Em primeiro lugar, um super agradecimento à Paula R. por contribuir financeiramente com a Andanças no último mês! A contribuição possibilitou alugar o filme da edição de hoje. Obrigada <3
Se você também quiser contribuir com nossas Andanças, as informações estão no final dessa edição :)
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas e trilogias, como é o caso deste passeio especial que começou duas semanas atrás. Faremos nossas andanças junto com Jesse e Céline, protagonistas dos três filmes da Trilogia Before.
E se você acabou de se juntar às nossas andanças, não deixe de ver as duas primeiras edições deste especial: #30: Trilogia Before e #31: Antes do amanhecer.
Ah, e o filme de hoje é o meu favorito da trilogia e também está entre os meus 5 filmes favoritos de todos os tempos. Os outros 4 ainda não apareceram por aqui, mas chegará a vez deles (são todos andantes, é claro <3).
Com trinta e poucos anos, continuam existindo muitas coisas que ainda não sabemos - embora, a essa altura, talvez já começamos a não correr mais atrás das respostas. Já passamos por algumas coisas ao longo dos vinte e tantos, já acumulamos algumas experiências. Já sentimos na pele as emoções e situações que antes eram só especulação. Talvez já não somos mais tão sonhadores quanto já fomos. A vida adulta toma a forma das responsabilidades e da realidade que acontece todos os dias. Isso quer dizer que agora sabemos quem somos e para onde devemos ir?
Pode apostar que não.
As perguntas sobre o mundo continuam ecoando nossas dúvidas mais profundas. Será que me tornei o adulto que esperavam que eu fosse? Será que me tornei a pessoa completa que gostaria de ser? E o amor, posso dizer que encontrei? Será que eu, agora, sei o que é o amor? Ou será que eu só desisti dele?
O mundo continua com seus mistérios e talvez nós só estamos cansados demais para tentar desvendá-los. A magia fica para o segundo plano. É preciso trabalhar e comer e alimentar e ganhar e gastar e cuidar e arrumar e socializar e sair e manter - ufa! Não há mais uma casa com pais, comida na dispensa e roupa lavada para voltar depois de uma andança aventureira por aí - agora nós somos os pais que confortam, que abastecem e que deixam tudo limpo, nem que seja apenas para nós mesmos. Sabemos das delícias e dificuldades do nosso cotidiano e, quando alguém aparece, nossos olhos não buscam mais a aprovação com tanta insegurança. Olhamos direto, meio céticos, desconfiados. É um olhar da esperança blindada, que não quer se mostrar para não se machucar mais uma vez.
Será que ser adulto é só isso?
E Jesse e Céline, aqui com trinta e poucos anos em Antes do pôr-do-sol (Before Sunset, 2004, dirigido por Richard Linklater), vão precisar olhar de frente para os sonhos que deixaram para trás e a realidade de quem foram desde então.
Nosso passeio de hoje começa em uma livraria. Na placa da entrada, a sinalização de que um escritor estará presente para conversar com o público. Ao entrar, vemos que o escritor é Jesse Wallace (Ethan Hawke), que publicou um romance sobre uma noite que passou em Viena nove anos atrás. Nos fundos da livraria, observando, está Céline (Julie Delpy), uma ambientalista que mora em Paris. A voz de Jesse falha quando a vê, se perde. Eles se conhecem de outra vida, mas são estranhos agora. O encontro é desajustado, sem jeito, como já foi um dia - “Como vai você? Isso é tão estranho.”. É a primeira vez que se encontram depois da despedida na estação de trem, naquele 17 de agosto de 1995.
Jesse tem menos de 2 horas até a ida ao aeroporto e convida Céline para um café e para andar por Paris nesse meio tempo. E nós andamos junto com eles nas mesmas 1h20 minutos pelas ruas e parques da capital francesa até que o sol se ponha no horizonte.
Na tarde parisiense, Jesse e Céline também conversam sobre muitas coisas. Antes de mais nada, a pergunta que não quer calar: o que aconteceu naquele 16 de dezembro, quando deveriam se encontrar de novo? As justificativas são colocadas na mesa e o dia mostra que, na prática, os planos traçados na madrugada não são tão fáceis assim de serem executados - os mistérios da vida cruzam seus caminhos e nossa possibilidade de controle é sempre limitada.
É palpável a cautela, a conversa fiada que evita entrar nos sentimentos - sabemos bem como é. Conversam como quem coloca os dedinhos na água aos poucos para testar a profundidade. Falam de amenidades. Americanos x franceses, os trabalhos que fazem e fizeram nos últimos anos. Falam de relacionamentos, o que é diferente de falar de amor. O amor, que antes era um conceito abstrato e complicado, agora toma forma de algo carregado de desconfiança - “Todo mundo quer acreditar no amor. Vende bem.”. Eles já não acreditam mais nisso. É melhor não se perguntar se foi amor o que foi vivido até aqui.
A cidade dessa versão de Jesse e Céline de trinta anos reflete a sua condição de adultos independentes e bem-sucedidos profissionalmente. O bonde é substituído pelo banco de trás do carro dirigido por um motorista particular - “é melhor do que o metrô, certo?”. O café favorito da vizinhança substitui aquele que foi o primeiro e mais barato a aparecer. Há recursos suficientes, tempo de menos e um bom punhado de manias e neuroses no caminho. A abertura para a cidade agora tem um limite - “Nunca andei nesses barcos. São para turistas. É constrangedor” - e deitar no chão de praças talvez não seja mais uma boa ideia. Nós mudamos, afinal - e a maneira como fazemos nossas andanças e usamos a cidade também.
O suéter furado dá lugar a um terno, os tênis surrados a uma sandália e unhas feitas. Ambos discutem para ver quem vai pagar a conta dos lugares onde vão. Nessa andança curta, eles também não carregam muito consigo, mas isso porque o motorista de Jesse já guardou suas malas no carro e Céline tem suas coisas bem guardadas ocupando um apartamento inteiro só dela. Dentro de si mesmos, por outro lado, a bagagem da vida é mais densa e pesada do que já foi e isso vai aparecendo aos poucos nas conversas.
Os relacionamentos passados são camadas retiradas devagar. Jesse é casado e tem um filho pequeno. Céline tem um bom relacionamento com um fotógrafo que está sempre viajando. É amor? Eles não sabem. Testaram ao longo dos anos as opiniões e teorias que tinham quando mais jovens. Em Viena, Céline conta como sua avó passou a vida apaixonada por outro homem, um romance do qual desistiu. Jesse contou como os pais não se amavam mais, mas se mantinham casados por conta dos filhos. Ambos estão nesse lugar agora - “Você começa assim mas, depois de se dar mal algumas vezes esquece seus devaneios e aceita o que a vida lhe dá.” ; “Mas vivemos um casamento simulado por responsabilidade. Vivemos como as pessoas supostamente devem viver.” -, e as soluções não parecem tão objetivas quanto eram quando eles ainda não haviam passado por nada disso. Descobrem a decepção, a terapia de casais, os livros de autoajuda. Eles achavam que sabiam as respostas, mas a realidade não é tão simples assim.
“Sempre senti que há um centro místico no universo. Mas, há pouco tempo, comecei a pensar que eu, minha personalidade… não tenho um espaço permanente aqui, na eternidade ou em qualquer lugar. Quanto mais penso nisso, vejo que não posso passar pela vida assim. A vida é aqui e agora. O que você acha interessante? O que é engraçado? O que é importante? Cada dia é o último dia que vivemos.”
Eles continuam não sabendo exatamente o que está acontecendo. Mais uma vez os minutos passam e a “morte” daquele momento se aproxima. Se antes não havia tempo a perder, agora menos ainda. Foram nove anos digerindo aquela noite e tudo o que não aconteceu depois dela, nove anos de sentimentos represados e daquela angústia que sentimos com as histórias que ficaram mal resolvidas no passado. Eles sabem que foi amor o que aconteceu naquelas horas. Mas a realidade de que esse amor não teve oportunidade de florescer é dolorida demais - “Lembranças são ótimas se a gente não tem que lidar com o passado”. No banco de trás do carro com motorista, as feridas mal curadas se abrem de novo e ambos desabafam - e essa é, para mim, uma das melhores cenas do cinema.
“Eu estava bem, até ler o seu maldito livro. Mexeu muito comigo, sabe? Me faz lembrar de como eu era romântica, de como eu tinha esperança. Agora, não acredito no amor. Não sinto mais nada pelas pessoas. Me entreguei a isso naquela noite e nunca mais senti nada daquilo, como se naquela noite tivesse dado tudo a você, e você partiu. Senti que fiquei fria, como se o amor não existisse para mim. Sabe o quê? Para mim, realidade e amor são contraditórias.”
Lá fora, a luz do dia tece cores mais sóbrias na cidade, diferente do encantamento das cores incandescentes da noite. Durante o dia, a cidade é cheia de adultos como Jesse e Céline: ocupados, apressados, sempre pensando no que precisa ser feito depois. Adultos carregados de lembranças, sentimentos, dores. Porque é inevitável acumulá-los depois de um certo tempo de vida.
Chegando na casa de Céline, uma festa está acontecendo no pátio. Somos adultos carregados, sim, mas o peso se torna mais leve quando dividido, compartilhado. Quando sabemos que não somos os únicos com problemas, com dúvidas, com medos - “Sabe, é muito estranho. A gente acha que só a gente tem problemas.”. Se torna mais leve quando o sol se põe e só chutamos o balde e vamos para calçada tomar um ar e uma cerveja gelada. Quando sentamos no sofá tomando um chá entendendo que aquele é mais um ponto de virada - afinal, foi no pôr-do-sol que os olhos se encontraram de vez e o primeiro beijo aconteceu, no alto da roda gigante em Viena. Que esse sempre foi um momento de tudo ou nada, mas antes eles confiavam demais na eternidade do agora da juventude - “Quando você é jovem, acredita que vai se ligar em muitas pessoas. Mais tarde na vida, você percebe que só acontece algumas vezes”. Não vão cometer o mesmo erro de novo. A noite é dos sonhadores mais uma vez.
“É sério. Acho que o escrevi para tentar encontrar você.”
Não há fim sem começo, e todo começo terá perguntas, não importa a experiência que já acumulamos. Eles já desistiram de saber qualquer coisa e talvez isso faça deles mais abertos - verdadeiramente abertos - hoje do que com vinte e poucos anos. Já abraçaram todas as dúvidas e as inseguranças e por isso são mais certeiros do que antes. O voo vai ser perdido e depois a gente vê o que faz com isso. Eles já sabem que o máximo que podemos saber é aquilo que nos toca. Já faz um tempo que não sentem o norte dos sentimentos os guiando na direção que querem ir - e se é isso que está acontecendo agora, eles é que não vão perder a oportunidade. Arriscar, apostar, ousar, dar uma chance. É amor?
Com toda certeza.
“- Quero tentar uma coisa.
- O quê?
- [Abraça Jesse] Quero ver se você fica bem ou se vai se dissolver em moléculas.
- Como estou indo?
- Ainda está aqui.
- Ótimo. É bom estar aqui.”
Na semana que vem, daremos mais um salto de 9 anos no futuro. Jesse e Céline agora terão 40 e poucos anos. Se aqui eles encaram a realidade do que não foi e se entregam para o que pode ser, o que acontece depois que o final feliz chega?
Te espero semana que vem com Antes da meia-noite :)
Onde assistir
Antes do pôr-do-sol está disponível para alugar na Amazon Prime.
Links extras
- Na edição passada, comentei sobre os paralelos entre Antes do amanhecer e Ulysses, de James Joyce (mais informações nesse texto). Em Antes do pôr-do-sol, Jesse e Céline se encontram na Shakespeare and Company, mais uma referência ao autor. Além de ser altamente frequentada por Joyce, a livraria original também publicou Ulysses em 1922. Esse instagram de um projeto de Princeton traz alguns registros da época, entre eles, vários sobre Joyce e Ulysses.
- Esse vídeo mostra os bastidores das filmagens e entrevistas curtas com os atores e a equipe. O vídeo infelizmente não tem legendas, mas dá pra ver todo o trabalho por trás das câmeras no meio do caos da cidade enquanto os atores andam por Paris. Achei também um vídeo dos bastidores de Antes do amanhecer, bem ao estilo anos 90 (esse com legendas em inglês).
- A atriz Julie Delpy também é cantora e a música da cena final, A waltz for the night, é de sua autoria. Há outras duas músicas suas na trilha sonora do filme: Je T’Aime Tant e An Ocean Apart, que é a música da abertura do filme. As músicas podem ser ouvidas no Spotify.
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de:
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
O segundo filme é o meu preferido da trilogia. Acabei de assistir e vim correndo te ler. É bom rever com os olhos de adulta em outro momento da vida, ficou ainda mais gostoso, mas tbm doeu um cadinho. Beijo
tantas belezas relembradas, ler você nessa série me fez ter vontade de reassistir todos :)