Andanças #98: Emily em Paris
Síndrome de protagonista, nossa intolerância à dor e como a vida hoje é diferente daquela dos anos 90
“Emily em Paris é muito ruim, mas…”
Pesquei essa frase algumas semanas atrás na conversa da mesa ao lado em um café. Achei muito engraçado e uma coincidência enorme, porque já faziam uns dias que eu vinha elaborando na minha cabeça uma edição sobre Emily em Paris (Emily in Paris, 2020-, criada por Darren Star). Desde 2020, quando a série estreou no auge da pandemia, eu sempre assisti os episódios assim que uma nova temporada era lançada e fiz o mesmo desta vez, com a estreia da quarta temporada no mês passado. Fiquei me perguntando porque eu nunca havia pensado em Emily em Paris como uma série andante e cheguei à conclusão de que é porque essa nunca foi uma série que eu gostei, exatamente. Embora eu assistisse tudo, ela nunca me chamou muito a atenção, nunca me fez pensar em muitas coisas e sumia da minha mente assim que eu terminava de maratonar os episódios.
Até agora.
Essa é uma edição sobre a síndrome de protagonista dos nossos tempos, a dificuldade que temos frente à dor (e assistir a dor) e como a vida de hoje é tão diferente daquela dos anos 90 - tanto dentro da tela quanto fora dela.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas de uma Paris romântica, leve, bonita, onde golpes de sorte nos encontram a cada esquina e tudo é possível. Aqui acompanhamos Emily Cooper (Lily Collins), uma jovem estadunidense de vinte e poucos anos que mora em Chicago e trabalha em uma grande empresa de marketing. Emily tem um relacionamento e vive uma vida feliz e realizada nos Estados Unidos, mas tudo vira do avesso quando ela é chamada para substituir sua chefe em um trabalho temporário em Paris. Durante um ano, ela acompanhará o trabalho da Savoir, uma agência de marketing de marcas de luxo que foi adquirida pela empresa onde Emily trabalha. Seu papel ali é trazer uma perspectiva estadunidense para a empresa francesa, mas claro que isso tudo não vai acontecer sem vários atritos.
Chegando em Paris, Emily vai morar em apartamento pequeno no último andar de um prédio antigo, correr todas as manhãs pelas ruas charmosas, mudar completamente seu guarda-roupas para grifes e alta costura e criar um perfil no instagram para mostrar sua vida na cidade, que logo vira um sucesso. Inicialmente ela já estabelece algumas relações: se apaixona pelo vizinho francês que é um chef de cozinha promissor, faz uma amiga francesa estilosa (que calha de ser a namorada do chef) e outra amiga estrangeira que é au pair e também é uma cantora muito talentosa. Ela tem algumas dificuldades na Savoir, especialmente com sua chefe, mas aos poucos vão lhe dando espaço e todos parecem ser conquistados por ela. Sem se esforçar muito, ela vai se tornando não só querida, mas indispensável.
Emily em Paris recebeu muitas críticas quando foi lançada, em 2020. Muitas delas vinham de parisienses destrinchando todas as romantizações que a série faz da cidade e da vida que alguém como Emily (uma funcionária bem paga, mas não mais que isso) levaria ali, além dos vários estereótipos dos homens e mulheres francesas que a série traz e reforça. Ainda assim, Emily em Paris foi um sucesso, chegou na quarta temporada recentemente com uma mudança de cenário para Roma e não parece estar nem um pouco perto da decadência anunciada que se previa lá em 2020.
O que é então esse “mas…” e por que eu entendo o que minhas vizinhas de café queriam dizer sem precisar ouvir o restante da conversa? O que faz a gente voltar para a série ano após ano mesmo com todos os poréns envolvidos? Em outras palavras, por que a gente assiste, mesmo achando ruim?
Talvez você não assista, é claro. Talvez nunca teve vontade de assistir ou tenha largado ela no meio do caminho. Mas não dá para negar que a série persistiu e assisti-la hoje, com um olhar mais afiado do que eu tinha anos atrás, me trouxe várias reflexões interessantes. Não são reflexões que a série incita - e está longe de ter a intenção de incitar -, mas o que ela apresenta a nós e o que ela representa por si mesma diz muito mais sobre a sociedade atual em que vivemos do que parece a uma primeira vista.
Em Sociedade paliativa, o filósofo Byung-Chul Han fala sobre como estamos vivendo uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor, o que traz, por consequência, um estado de anestesia em que toda dor é evitada. Ele explica que a sociedade paliativa é uma sociedade do curtir e que tudo é alisado até que provoque apenas bem-estar. Quando li isso, pensei imediatamente em Emily em Paris.
Sex and the City, série que compartilha o mesmo criador de Emily em Paris e com qual é muitas vezes comparada, era dolorosa em diversos momentos. Tratava de temas complicados que causavam angústias às protagonistas temporariamente ou por vários episódios. Falava sem medo de diversos tabus da época, colocava o dedo em várias feridas que não se limitavam apenas ao contexto nova iorquino dos anos 2000 onde se passava. E colocar o dedo na ferida é extremamente doloroso. Byung-Chul Han diz que é preciso a dor para que seja feito algo diferente, caso contrário, estamos fadados a viver em uma sociedade do igual.
E quando Emily em Paris desvia de todo e qualquer problema, com tensões que, quando acontecem, são rapidamente resolvidas, não é exatamente fugir dessa dor o que ela está fazendo?
Dependendo do que você vê no Instagram (e talvez vejamos coisas parecidas), todos os dias você recebe uma certa dose de perspectivas românticas sobre a vida filmadas de forma cinematográfica, onde tudo tem a estética e o lugar certo para estar. Você também vai ver muita gente usando variações das mesmas roupas e acessórios e vídeos curtos os mostrando nas mesmas ruas. Fotos com as mesmas poses nos mesmos lugares, os mesmos cafés e as mesmas bebidas, tudo com pequenas variações dependendo do país em que se está. Todo mundo também parece estar vendo os mesmos filmes e séries, ouvindo as mesmas músicas hits do momento, lendo os mesmos livros imperdíveis e cultuando as mesmas celebridades.
Não é peculiar o quanto, em vários lugares do mundo, temos romantizado as mesmas coisas? O quanto tudo é meio parecido e, no fim das contas, a gente tenta (e sente que deve, o que faz tudo isso se tornar um problema) levar a nossa vida de forma parecida também?
“Nada deve provocar dor. Não apenas a arte, mas também a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar a dor. […] Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse.”
(p. 14)
Nós sempre somos protagonistas das nossas próprias histórias. Mas o que faz um protagonista é também o erro, a cagada, a fala errada na hora errada, se contentar com o que existe, traçar um caminho que começa em um lugar não muito favorável, os obstáculos, a falta de grana, a falta de experiência, a falta de perspectiva mais ampla. São as falhas, suas consequências e as experiências particulares que trazem também aquelas coisas que fazem um personagem ser único, que constroem o seu gosto e dão a base para os seus desejos e ações no mundo. A gente quer acompanhar uma história em que a pessoa sai de um lugar e chega em outro, quer ver como ela lidou com as coisas que apareceram (porque elas sempre aparecem), quer ver como amadureceu. Ao mesmo tempo, porém, parece que tem sido cada vez mais difícil aceitar tudo isso em nós mesmos, na vida real que a gente vive aqui fora. Nossos erros, nossas falhas, nossas particularidades.
É sem graça assistir uma série em que tudo dá certo para a protagonista e a gente tende a achar muito mais interessante aquelas personagens que dão voltas, são incoerentes e erram. Mas quando é para olhar para a nossa vida, na síndrome de protagonista que alimentamos aqui fora, no fundo a gente quer ter o charme das coisas meio bagunçadas de Carrie com as facilidades e sortes absurdas de Emily, mas isso nunca será possível. A gente quer ser protagonista, mas sob o olhar de curadoria de um perfil bem sucedido do Instagram.
Byung-Chul Han fala sobre como as esferas da arte e do consumo tem se misturado cada vez mais. E quando arte e propaganda se misturam, não há espaço para a dor. É preciso que aquilo que assistimos seja curtível, facilmente digerido. Emily em Paris é uma série altamente comercial (e as cenas da Air France nessa quarta temporada gritam isso na nossa cara) e, portanto, jamais será uma série que aposta em qualquer outra coisa se não a positividade - e uma com valores bem explicitamente capitalistas.
Ele também fala sobre como a arte tem “o poder de causar estranhamento, perturbar, transtornar, sim, também doer”. Mas o quanto estamos realmente aceitando esse tipo de dor hoje? O quanto criticamos séries como Emily em Paris por serem sem graça de um lado, e também criticamos acaloradamente outras produções que nos perturbam onde não gostaríamos de ser perturbados? O quanto a gente anda permitindo ser tomado por essa dor que, como diz Byung-Chul Han, “é o rasgo por meio do qual o inteiramente outro tem entrada”? O quanto a gente quer o outro?
É mais fácil viver em um mundo onde não há dor, onde existe apenas a materialização das nossas fantasias mais ilusórias. Mas eu não acho também que isso seja uma culpa inteiramente nossa.
Sex and the City é uma série que dá um passo na direção de romantizar várias coisas (embora eu ache ela muito mais realista do que várias outras comédias românticas da mesma época) e foi a partir disso que ela construiu para gente uma certa narrativa de futuro. Quem eu quero ser quando crescer, como eu quero viver. Por si só isso tem alguns problemas, mas muito da nossa frustração com essa imagem tem a ver com o quanto o mundo mudou quando foi a nossa vez de sermos adultos.
Emily em Paris, por outro lado, chega em um momento em que a gente já sabe que nada daquilo é tão simples de alcançar (se é que é possível). A primeira temporada veio quando estamos trancados dentro de casa ou vivendo de forma altamente estressante lá fora por conta de um vírus invisível no ar. Diferente da perspectiva de futuro de Sex and the City (ou da representação do presente real de quem vivia como elas na época), Emily em Paris traz para nós um presente alternativo, digamos assim.
Eu não acho que as meninas bem jovens de hoje vejam a série, pra começo de conversa, e as que veem não devem assisti-la pensando que um dia gostariam de ser Emily Cooper, como a gente fez (e ainda faz) com Carrie, Samantha, Miranda ou Charlotte. Não, essa é uma fantasia mais datada. Somos nós, que crescemos na época da mocinha protagonista descolada e meio complicada que compramos a ideia. Não mais de um futuro, porque já crescemos, mas do que poderia ser agora, se de repente o nosso emprego chato e comum virasse um dos sonhos e nos mandasse para Paris - esse lugar místico, supostamente diferente das cidades caóticas em que vivemos, onde toda a mágica deve acontecer sem que a gente precise fazer nada a respeito.
Emily vem em um mundo de redes sociais e incorpora isso completamente de uma forma muito natural. Talvez esse “natural” seja a palavra chave da nossa fantasia. Andamos cansadas, exaustas. Cansadas demais do que compõe uma vida relativamente comum hoje, em que as coisas andam meio complicadas para todo mundo, especialmente em cidades grandes. A gente vive em um mundo em que não sobra tempo, nem dinheiro e nem energia para administrar uma vida social agitada como aquela das personagens de Sex and the City, ainda mais depois dos 30. Emily só esbarra com os caras certos por aí, nas amigas mais legais, nos clientes mais compreensivos, nas experiências mais chiques sem ter que se preocupar com o salário. Corta o caminho o tempo todo e todos a amam sem que ela precise fazer nenhum tipo de manutenção das suas relações. É uma fantasia muito tentadora.
Emily passa por cima de todos os problemas que fazem parte, cada vez mais, do nosso cotidiano. É como um grande band aid colocado em cima das nossas feridas atuais, que não existiam da mesma forma 20 anos atrás.
Byung-Chul Han fala que, se se impede a dor, “a felicidade se achata, assim, em um conforto surdo”. Talvez por isso que Emily em Paris viva para nós nesse lugar contraditório de “ser ruim, mas…”. Tudo nela parece meio sem sal, mas ao mesmo tempo, um entretenimento fácil e garantido quando a nossa vida já está trazendo dores suficientes. O apelo é muito grande e, quando vimos, devoramos os poucos episódios de cada temporada.
Só que quando tudo que a gente faz é se blindar, quando evitamos a dor em tudo que assistimos, também deixamos de ter a possibilidade de ver na ficção pessoas passando por dores parecidas com as nossas, situações que podem trazer a nós uma luz ou apenas o conforto de saber que não somos os únicos no mundo a passar por aquilo. Se a gente evita o desconforto o tempo todo, ficamos com a história muito bem recortada de uma vida que jamais pode existir e nos contentamos com a ilusão. Nos anestesiamos. É importante ir aos poucos e dar o tempo necessário para tudo, mas ir.
Eu não vou deixar de assistir Emily em Paris, porque eu gosto também desse entretenimento fácil. Mas acho interessante entendermos o que incomoda e porquê, o que vicia, o que faz a gente maratonar algo ou não e, principalmente, porque essa é uma série que traz essa sensação conflituosa. Importante especialmente para que não sejamos só levados pelo o que uma grande empresa quer que a gente consuma.
Eu nem vou entrar no mérito de outras irrealidades das andanças de Emily por Paris, elas acabam sumindo no quadro geral fantasioso. Mas às vezes em penso que seria muito interessante se em algum momento a fotografia mudasse e Emily estivesse em uma sala falando com uma psicóloga, terminando de contar a ela a sua versão dos fatos, cheia de romantizações, pontos cegos, omissões, soluções rápidas e ficcionalização da própria vida. E aí então a gente visse tudo de novo, só que agora na versão real, com uma Paris muito mais caótica, com pickpockets levando a mala que Emily deixou largada na praça e o cara bonitão e rico se revelando super problemático. Seria legal ver que Emily na verdade tem uma conta de cartão de crédito imensa, como Carrie. Que Camille na verdade é legal, e não a vilã que a série pinta para fazer de Emily a mocinha. E que o mundo do trabalho criativo nos padrões de luxo tem muito mais poréns e baixos do que a série faz parecer.
Mas isso não vai acontecer. Voltemos então à realidade, com todas as suas possibilidades de sentimentos genuínos, tanto de um lado, quanto do outro.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Emily em Paris é uma série da Netflix.
Na edição passada, falei sobre como a partir de agora teremos algumas mudanças por aqui. As edições andantes, como essa, continuarão quinzenalmente e abertas a todos, mas os cafezinhos são agora edições exclusivas para assinantes pagos e eu quero deixar aqui imenso obrigada a todos que já assinaram e todos que enviaram mensagens super carinhosas nessa última semana! <3
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Links extras
- nós estamos o quê? REPITA COMIGO: vendo as mesmas coisas, consumindo as mesmas imagens, edição ótima da
.- O que aconteceu quando eu tentei viver o sonho francês: um relato bem interessante da tentativa de viver o sonho na vida real. Em inglês, mas tranquilo de ler com o tradutor :)
- “A história de Emily é sobre viver uma existência livre de ansiedade sem nenhuma consequência negativa. E, enquanto ela vive uma vida sem curiosidade intelectual, Emily em Paris nunca a pune por isso, e nem nos faz presenciar Emily refletindo sobre o seu comportamento possivelmente embaraçoso”. Uma crítica muito boa de Emily em Paris, mais focada na primeira temporada, mas que serve muito bem para a série como um todo e dialoga muito com a edição de hoje. Também em inglês, também tranquilo de ler com o tradutor.
Outros passeios
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Amei. Eu assisti Emily em Paris pelo puro prazer do entretenimento fácil. Do escapismo. Mas adorei a ideia da reviravolta mostrando a história cor-de-rosa pintada pela protagonista x a realidade nua e crua. Favor mandar para a Netflix.
não acompanho a série, mas tenho a impressão de que ela foi feita para ser um desses passatempos rápidos que a gente consome sem pensar muito, sem o propósito de trazer uma grande reflexão ou revolucionar a indústria audiovisual…