#42 Andanças no Olhar de Cinema, parte 1/3
As histórias, as ausências, as andanças familiares e um pouco do que eu assisti nesses três dias de festival
Olá! Esta é uma edição especial da Andanças, falando um pouco de como foram os três primeiros dias do Olhar de Cinema, o festival internacional de cinema de Curitiba, e os filmes que eu assisti. Na edição #41 conto certinho como vai ser a minha cobertura do evento por aqui e, se você quiser ver mais, pode me seguir no Instagram.
E hoje também estamos inaugurando a logo da Andanças no cabeçalho das edições! Todo o trabalho foi feito em conjunto com a diretora de arte talentosíssima - e também minha irmã - Renata Manske. A caligrafia é minha, mas todo o trabalho de concepção, ideias e pós-produção é dela. Você pode ver mais trabalhos da Renata no Behance.
No debate após a exibição do filme Quando eu me encontrar, a atriz Luciana Souza falou que “filmes são sempre construídos com muita gente, com muitas histórias de vida” e é isso que eu vi nesses três primeiros dias do Olhar de Cinema. Por mais que eu tenha assistido várias sessões na edição do festival do ano passado, é diferente estar acompanhando a programação de perto e ver as pessoas falando sobre os filmes que fizeram nos debates, coletivas e nos corredores do Cine Passeio ou do Cineplex, os dois cinemas onde a programação está acontecendo.
O que vemos na tela é só o resultado de um processo muito mais longo e complexo, que envolve muitas histórias, inquietações e preocupações, seja do processo de fazer o filme ou daquilo que o inspirou. Casa Izabel, o filme de abertura, nasceu de um álbum de fotografias encontrado por acaso; Izabel é o nome da avó do roteirista Luiz Bertazzo que, segundo ele, é apaixonada pelo ator Luís Melo, que interpreta a protagonista Izabel. Neirud, filme da mostra competitiva brasileira, nasceu da história circense da família da diretora Fernanada Faye, que vai cavando cada vez mais fundo para tentar preencher as lacunas de uma versão dessa história que ela não conheceu. Foi muito incrível poder ouvir o diretor de A rainha diaba, um dos filmes da mostra Olhares Clássicos, Antônio Carlos da Fontoura, falar sobre como foi fazer aquele filme na década de 1970. A “diaba” é inspirada em uma figura conhecida das bocas de fumo da baixada santista, e é aqui imaginada pelo roteiro e interpretada maravilhosamente pelo ator Milton Gonçalves.
A gente acaba não vendo todas essas histórias quando só tem acesso ao filme, e essa é a beleza dos festivais. É bonito demais ver a equipe na sala de cinema, muitas vezes assistindo pela primeira vez o corte final do filme que ajudaram a fazer. As famílias lá, assistindo cada exibição. A gente encontra as pessoas nos corredores, pode parar para conversar, fazer perguntas, ou só dizer um “parabéns” mesmo. A espera do uber na porta do cinema vira uma possibilidade de papear um pouco mais e, numa dessa, ouvi Antônio Carlo da Fontoura falar sobre como A rainha diaba foi filmado em 35mm e que todo o som foi adicionado depois, em dublagem. Depois de assistir várias sessões de debate e conferências de imprensa, fica impossível falar só do filme que eu assisti - o processo e as falas de todos completaram e enriqueceram a experiência de uma forma muito maior do que eu esperava.
É bom demais também ver andanças que nos são familiares na tela, com elementos do nosso cotidiano que conhecemos tão bem. Parar na frente do bar e esperar o aplicativo do demorar uma eternidade até encontrar um motorista, as mesas vermelhas de plástico da Brahma no boteco da vizinhança, com um litrão de cerveja sendo bebido no copinho americano. Ouvir as nossas músicas guiando a história de personagens que vivem vidas parecidas com as nossas. É ver fotografias de circo que batem com as histórias que a gente ouvia enquanto crescia, do alvoroço que era quando um circo chegava na cidade. Talvez meus avós tenham assistido o Circo Coliseu da avó da Fernanda e quem sabe até tenham visto a Mulher Gorila, com seu 1,90 e “90kg de pura brutalidade”, personagem da tia Neirud. Ainda que o filme curitibano de abertura, Casa Izabel, se passe todo em uma casa - em uma locação na região metropolitana de Curitiba -, a gente pega no roteiro algumas expressões que são daqui. Se alguma cena do filme mostrasse o irmão do protagonista estudando, ele estaria na minha vizinhança. Mas é bom também ver andanças de lugares tão distantes e que vemos muito pouco no cinema que chega até nós, como a procura de um filme do diretor Thierno Souleymane por toda Guiné em No cemitério do cinema.
Os filmes que assisti nesses três primeiros dias falam muito sobre ausências. Quem era aquela tia que não deixou memórias registradas? Onde está o primeiro filme guineense que todo mundo já ouviu falar, mas ninguém assistiu? As ausências não estão somente nos arquivos, mas também na ficção. O que acontece com uma família quando uma das filhas decide ir embora sem dizer para onde foi? O que sentem aqueles que ficam, olhando o quarto vazio e a aliança sem par?
Da mostra de Olhares Clássicos, assisti Salomé (dirigido por Alla Nazimova e Charles Bryant), um filme de 1923, inspirado em uma peça de 1891 de Oscar Wilde. Atrás de mim, alguém murmurou em um dado momento “isso deve ter sido um escândalo” e só então que eu percebi que a Salomé que eu via na tela (interpretada pela atriz Alla Nazimova), vestindo um macaquinho curtíssimo cheio de fendas, na verdade estava em 1923. É muito interessante ver um filme 100 anos (!!) depois e tentar imaginar como ele foi recebido na época e as coisas que a gente nem percebe hoje, que não nos escandalizam mais. Assisti também Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman, e que filme! Não vou me prolongar nele aqui porque ele já é bem conhecido e ainda vai voltar por essas nossas andanças - são 3h20 de muita coisa para a gente falar.
Dá vontade escrever muito mais coisa sobre tudo, mas essa edição ficaria enorme - e ainda tem mais seis dias de festival pela frente. Muitos desses filmes são andantes e vão para a nossa lista para voltarem em algum momento na forma de edições convencionais. Então, por hoje, deixo só um pouquinho sobre cada um deles para vocês.
Casa Izabel (2022, dirigido por Gil Baroni)
Um grupo de homens viaja até um casarão afastado da capital para passar ali dias vivendo como mulheres. Ali, todos os homens assumem uma identidade feminina e são atrizes de cinema famosas, escritoras de prestígio, primeiras-damas. Mas esse é o Brasil da Ditadura Militar, e esses homens escondem bem mais do que a vida tradicional que possuem lá fora. O filme tem muito do teatro e uma direção de arte atenta aos detalhes, como a cor vermelha que envolve Izabel (Luís Melo). Tem muito sobre essa vida dupla dos “homens tradicionais” e uma preocupação muito grande em deixar claro que o problema não é aqueles homens se vestirem como mulheres, mas o tipo de vida que eles levam fora da casa e o impacto que isso tem na vida das outras pessoas.
A rainha diaba (1974, dirigido por Antônio Carlos da Fontoura)
A rainha diaba (Milton Gonçalves) é a chefona das bocas de fumo e está com um problema: um dos caras que trabalham para ela está sendo procurado. Ela então dá a Catitu (Nelson Xavier) a tarefa de achar um substituto, que é encontrado em Bereco (Stepan Nercessian), um novato que ainda vai dar muito problema. Aqui não temos andanças, mas verdadeiras correrias para lá e para cá nesse Rio de Janeiro dos anos 70. É muito incrível ver atores que a gente conhece tão bem das novelas aqui muito mais jovens, sendo galãs desse cenário do crime. Odete Lara, que interpreta Isa, também está maravilhosa cantando na noite carioca. É muito louco pensar que um filme como esse, cheio de homens gays em todo o seu esplendor e algumas mulheres lésbicas, foi feito no meio da ditadura militar. O filme é cheio de detalhes nos cenários, uma trilha sonora maravilhosa e um figurino e maquiagem lindíssimos. Não sabia o que esperar quando assisti e fiquei muito impressionada com o quão maravilhoso e inusitado ele é - um dos favoritos até agora.
Neirud (2023, dirigido por Fernanda Faya)
Esse é, até o momento, o meu favorito das competitivas. A diretora Fernanda Faye começa uma investigação para saber quem era aquela tia Neirud que, junto com sua avó Nely, era do circo e cujo passado ela sabia tão pouco. Esse é um filme familiar, mas que toca também em muitas questões políticas que atravessaram gerações. Ela começa retraçando a história da sua família, que era cigana e iniciou o circo para manter sua itinerância pelas cidades do Brasil. Muita coisa aconteceu até chegar na sua avó, que começou a apresentar no circo um espetáculo de luta livre entre mulheres, do qual a tia Neirud participava como a Mulher Gorila. Acompanhar todo o processo de pesquisa e busca por respostas da Fernanda foi uma experiência incrível. Ver o filme descobrindo as informações me deixou colada na tela, mesmo já sabendo muitas coisas por conta da conferência de imprensa que eu já havia acompanhado. Nely e Neirud eram na verdade um casal, e passaram décadas juntas rodando pelo país ao estilo Thelma e Louise no meio da ditadura militar. A conferência de imprensa foi emocionante, com uma fala linda do pai da Fernanda, Edgard, sobre o que aprendeu com a vida no circo. Já comecei o filme com vontade de chorar e só fui me surpreendendo cada vez mais com a história das muitas andanças dessas duas mulheres ao longo de suas vidas. Se você esbarrar com esse filme algum dia, não deixe de assistir! Recomendadíssimo.
Quando eu me encontrar (2023, dirigido por Amanda Pontes e Michelline Helena)
“Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar”
Dayane decide ir embora e deixa para trás apenas um bilhete sem dizer para onde foi. Em Fortaleza, sua mãe Marluce, a irmã Mari e o namorado Antônio precisam lidar com essa ausência voluntária e buscar reconfigurar suas vidas a partir dessa lacuna repentina. Cada um deles segue em suas próprias andanças pela capital cearense tentando se encontrar e lidar com as questões que os envolvem e que vão muito além daquela que partiu. O filme explora o que são essas ausências, a relação familiar entre mulheres, o quanto a gente se coloca nos outros e o que cada personagem acaba exigindo em troca. Na conferência de imprensa, todos os atores presentes falaram sobre como filme foi feito com muito cuidado e carinho e essa delicadeza transparece no filme o tempo todo. É um filme que também diz muito com os silêncios, com Dayane sempre presente na sua ausência. O filme é lindíssimo e mostra diversos lugares de Fortaleza. Mais uma baita recomendação.
No cemitério do cinema (2023, dirigido por Thierno Souleymane)
O diretor Thierno tem uma missão: encontrar um filme chamado Mouramani, de 1953, considerado o primeiro filme de Guiné. Ele parte em uma grande andança por todo país na busca de uma cópia, encontrando muitas informações sobre a história do cinema guineense. Ele anda pelas cidades grandes e por pequenas vilas, entrevistando pessoas, visitando cinematecas abandonas, olhando inúmeros rolos de filmes empoeirados e dando aulas para crianças e jovens sobre cinema. Aqui a temática do registro, dos arquivos e da ausência também aparece com força enquanto o diretor mostra o quanto da história do cinema do país foi destruída durante regimes totalitários ou se perdeu por falta de recursos de conservação. Foi o primeiro filme da competitiva internacional que assisti.
Por hoje é só! Essa foi uma edição escrita em várias partes, um pouco no celular, um pouco no computador e outro tanto no caderninho mesmo, nos intervalos entre uma sessão e outra. Foi um processo de escrita bem diferente do que eu tenho costume de fazer e ainda estou me acostumando com a velocidade mais intensa das coisas durante esses dias. Já peço perdão de antemão caso algum erro passe ou alguma informação falte (se eu perceber algo, corrijo na versão da web). Está sendo muito incrível acompanhar tudo isso e deixo aqui mais uma vez o meu imenso obrigada a você que acompanha a Andanças. Me digam o que acharam desse formato e a nossa conversa continua nos comentários!
O festival ainda está acontecendo e parto para uma nova maratona de sessões daqui a alguns minutos. No instagram, estou publicando vídeos curtos dos debates e conferências de imprensa nos stories e lá você pode ver um pouco mais das próprias pessoas citadas aqui falando sobre seus filmes (os stories antigos estão salvos no destaque “Olhar de Cinema”).
Nosso próximo passeio é na segunda, até lá :)
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