelas pequenas pontes de madeira de brinquedo, os livrinhos, os VHS e os cadernos de desenho. Tudo que fez parte de mim esse tempo todo e continua fazendo. É uma coisa meio irracional mesmo, o poder que um filme tem de tocar nas partes mais profundas do nosso ser, de falar tanto sem falar nada, de fazer a gente pensar e perceber coisas sobre nós mesmos 7 anos depois.
“- Você gosta desse prédio intelectualmente por causa de todos os fatos?
- Não. Eu também me emociono com ele.
- Sim, sim. Me fale sobre isso. O que te comove?
- Eu achei que você odiasse arquitetura.
- Eu odeio. Mas eu me interesse pelo que te emociona, especialmente sobre um prédio.
Columbus para mim é uma grande ode ao amor profundo que temos pelas coisas que nos interessam. Ainda que a arquitetura seja um tema de conhecimento comum entre eles, o que movimenta essa conversa não é um assunto, mas o sentimento. Casey às vezes fala dos fatos como os guias turísticos, mas é quando ela fala mais profundamente sobre o que faz ela se emocionar, sobre o que todos aqueles edifícios a fazem sentir, é que ela brilha. O que os une é a conexão desse amor profundo pelas coisas e também pelas pessoas em sua vida e todos os sentimentos complexos envolvidos nisso.
O filme traz uma sensação de calma que eu não sei explicar. Talvez se sentir perdido tenha a ver com não ouvir aquilo que nós realmente desejamos, aquilo que mais nos toca. Ou então de ter perdido o caminho que nos trouxe aqui, o que nos moveu até esse lugar. Aquilo que lá atrás já nos encantava ainda está aqui dentro - não podemos nos esquecer disso.
Terminei o filme sentindo uma sensação de suspensão do tempo e do espaço, como se tudo estivesse no seu devido lugar. Outra epifania, talvez. Daquelas de saber que é mais ou menos isso que me move, que dá sentido, que faz o coração pulsar. Esse continua sendo só o começo ainda.
Da janela, vejo o prédio imenso do outro lado da rua com suas dezenas de janelinhas iluminadas sob a noite ainda meio escura de lua crescente. Fazia tempo que eu não olhava para ele dessa forma, como quando me mudei para cá e tudo ainda era novo. Faz calor e o ritmo da rua é movimentado, com as pessoas saindo do trabalho e outras tantas passeando com os cachorros. Toca Back to Black, da Amy Winehouse, em algum carro parado no semáforo e do lado de dentro uma gatinha dorme tranquila com a barriga para cima no tapete da sala.
Tudo está aqui. Tudo sempre esteve aqui.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Columbus infelizmente não está disponível para assistir em nenhum streaming no Brasil no momento, mas você pode assisti-lo em alta resolução no Youtube com legendas em inglês.
Links extras
- Columbus foi o primeiro filme com a atriz Haley Lu Richardson que eu assisti, mas ela também atua em Unpregnant, um filme de estrada ótimo e Quase 18, muito bom também. Talvez você a conheça de seu trabalho mais recente na segunda temporada de The White Lotus.
- Falar a partir dos conhecimentos gerais e a partir daquilo que nos toca mais profundamente: um vídeo-ensaio excelente sobre Columbus e as paixões que nos movem e que também moveram a criação do filme (em inglês).
- Columbus é também um dos meus quatro filmes andantes favoritos de todos os tempos e falei dele e dos outros três nessa edição <3
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Lu, sempre fazendo a gente caminhar pelos filmes e sensações.
é tão bonito de ver pessoas falando sobre assuntos pelos quais são apaixonadas, aquele brilho no olho contagiante…