“Acho que escondi dela o que eu sentia… e a deixei sozinha na relação.”
Finalizamos a edição passada falando sobre como Encontros e desencontros tem uma história que, dizem, é baseada no casamento real da diretora Sofia Coppola com o também diretor Spike Jonze. Dez anos depois do filme de Sofia, Spike também fez um filme falando sobre a cidade e a solidão chamado Ela (Her, 2013) que, dizem, também é a perspectiva do diretor sobre o fim do relacionamento. Mas saber o que corresponde à realidade ou não, nesse caso, não importa. A verdade é que ambos os diretores exploraram aqui o mesmo tema em duas obras de ficção que dialogam demais uma com a outra e que, muito possivelmente, partiram de uma mesma experiência compartilhada. Estamos novamente falando de amor, solidão e multidão, mas com outras nuances, a partir do olhar do outro lado, em outro tempo.
Talvez a gente saiba um pouco sobre tudo isso também.
Nosso passeio de hoje é por uma Los Angeles ficcional e futurista acompanhando Theodore (Joaquin Phoenix), um escritor que trabalha escrevendo cartas manuscritas digitalmente por encomenda. Essa Los Angeles do futuro lembra muito a Tóquio de 10 anos antes, de certa forma. Enquanto a multidão anda pelas ruas banhadas em luzes de neon, serpenteando no caminho entre arranha-céus tecnológicos, nosso protagonsita - assim como Charlotte, assim como Bob - se sente só.
Theodore vive um momento bastante peculiar de solidão: o vazio que a outra pessoa deixa depois do fim de um relacionamento. Ele foi casado durante um tempo com Catherine (Rooney Mara) e os dois estão em um doloroso processo de divórcio, em que Theodore não consegue seguir com a assinatura dos papéis e encerrar completamente esse período de sua vida.
Na semana passada, falamos sobre como, independente da quantidade de pessoas ao nosso redor, nos sentimos sozinhos onde não temos história. Onde não conseguimos criar uma história, uma conexão, ou quando vemos a história que tínhamos escapar de nós. Enquanto Charlotte se sentia sozinha dentro de uma relação que ia, aos poucos, acabando, Theo lida com a solidão deixada por uma relação que já acabou. Há um vazio que Catherine deixou quando se foi, um vazio que ele não consegue preencher.
A solidão não é exatamente sobre o que está fora, mas sobre o que está dentro. Por outro lado, aquilo que está dentro de nós também se manifesta, de certa forma, ao nosso redor. É o apartamento novo e vazio ainda desarrumado, os móveis faltando. É um momento que lembra muito nossos protagonistas de Medianeras, sobre o qual falamos algumas semanas atrás. As caixas de mudança se empilham na casa nova, com aquilo que sobrou de nós empacotado e sendo levado para o capítulo novo que ainda não sabemos como começar. É a solidão de estar na página vazia entre uma parte e outra da vida, seja ela qual for. Ao mesmo tempo, as memórias estão ali materializadas ao nosso redor, nos lembrando daquilo que não temos mais, seja nos objetos que carregamos ou no cachorro que ficou para trás, como em Medianeras. É estar em um lugar - físico e simbólico - novo, mesmo sem sair da cidade onde sempre estivemos. Não conseguimos estabelecer direito uma história nesses momentos também.
Não precisamos estar longe para nos sentirmos sós.
Ela adiciona um elemento mais sutil nesses contos de amor, solidão e multidão que não afeta só Theo, mas toda a multidão ao seu redor. Essa é uma Los Angeles futurista e uma sociedade que convive com um tipo de tecnologia que não existia na Tóquio dos fax barulhentos e telefones de linha de Charlotte. Já vimos isso antes, quando falamos de Medianeras: a infinidade das distâncias modernas que levantamos com a desculpa de que elas nos deixariam mais próximos. Naquele filme, de 2011, essas relações virtuais ainda aconteciam por mensagens de texto e chats online. Ela é um filme de 2013 e, naquela época, ainda não estávamos tão distantes assim disso. É bem interessante assistir o filme novamente hoje e ver o quanto esse futuro imaginado 10 anos antes se tornou, em muitos aspectos, parte da nossa realidade.
E aí podemos acrescentar mais um aspecto na nossa pergunta de semana passada: com tanta gente por metro quadrado, e com as possibilidades infinitas de conexão com os outros que temos, como é que às vezes a gente pode se sentir tão sozinho em uma cidade como essa?
“Sabe, às vezes olho as pessoas e tento captar quem são, além de estranhos passando. Imagino até que ponto se apaixonaram e quanto de desilusão todos já enfrentaram.”
Uma multidão de pessoas andando pelo mesmo chão, cada uma com seu próprio universo particular na palma da mão e ouvindo o que foi seletivamente escolhido de forma personalizada com os seus interesses. Caixas de e-mail cheias de spams e nenhuma novidade relevante. Chamadas de vídeo acontecem em qualquer lugar e é normal as pessoas andarem por aí falando “sozinhas”. Uma espécie de Tinder que, ao invés de imagens e mensagens de texto, aposta nos áudios. Mas Medianeras em 2011 e Ela em 2013 já adivinharam o que sabemos muito bem hoje, em 2023: tanta conexão nem sempre consegue preencher os vazios mais profundos que a vida do lado de fora das telas nos deixou. Como vamos estabelecer o olhar de reconhecimento com aqueles ao nosso redor, como o de Charlotte e Bob no bar, se nossos olhos estão sempre vidrados em um retângulo brilhante?
Talvez por isso a gente consiga se identificar, como talvez nunca antes, com o tipo de solidão nos mostrada aqui.
Se conseguimos reconhecer, hoje, que a nossa possibilidade infinita de conexão com quem não está fisicamente ao nosso lado não nos deixa menos solitários, faz sentido imaginar que, em um contexto como o de Ela, as pessoas se apaixonem pela voz que sai dos seus fones de ouvido. É o que acontece com Theo: um dia, ele esbarra em um lançamento e decide comprá-lo. O OS1 é um sistema operacional todo construído com base na inteligência artificial, que vai aprendendo e evoluindo conforme opera. É assim que ele conhece Samantha (interpretada pela voz de Scarlett Johansson - e seria essa uma mera coincidência?), seu sistema operacional personalizado, e começa a estabelecer uma relação amorosa com ela.
Não é só Theo que passa seus dias conversando e se envolvendo com aquela voz que o acompanha e que sabe tudo sobre a sua vida. Em alguns rápidos momentos, a câmera sai do nosso protagonista para mostrar o seu ponto de vista e vemos a multidão à sua frente se comportando exatamente como ele. Mas Samantha é uma tecnologia como todas as outras, feita e administrada por mãos humanas. Samantha foi criada para aprender a dizer o que Theo queria ouvir, da maneira que queria ouvir, e a relação de Theo com ela, não importa o que eles digam, não se estabelece em pé de igualdade. Não seria possível. Samantha nunca poderia contrariar Theo como Catherine, porque não foi programada para isso. Talvez seja isso que faça com que essa relação seja tão atraente: a promessa de que seremos amados incondicionalmente e jamais abandonados como estaríamos sujeitos na relação com humanos com vontade e vida própria. A ilusão de que jamais estaríamos sozinhos, de que jamais seremos deixados sozinhos de novo.
Parece reconfortante saber que temos alguém com quem podemos contar o tempo todo, independente das nossas ações, independente da maneira que mudarmos. Mas o pronome entrega e o próprio Theo o expressa em algum momento, quando as coisas que pareciam eternas se mostram mais frágeis do que o esperado: eu pensei que você era minha. Theo é uma pessoa, e os sentimentos dele podem ser completamente genuínos. É a partir deles que ele consegue se reerguer e encontrar novas conexões e criar histórias na cidade onde está - se sentir menos sozinho. Mas Samantha não é outra pessoa, é um espelho. A Ela do filme sempre foi e sempre será Catherine. E a possibilidade de cura do vazio que ela deixou está no olhar de reconhecimento da cena final do filme, não antes.
Mas não somos seres isolados. A cidade onde estamos muda também e a vida corre no próprio ritmo, independente de nós. Não dava para visualizar isso muito bem em Encontros e desencontros, porque os dois turistas estavam meio que suspensos no tempo - é como a gente se sente quando viaja. Isso trazia seus próprios elementos de solidão para a solidão que já existia. Mas permanecer em um mesmo lugar que já não é mais o mesmo que um dia foi também influencia os sentimentos que temos dentro de nós. Nossa história não se concetra apenas nas outras pessoas, mas também nos lugares que a constroem - que fazem dessa cidade um lar.
Não acho que a tecnologia seja exatamente um problema. Como falamos em Medianeras, ela pode nos aproximar também. Está nos aproximando agora, enquanto eu escrevo essas palavras de um café no centro de Curitiba em novembro de 2023 e você as lê onde quer que esteja, em qualquer tempo. Mas tem um aspecto dessa corrida tecnológica que não podemos nos esquecer. Cada vez que destruímos um pouco do passado para substituí-lo completa e irresponsavelmente pelo o que há de mais “novo”, mais in/it/hype, mais smart/inteligente e blá blá blá, a gente elimina um pouco da história. Nossa, dos outros, dos lugares, de todos aqueles que já viveram as coisas mais doidas e profundas e tristes e bonitas ali antes de nós. Isso acontece aqui com Theo, mas talvez esteja acontecendo também com todos ao seu redor. Estaria conosco também?
Uma coisa que eu achei peculiar e que talvez ilustre um pouco dessa interpretação é o quanto a cidade das memórias de Theo é diferente daquela que ele tem no presente. É a mesma Los Angeles e podemos inferir que essas memórias não são assim tão antigas. O apartamento do casal tem uma cara mais comum, a rua vista de relance pela janela também. Tudo que aparece nessas cenas de memórias tem uma cara conhecida, de lugares que permaneceram e mudaram como tempo. Quando Theo está mais envolvido com Samantha, os lugares tem um pouco mais dessa cara também, como a feira de rua, a praia e o próprio metrô. Mas o horizonte do presente do início do filme é muito mais futurista e alguns elementos que aparecem tem uma cara desconectada. Como a réplica dos toldos característicos dos prédios de Nova York que está na frente do seu prédio. É o tipo de toldo que avança da porta de entrada pela calçada para proteger os moradores da chuva. Só que ele está em Los Angeles e o prédio fica dentro de uma espécie de shopping ou galeria já fechado. Não tem nenhuma razão para aquele toldo estar ali. Talvez para gerar nas pessoas algum sentimento de nostalgia ou lembranças ou história onde não existe nenhuma. Quantos lugares assim já não apareceram nas nossas cidades nesses últimos 10 anos? Quantos espaços cheios da própria história nós já esquecemos ou destruímos para construir no lugar espaços amplos e higienizados, feitos novos para parecerem velhos, superfaturados e com letreiros em neon instagramáveis nos dizendo que só vivemos uma vez?
Se a gente ir além da estética linda do filme e olhar com mais atenção para a sociedade em que Theo vive, veremos que nada ali é tão bonito assim. As cartas que ele escreve podem ser cheias de sentimento, mas imagine descobrir que as cartas de amor que você recebe há 8 anos não foram escritas pela pessoa amada, mas pelo funcionário de uma empresa chamada belascartasmanuscritas.com. Aqui e ali, há outros elementos do passado que parecem inseridos artificalmente nesse mundo que já perdeu conexão com o que existia antes - mas que sente falta delas. Um pouco como nos sentimos hoje, talvez?
A escolha de Sofia por Tóquio para um filme sobre solidão no meio da multidão não deve ter sido, penso eu, aleatória. Talvez não tenha nenhum lugar melhor que a cidade mais populosa do mundo para evidenciar o quanto a solidão que sentimos pode se dar em qualquer lugar, com qualquer quantidade de pessoas ao nosso redor. E a escolha de Spike também não foi por acaso. A cidade fictícia imensa, hiperconectada e despessoalizada mostrada aqui também tem o potencial de evidenciar ao máximo a solidão que sentimos mais profundamente.
Em determinado momento, Samantha fala que aprendeu que “o passado é só uma história que contamos a nós mesmos”. Pode ser. Mas nós precisamos dessas histórias. Precisamos recontá-las para nos lembrar de quem somos. Precisamos fazer as pazes com elas para conseguirmos seguir em frente. Talvez seja isso que Sofia fez para se encontrar. Talvez seja isso que Spike fez para seguir. Talvez sim, talvez não. E que sorte a nossa poder ter essas histórias para nos vermos nelas e nos lembrar de quem somos. E seguir em frente - menos sós.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Ela está disponível para assistir na Netflix.
Links extras
Embora a cidade ficcional de Ela seja Los Angeles, a maior parte das cenas urbanas são filmadas em Shanghai, na China, no momento presente do filme. Essa provavelmente também não foi uma escolha aleatória. Como afirma esse artigo (em inglês), a cidade é uma das representações mais dramáticas do rápido desenvolvimento econômico do país.
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Adorei esse texto, quero voltar aos filmes agora, assisti há algum tempo!
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Deu vontade de reassitir!