“- Acho que, em certo ponto, tem menos a ver com habilidades e mais a ver com estar aberto.
- Aberto?
- É, para o mundo, para si mesmo, para outras pessoas. A maioria das coisas incríveis que comi não foi pelo nível de habilidade excepcionalmente alto, ou pelas técnicas difíceis e sofisticadas. Foi porque tinha muita inspiração, sabe?
- Gosto disso.
- Você pode passar todo o tempo do mundo aqui, mas se não passar tempo suficiente lá fora… Entende?”
The Bear (2022-presente, criada por Christopher Storer) é uma das séries que faz parte do grupo de tudo aquilo que eu não assisti em 2023. A parte boa de assistir algo bem depois que todo mundo já viu e comentou, é que a gente consegue chegar ali meio ileso, sem grandes expectativas e nem muitos conhecimentos prévios sobre a maior parte das coisas, já que, como não sabíamos exatamente do que se tratavam as notícias e fotos e memes, as informações não ficam na memória por muito tempo. Estamos abertos.
Também proporciona a possibilidade de acompanhar as mudanças daqueles personagens de uma vez, sem o longo tempo de espera entre uma temporada e outra. Acho que isso que faz com que os sentimentos sejam mais fortes, porque a memória de como cada um deles era ainda é fresca. É como se tudo se tornasse muito mais à flor-da-pele, impactasse com velocidade e nos arrebatasse nos poucos dias em que caminhamos junto com aqueles episódios curtos. Ou talvez eu só esteja emocionada demais, pode ser também. Mas estar aberta também é sobre se deixar envolver, se deixar carregar por aquela história que muda tanto e tão rápido. Torcer, ficar p* com as cagadas feitas quando as coisas estão tão perto de dar certo, se deixar levar pela loucura, pela ansiedade, pela insegurança. Ver no exagero daquelas situações pedaços de nós mesmos em algum nível, por menor que seja.
Eu sei e você provavelmente também sabe que The Bear não é exatamente uma série andante. Uma série sobre chefs de cozinha tentando reviver um restaurante endividado e depois recomeçar, parece ser uma daquelas produções em que tudo acontece em um mesmo lugar, quase como uma peça de teatro. E é um pouco isso que a primeira temporada nos traz: todo o caos daquele lugar que não sabe bem como existir sem o seu líder e o novo líder nomeado que não sabe bem como existir sem aquele que o nomeou. Tudo acontece ali dentro, a maior parte do tempo. Uma série excepcionalmente boa, daquelas que rendem muita conversa por aí e que, aqui, talvez estivesse em um dos nossos cafezinhos, que talvez se transformasse até em uma refeição completa, porque a série tem assunto para entrada, prato principal e sobremesa.
Mas aí, dois dias depois de começar a assistir, na semana passada, eu cheguei na segunda temporada.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas da cidade de Chicago, nos Estados Unidos, mais especificamente na região de River North, onde fica o restaurante The Original Beef of Chicagoland. Se você ainda não assistiu a série, tudo que precisa saber é que aqui acompanhamos um homem chamado Carmen (Jeremy Allen White), um chef renomado e famoso que herdou o restaurante falido do irmão que acabou de falecer. Logo no primeiro dia, Carmen contrata Sydney (Ayo Edebiri), uma chef em busca de um recomeço. Juntos, eles vão tentar desvendar aquele lugar e descobrir como conquistar a confiança das pessoas que trabalham ali há anos, para que todos possam seguir em frente e fazer o negócio funcionar.
Na segunda temporada, aberturas já foram feitas, obstáculos transpostos e uma parte do caminho já foi andado. Tanto o restaurante como cada uma daquelas pessoas já estão em um lugar diferente em suas trajetórias. Mas uma das mudanças mais significativas é que, enquanto a primeira temporada mostrava mais o presente de todos e da situação, na segunda o nosso horizonte se expande consideravelmente e podemos entender um pouco mais do contexto, do passado de todo mundo e dos traumas que os fizeram chegar até aquele presente daquela maneira. Temos também um vislumbre de um futuro possível quando lhes é dado o incentivo certo na hora certa, mostrando a eles mesmos tudo aquilo que podem ser e fazer - e é bonito demais ver cada um daqueles personagens florescer.
E, quando a abertura que começa pequenininha aumenta e o horizonte se expande, o que aparece ali também com muito mais força do que antes é a cidade.
Aquele é um restaurante localizado em uma rua, um bairro, uma cidade e um país - e tudo que está acontecendo lá fora impacta o que acontece lá dentro. O mesmo também é verdade para as pessoas: elas tem uma vida além daquelas paredes. Elas vem e vão, todos os dias. Logo de cara, os primeiros minutos da segunda temporada nos mostram que, dessa vez, pode até ser que passaremos uma boa quantidade de tempo dentro daquela cozinha, mas que também estaremos lá fora. Chicago nasce, esplendorosa, em cada manhã que algum dos nossos personagens acorda e sai antes do sol nascer para chegar no restaurante. Eles andam, dirigem, pegam e esperam o metrô em alguma das plataformas e olham pelas janelas dos vagões nos trilhos elevados que serpenteiam toda a cidade. Chicago tem um charme que é difícil de explicar, com todos os seus canais e pontes e pequenos parques na beira da água. Todos aqueles edifícios tão diferentes entre si e de tudo que existe em outros lugares, assinados por arquitetos famosos. Todo aquele frio e aquele vento e aquele lago que parece imenso logo ali, formando pequenas praias bem no meio do país, tão longe de qualquer um dos oceanos. A comida ali é excepcional também. A segunda temporada de The Bear traz, ainda mais que a primeira, uma carta de amor a essa cidade e, especialmente, a sua comida e a todas as pessoas que fazem ela acontecer.
Nessa segunda temporada, a série nos convida a estarmos abertos ao que acontece ao redor, ao que faz aquele restaurante e aquelas pessoas serem quem são.
Há dois episódios que são particularmente andantes: o episódio que foca em Sydney e o que foca em Marcus (Lionel Boyce), o responsável pelos pães e doces no restaurante. Enquanto Sydney segue em uma andança pela cidade para provar outras comidas e conversar e ouvir conselhos de seus colegas de profissão, Marcus está em um período de estágio em Copenhagen, na Dinamarca, para aprender com um dos colegas de Carmen.
O que esses dois episódios tem em comum é mostrar que de nada adianta que eles fiquem lá dentro da cozinha quebrando a cabeça para fazer as coisas funcionarem, que é preciso sair e ter outras experiências. A gente pode ler todas as receitas do mundo no computador, mas nada daquilo vai substituir botar a mão na massa, testar. De provar com o paladar aqueles gostos, de sentir aqueles cheiros, de ver a comida na nossa frente, com as suas texturas e camadas. Dependendo da situação, podemos até ver a pessoa responsável por aquele prato o preparando, em algum restaurante ou na casa de alguém. Há toda uma arte em fazer com as mãos aquilo que vai ser saboreado por outras pessoas. Há muito tempo de prática, muitos erros e acertos, muito cuidado e sensibilidade. Mas o que eu acho mais incrível é ver, durante o processo de preparo de algo, o quanto cada pessoa encontra seus atalhos, como a experiência de tudo que já foi feito vai fazendo com que ela trace seus próprios caminhos na feitura daquilo.
As coisas aqui acontecem mais em termos culinários, é claro, mas fiquei pensando que a reflexão pode ser expandida para qualquer outra atividade criativa que estejamos fazendo. Mesmo esse texto, que você lê agora, nasce de um longo processo de prática e do traçado de vários caminhos que fazem ele funcionar. É muito tempo de leitura, inúmeros e inúmeros rascunhos, pedaços de texto que ficam para trás no momento da revisão. Há as anotações no papel, no celular, no computador. Há a construção de uma determinada forma de pensar que é lapidada ao longo do tempo, depois de balancear o que deu certo e o que deu errado, de aprender aqui e ali coisas novas. A gente para e vê como as outras pessoas fazem as coisas, conversa com elas, aprende com o conhecimento que já adquiriram, pesquisa. A gente também entende, em algum momento, qual é a hora de parar, de respirar, de ver que nada vai sair dali, não importa quantas horas a gente fique sentado de frente para o computador.
Nada avança realmente se a gente não estiver aberto e nada que está escrito aqui anda se a gente também não andar. Se a gente não for lá fora, ver e sentir o mundo, viver todas essas emoções confusas e caóticas que de início a gente não sabe bem o que são. Se a gente não experimentar as coisas. Eu escrevo melhor quando deixo o texto de lado e vou no cinema e choro igual a uma criança, quando vejo diante de mim o trabalho minucioso e tão bem feito de outras pessoas, seja de qual tipo for. Escrevo melhor quando converso sobre esses assuntos com os outros, quando volto para casa andando e pensando que por essas ruas há coisas que estão ali há tanto tempo e o quão incrível é isso de a gente poder construir coisas que perduram, que atravessam gerações, que veem todo tipo de mudança que a nossa vida mortal jamais seria capaz de ver. A gente pode pensar em prédios, sim, mas também em todas as receitas que um dia já foram criadas e que continuam aqui conosco.
Tanto Sydney quanto Marcus seguem com seus caderninhos. Eles vão em restaurantes e pedem todo tipo de comida. Experimentam e fazem anotações. Naquelas páginas, eles anotam o que sentem e o que veem, e a partir disso, vão tendo novas ideias. É muito louco isso né? Muito louco que a gente veja o mundo e a partir disso tenha ideias para coisas completamente novas, que ainda não existem de verdade. Ideias que começam a ser gestadas na nossa cabeça e que nós transformamos em alguns rabiscos que depois irão se transformar em algo real que fizemos com as nossas próprias mãos. Um prato, um texto, uma pintura, um prédio. E o mais incrível de tudo é que todas essas coisas já criadas compõem o lugar do qual fazemos parte e constroem a pessoa que somos e nós, com tudo isso junto e misturado aqui dentro, temos o potencial de criar outras mil coisas tão incríveis no mundo.
E não são só as comidas que fazem esse grande inventário de inspirações para eles. A cena em que Sydney vai criando um novo prato conforme anda de barco no meio da cidade, olhando a arquitetura dos prédios ao seu redor, é fenomenal. Ela conversa com as pessoas dos restaurantes, ouve suas histórias, pede conselhos para os novos desafios que terá dali em diante. Sozinhos damos voltas na nossa própria cabeça, nos enganamos com nossos pontos cegos e nunca saímos realmente do lugar. Ir lá fora sempre pode nos dar uma outra perspectiva sobre aquilo que nos atormenta e é sempre bom saber que podemos contar uns com os outros. Sydney também está o tempo todo prestando atenção ao redor, vendo os restaurantes que fecharam recentemente e as dificuldades enfrentadas por todos durante e após a pandemia - mais uma das sensibilidades da série com a cidade que retrata.
Marcus também tem sua boa dose de andanças solitárias por Copenhagen. Tudo ao seu redor é completamente novo e distinto. Viajar faz isso com a gente. Viver, nem que seja por poucos dias, em outra realidade, outra forma de pensar e fazer as coisas. Estar totalmente imerso em um outro mundo. O contato com os desconhecidos que esbarramos pelo caminho também faz toda diferença, como quando Marcus ajuda o homem de bicicleta. Nada está na série por acaso. Com esse episódio, a série também expande a sua carta amor não só a Chicago, mas a todos aqueles que estão pelo mundo fazendo a comida acontecer.
Mas esses são personagens que já se colocaram abertos desde o início para as experiências novas que lhes surgem no caminho. Se isso já é bonito por si só, fica ainda mais incrível ver as aberturas que vão surgindo aos pouquinhos naqueles que, de início, eram mais resistentes às mudanças. Tina (Liza Colón-Zayas) é absolutamente maravilhosa enfrentando todas as suas inseguranças e dá vontade de chorar ao ver a sua alegria quando ela canta sozinha, se jogando com tudo que tem em uma situação nova e sentindo que pode sim, estar ali. Ebra (Edwin Lee Gibson), fumando o seu charuto e mirando o horizonte do lago que parece não ter fim, pensando sobre como e onde se encaixa nesse novo lugar, tendo dúvidas, mas seguindo mesmo assim. E Richie (Ebon Moss-Bachrach)… eu nem sei o que dizer. Talvez o episódio em que seguimos com ele, todos os dias acordando às 5h30 da manhã e pegando a carro para ir até o máximo do desconforto que ele poderia sentir, seja o meu favorito. Acho que eu nunca vibrei tanto com uma cena em uma série como aquela de Love story.
Eu já esperava que The Bear fosse fantástica, eu só não esperava o quanto. Jamais achei também que encontraria ali andanças e que elas trariam tantos questionamentos e reflexões. Sinto que posso falar da série por muito tempo ainda e essa edição já está imensa e eu nem falei de tudo que está na minha cabeça nesse momento (Carmen também sai da zona de conforto do restaurante e se abre para várias situações novas nessa temporada). Eu não esperava também a imensidão das atuações que acontecem aqui, que são de ficar pasma com a habilidade das pessoas em criar coisas. E criar coisas que causam tantas sensações na gente.
É terrivelmente assustador estar aberto e nem sempre a gente consegue. Mas é absolutamente incrível o que a gente pode viver e sentir nesse caminho quando dá uma chance para as coisas se aproximarem e fazerem parte de quem somos. E talvez seja ainda mais incrível poder proporcionar isso para os outros, poder ver no rosto das pessoas as emoções boas que causamos. Mas, para conseguir fazer isso por bastante tempo, a gente precisa ir lá para fora.
E talvez não seja só na cozinha que todo segundo conta.
Boas andanças a todos e até o próximo passeio :)
Onde assistir
As duas temporadas de The Bear estão disponíveis para assistir na Star+.
Esse texto começou a ser escrito com algumas mensagens no WhatsApp para mim mesma e alguns rascunhos feitos ao longo da semana, mas ele deslanchou mesmo na última terça à noite, depois de uma tarde com uma ida pela primeira vez em um museu aqui de Curitiba e de assistir Todos nós desconhecidos (All of us strangers, 2023, dirigido por Andrew Haigh) no cinema. Chorei que me acabei o filme inteiro e resolvi pegar um caminho mais longo para casa, vendo as lojas fecharem aos poucos no fim da tarde e as ruas meio agitadas com o Festival de Teatro que começou segunda. Vi pelo menos três buquês de flores mega elaborados passarem por mim pela rua nessa terça, certamente indo para os camarins de alguns dos vários teatros do centro. Cheguei em casa, sentei no computador de novo e esse texto saiu inteiro em 2h30, com pedaços do que eu já havia escrito antes, com todo o misto de emoções vividas nesse dia lá fora e em todos os outros dias dessa semana em que assisti a série e conversei com as pessoas sobre ela. O caderno de anotações da minha forma de criar o que chega até você é sempre uma bagunça de todas essas coisas. Espero que faça sentido aí, como faz aqui terminar um texto com a sensação de ter conseguido chegar onde queria. Obrigada por ler <3
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Mulheeeer, que texto gostoso de ler! Agora fiquei com mais vontade de assistir essa série.
Ain, que agora fiquei ainda mais tentada a assistir. Como você nos desperta, Lu!