#65 Um cafezinho: o tempo de digestão das coisas
O que sair para assistir filmes tem me ensinado sobre dar tempo para mim mesma
Olá! Muita gente nova chegou por aqui nesse último mês e quero começar essa edição dando uma grande boas vindas a todos! Duas vezes por mês, você receberá uma edição em que caminhamos junto com um filme que eu chamo de andante e ali, investigamos um pouco melhor as emoções que envolvem a história, assim como a cidade onde ela se passa e como isso conversa com a gente (como a última edição, de Vidas passadas). Nas outras duas semanas do mês, você receberá a Um cafezinho, uma edição mais curta, para gente bater um papo mais amplo e geral falando sobre cinema, cidade e andanças pessoais.
É muito bom te ter junto conosco nessas andanças que fazemos toda semana! Lembrando que aqui está uma lista do Letterboxd com todos os filmes andantes que já passaram e que ainda vão passar por aqui e que você sempre pode me acompanhar também no instagram.
Desde que escrevi a primeira edição deste ano, tudo aquilo que não assistimos em 2023, tenho estado muito mais consciente com o que assisto e, principalmente, quando e onde eu assisto. Comentei lá que em 2024 eu não queria correr com os lançamentos, alimentando aquela sensação de que eu tenho que assistir alguma coisa, e também que queria privilegiar assistir filmes nos espaços de exibição que existem na minha cidade e sair de casa, estar na rua, ver gente.
Pois bem, percebi algumas coisas interessantes durante esse mês em que me movimentei mais intencionalmente para assistir filmes fora de casa. Em primeiro lugar, naquela história de que o nosso tempo é limitado, privilegiar ver os filmes no cinema - e ir até ele com uma certa frequência durante uma semana normal - faz com que não sobre tanto tempo assim para assistir outros filmes em casa e os streamings acabam ficando de lado. Mas não é só isso: tenho percebido que a vontade de parar e assistir algo em casa, mesmo quando sobra um tempinho, tem mudado de forma também.
Claro, como eu sempre falo por aqui, as minhas condições atuais são favoráveis para que essa dinâmica aconteça e acho importante salientar isso: os cinemas que eu vou estão a uma caminhada curta de distância e são baratos. Meu único gasto extra é com a corrida rápida de uber na última sessão do dia, quando já está tarde demais para andar por aí sozinha. Isso facilita as coisas, com toda certeza. Se a logística e os gastos fossem maiores, essa frequência no cinema seria bem mais baixa.
Mas não se trata exatamente da quantidade de idas ao cinema e sim da qualidade que essa mudança de chave tem proporcionado. O que eu tenho reparado nessa andança toda é que o cinema está me permitindo um tempo de preparação e de digestão que eu vinha ignorando antes - e isso faz toda diferença.
Comecei a me organizar para deixar a agenda aberta para o cinema em dias da semana que tenho mais tempo e sempre só nesses dias. A ideia é abrir espaço para assistir algo que esteja disponível naquele dia no meu cinema local (onde o meu gasto é o menor possível) e que eu queira muito ver, em uma espécie de compromisso semanal comigo mesma. Vira um rotina, de certa forma. E uma rotina que envolve parar totalmente o que eu estava fazendo, comer, me arrumar, andar até o cinema, esperar e entrar em um ambiente todo preparado para aquela experiência, para mergulhar em algo pelo qual eu esperei o dia inteiro. Eu obrigatoriamente preciso deixar as coisas que ocupavam a minha cabeça para trás toda vez que saio. As ansiedades e pressas do dia vão se diluindo na caminhada até lá ou conforme o filme avança. Logo o celular fica de lado, os pensamentos sobrepostos, também.
É algo muito diferente do ritmo que eu vinha tendo ano passado. Não é sobre dizer que uma coisa é boa e outra é ruim, até porque a gente sabe muito bem que o cinema tem sido uma atividade cada vez mais inacessível. Mas é sobre entender que a facilidade dos streamings fazia com que eu pulasse várias etapas do processo de assistir algo. Essa rotina de ir ao cinema acaba sendo quase um ritual, mas eu não ritualizava isso da mesma forma quando assistia algo em casa. Ficava tudo meio atropelado. Eu terminava o trabalho e em poucos minutos já estava assistindo algo no mesmo computador em que passei o dia todo, com todas as minhas pendências ali abertas. Assistia os filmes em pedaços e com a atenção bastante dispersa. Não havia um tempo de preparação para fazer aquilo, nem um tempo para deixar o filme ser absorvido depois de assistido. Acabava sendo mais uma tarefa cumprida no dia.
Sair do cinema e andar até em casa me permite um tempo de pensamento que eu tenho gostado de ter. É como comer algo e sair para dar uma volta, para deixar a comida descer como deveria e o corpo absorver todos aqueles nutrientes novos - pelo tempo que for necessário. Há ainda o tempo em casa depois da sessão, em que mente vai viajando naquilo que foi visto. Mesmo que seja preciso voltar a trabalhar (caso o filme tenha sido de dia), a energia é sempre outra. E a sensação boa que vem disso tem feito com que eu não sinta mais vontade de ver os filmes em casa de qualquer jeito, sentada em qualquer lugar em qualquer janela de tempo que eu tenha - e, principalmente, sem estar com a atenção voltada para aquilo e sem me preparar para realmente relaxar durante aquele momento.
E esse tem sido um mês atípico. A quantidade de lançamentos ótimos está avassaladora e tem sido lindo ver as salas de cinema lotadíssimas todos os dias. Sempre que eu acho que em algum dia daquela semana não vai ter nada novo ou do meu interesse para assistir, aparece lá algum filme que eu quero muito ver (hoje vai ser A zona de interesse). Mas eu sei que não vai ser sempre assim e talvez esse tempo que eu tenho agora fique mais escasso em algum momento, por isso quero levar esse modo de experimentar os filmes para dentro de casa também. Criar um compromisso comigo, preparar o tempo e o espaço, fazer as separações entre uma coisa e outra e preparar uma programação daquilo que eu realmente quero assistir. Fazer uma espécie de cinema próprio em casa, como a gente fazia quando se preparava para assistir o filme do dia da Tela Quente. Fazer do ato de assistir filmes um ritual tanto dentro quanto fora de casa é o que eu quero fazer nos próximos meses - dentro do que for possível, dentro do tempo que eu tiver, mas que esse tempo tenha qualidade. E, como isso, tirar dos meus prazeres essa aceleração maluca que parece que a gente precisa ter.
Tenho percebido também que a necessidade desse tempo de digestão não acontece só com o que eu absorvo, mas também com o que eu crio. Alguns textos são mais fáceis de escrever, outros não. E nem é apenas uma questão do tempo que leva para escrevê-los ou da dificuldade envolvida no processo de conectar as ideias, mas do tamanho da imersão emocional e da entrega que eles demandam. Escrever uma edição como a de semana passada, de Vidas passadas, mexe com a gente. Depois que o texto sai, é preciso digerir tudo aquilo que aconteceu. Respirar. Fazer o que precisa ser feito para se reestabelecer. É preciso um tempo de digestão também para poder voltar a escrever.
Eu tinha outra ideia para o texto dessa semana, mas quando me vi tentando forçar um tipo de escrita que eu não ia sair, percebi que eu ainda preciso me recuperar do último. Dar tempo para que o corpo e a mente possam descansar antes de mergulhar em um texto profundo outra vez.
No processo de assistir algo e transformar as impressões em um texto, há um tempo de digestão também. Assisti Pobres criaturas nesse último domingo e o filme me pegou totalmente desprevenida. Eu não esperava a história que encontrei, não imaginava que teria ali um filme andante e tem muita coisa sobre ele que eu ainda estou pensando. Ainda quero escrever um passeio com Bella Baxter, mas esse é um texto que não vai sair agora. Não apenas por esse estado de recuperação de escrita em que eu me encontro, mas também porque eu sinto que não cheguei totalmente nele, ainda não sei bem o que dizer. Essa é uma digestão que precisa de mais tempo.
Está sendo quase um experimento, tudo isso. Mas um que eu não imaginava quão bem iria me fazer. E por aqui, a gente sempre vai continuar caminhando devagar, cada vez mais dando o tempo que as coisas precisam e se permitindo sentir bem tudo que há para sentir.
Um bom carnaval e até o próximo passeio :)
Algumas dicas antes de ir
- Se você está em Curitiba, duas dicas cinematográficas legais para fevereiro: saiu a programação da Cinemateca, com várias sessões gratuitas; e na programação da Caixa Cultural haverá uma semana inteira de sessões de Cine concerto - a exibição de filmes com a sonorização feita ao vivo por músicos no auditório. As sessões também são gratuitas, com retirada dos ingressos uma hora antes das sessões.
- As andanças de Patti Smith em Nova York para assistir Pobres Criaturas e também uma edição super legal sobre a sua letra cursiva (que é linda).
- Se você acompanhou o amigo secreto de newsletters do final do ano passado, aqui está um compilado de todas as cartas trocadas para você acessar.
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também firmei esse compromisso de ter mais tempo de qualidade este ano e a experiência tem sido muito boa. nada de sair vendo tudo, lendo tudo, ouvindo tudo... escolho com parcimônia e consciência para aproveitar melhor o momento.
também tenho tentado criar rituais para tudo que faço, com isso digo, trabalho, estudos e lazeres. sinto que me entrego mais ao que me propus fazer desse jeito, então ler sobre alguém fazendo isso e os bons frutos que resultam de tal, é maravilhoso!!
e preciso dizer que assistirei pobres criaturas neste fim de semana, e mal posso me aguentar para ler seu texto sobre!! <3