Quando pensamos em filmes sobre escritores ou poetas que vivem no espaço urbano, uma das primeiras imagens que nos vem à mente é de uma cidade grande e agitada, uma vida boêmia cheia de pessoas que vem e vão, mesas cobertas de manuscritos feitos no calor do momento, misturados a xícaras de café frio e cigarros por todos os lados. Nosso imaginário foi povoado por essas imagens do que seria um escritor (e a palavra no masculino é aqui proposital); com um tom de grandiosidade no título e uma vida aventureira cheia de material para colocar no papel. Não costumamos pensar em nossa vida comum como digna de poesia e nem a nós mesmos como poetas ou escritores em potencial.
E é aí que mora nosso engano.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas tranquilas da cidade de Paterson, em Nova Jersey. Com quase 160 mil habitantes, a cidade fica a mais ou menos uma hora de distância de Manhattan. O nome da cidade é o mesmo de nosso protagonista, Paterson (Adam Driver), um motorista de ônibus e poeta que vive com sua esposa, a artista Laura (Golshifteh Farahani), e seu bulldog inglês Melvin (Nellie).
Paterson (2016, dirigido por Jim Jarmusch) é um daqueles filmes silenciosos, de ritmo lento, em que pouco ou nada acontece e as reflexões - ou, nesse caso, a poesia - são mais importantes que a sequência de acontecimentos. Acompanhamos Paterson durante uma semana enquanto sua rotina se desenrola todos os dias de forma parecida, como um ritual. Essa rotina é cheia de andanças - a pé ou dirigindo o ônibus circular. Através delas, podemos ver nosso protagonista contemplar a cidade onde vive e a vida que acontece nela, além de alguns encontros interessantes e vários trechos de conversas entre desconhecidos.
Se a vida adulta nos faz ser leitores vorazes dos momentos possíveis, escrever, mesmo que apenas para si mesmo, é tarefa ainda mais difícil. Somos do time das notas do celular, dos áudios para nós mesmos enquanto andamos na rua, dos caderninhos que ficam sempre em algum lugar da bolsa, dos textos em um rascunho do Word perdidos entre tantos outros documentos de trabalho. Escrevemos enquanto a comida esquenta no microondas, enquanto a pessoa que esperamos não chega. Escrevemos quando as ideias vem de rompante no meio do banho, guardando fragmentos que - quem sabe um dia - serão unidos a algo maior.
Para Paterson, a escrita também se insere nos intervalos desse ritual que é a sua rotina. Ele está sempre com um caderno e uma caneta à mão, escrevendo antes de sair da garagem com o ônibus, durante o seu horário de almoço e depois que chega em casa. Assim como na nossa vida cotidiana, não há romantizações aqui: a escrita acontece nos poucos minutos possíveis e frequentemente Paterson é interrompido por outras pessoas e atividades que exigem a sua atenção. Seu canto de escrita na casa é uma mesinha pequena com uma luminária no porão, onde seus livros mais queridos são organizados cuidadosamente em meio a latas de tinta e materiais de manutenção.
“- Posso perguntar se você também é um poeta aqui de Paterson, Nova Jersey?
- Ah… não. Sou motorista de ônibus. Só motorista de ônibus.
Um dia, Paterson encontra uma menina escrevendo poemas na rua. Ela se espanta por ele gostar de Emily Dickinson (“Um motorista de ônibus que gosta de Emily Dickinson!”). Na maioria das vezes, nossa vida não se encaixa no estereótipo construído social e culturalmente sobre quem é o poeta, como a vida de um poeta seria e quem são aqueles que gostam de poesia. Talvez seja, pelo menos em partes, essa imagem construída que carregamos que faz com que seja tão difícil para nós nos vermos como escritores, poetas, artistas - mesmo quando estamos por aí escrevendo, criando e publicando.
Por outro lado, dizer que a escrita apenas se insere nesses intervalos de rotina seria um equívoco - para Paterson e para nós. A escrita e a poesia são uma forma de viver no mundo. Quando a poesia está na maneira como vemos as coisas ao nosso redor, não é preciso grandes aventuras todos os dias para termos o que dizer. Somos pessoas, vivemos nossas vidas cotidianas e temos sentimentos que nos tomam e saem para fora de nós em forma de palavras. Somos poéticos em nossa existência.
“Saio do trabalho,
bebo uma cerveja
no bar
Olho para o copo
e me sinto contente.”
A caixa de fósforos, o tempo que não passa, o clima bonito, o sol da manhã, o movimento do para-brisa – tudo na vida de Paterson faz parte de seus poemas, muitos deles como cartas de amor para sua esposa, que segue também em suas criações constantes pela casa, sempre com muito zelo. Ambos transportam a poesia para seus modos de viver. Vida e poesia estão entrelaçados e um não acontece plenamente sem o outro – são indissociáveis. Na vida de Paterson e Laura e, talvez, se olharmos bem, em nossa vida também.
Esses momentos e lugares em que a escrita pode acontecer são usados e cuidados com carinho, e o incentivo amoroso de Laura alimenta e inspira a escrita. Os poemas de Paterson, volta e meia interrompidos, sempre continuam, incrementados com as ideias e experiências que surgiram depois que a última linha foi escrita. Com o tempo, o caderno está cheio.
Há uma cena em que, durante a caminhada noturna com Melvin, Paterson vê um homem compondo a letra de uma música enquanto espera a máquina de lavar em uma lavanderia. Paterson o elogia e ele responde que ainda está trabalhando nela, “tentando descobrir como… botar para fora”. Quando pergunta se aquele lugar é o seu “laboratório”, o homem responde: “Wherever it hits me is where it’s gonna be”. Onde quer que a ideia me alcance, é ali mesmo que vai ser.
Onde quer que as palavras transbordam, é ali que vai ser.
E assim seguimos, fazendo a poesia das nossas vidas um dia de cada vez, um momento possível de cada vez.
Eu não conhecia muito sobre poesia norte-americana e nem a história por trás do filme quando o assisti pela primeira vez, mas ele fica ainda mais poético e interessante quando entendemos um pouco mais do seu contexto. Um dos heróis de Paterson é William Carlos Williams, poeta norte-americano (que também era médico) que escreveu uma coletânea de poemas chamada Paterson, em referência à cidade. Nela, o autor utiliza um personagem como metáfora para a cidade, e vice-versa, algo que o diretor Jim Jarmusch achou uma “ótima ideia” (mais informações nesse artigo - em inglês).
Say it! No ideas but in things. Mr.
Paterson has gone away
to rest and write. Inside the bus one sees
his thoughts sitting and standing. His thoughts
alight and scatter—
Quando Paterson, um pouco abalado, diz que é “só um motorista de ônibus”, o homem desconhecido responde a ele: “Um motorista de ônibus em Paterson? Isso é muito poético. (…) Isso podia ser um poema de William Carlos Williams.”. A poesia está para além da referência que o filme faz ao poeta e ao poema, mas na própria perspectiva da nossa vida comum pelas cidades como poesia.
As referências que eu desconhecia me interessaram muito e eu precisaria de mais tempo para falar melhor sobre elas aqui. Quem sabe um dia teremos uma segunda versão de Paterson com um pouco mais sobre a relação do filme com o poema.
Enquanto isso, te encontro no próximo passeio :)
Onde assistir
Paterson está disponível para assistir na Mubi e no Looke.
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Gente! Esse filme é lindo e essa sua análise me deixou aguando super por uma segunda andança - acompanhada de outro olhar, nessa obra-prima.
Sabe que te lendo, viajei para o livro A Grande Magia, da Liz Gilbert - ela fala sobre o "agarrar" as ideias, antes que elas nos deixem...
Sei lá, talvez esse comentário seja só isso.
Obrigada, Luisa!
Obrigado pela excelente análise. Você já assistiu Férias Permanentes, também do Jarmusch? Tem na Mubi. O filme é marcado por andanças. Gostaria muito de ver uma publicação sobre ele.