#130 Um cafezinho: a Andanças no Olhar de Cinema 2025
andanças de festival e filmes incríveis para você colocar na lista <3
Todo ano eu tenho a impressão de que os dias do Olhar de Cinema passam voando e neste, a impressão foi ainda mais forte. Talvez porque a vida anda meio acelerada, ou porque a minha disponibilidade para o festival foi menor neste ano, ou ainda porque é tanta coisa boa acontecendo ao mesmo tempo que os dias se misturam. Quem já acompanha os nossos passeios desde o início sabe que os meus dias de festival são intensos, cheios de andanças para lá e para cá, com às vezes até 4 sessões em um mesmo dia, é uma loucura. Mas daquelas tão boa que a gente nem vê o tempo passar.
Apesar de não poder me jogar totalmente na programação desta vez (e ter sofrido um pouquinho mais para fazer escolhas), ela estava ótima como sempre e eu pude assistir vários filmes incríveis. Perspectivas novas, outros olhares sobre questões conhecidas, problemas antigos que eu não conhecia, arquivos, discussões fervilhantes que bagunçam a gente e fazem pensar. Mas como se não bastasse, está longe de ser só isso: a gente sempre fala por aqui sobre como o cinema é uma experiência coletiva e um festival multiplica isso infinitas vezes. Não são só as interações que a gente tem e percebe entre as pessoas sentadas ao nosso redor, como em uma sessão normal, mas essa rotina de encontrar as mesmas pessoas em vários dias, das conversas entre uma sessão e outra, de você se ver ocasionalmente conversando com algum diretor muito foda enquanto espera o uber ou a sessão que atrasou. Outra coisa incrível que o festival proporciona são as sessões de debates e a possibilidade de ver os filmes junto de quem os fez, logo ali na fileira da frente. Eu acho que todo um universo se expande quando a gente tem a chance de ouvir diretamente como tudo aquilo começou, quais foram os percalços no meio do caminho, os anos de trabalho e questionamentos até que aquele filme pudesse chegar até a gente. É sempre um prazer imenso poder viver tudo isso, cobrir toda essa festa pela terceira vez e trazer tudinho aqui para as nossas andanças <3
Infelizmente não consegui assistir todos os filmes da lista que eu preparei antes de o festival começar, mas fiquei felicíssima de saber que todos que levaram os prêmios de melhor filme estão nela: Cais, Conseguimos fazer um filme e Fronteriza (Melhor Filme (longa metragem), Melhor curta internacional e brasileiro, respectivamente).
Cais (2025, dirigido por Safira Moreira dos Santos), inclusive, é uma força tão potente que é até difícil de colocar em palavras. Pela sinopse, eu imaginava que seria um filme em que a diretora segue em suas andanças pelo interior baiano buscando refletir e se reencontrar após a perda da mãe, mas é muito mais que isso. Curtinho (67 minutos), Cais é poesia em forma de imagem e faz o tempo parar para nos levar diretamente para aquilo que é mais importante do que tudo. Com o filho pequeno no colo, a diretora Safira segue e nos mostra no caminho toda a natureza e todos os trabalhos tão cuidadosos e essenciais que fazemos enquanto seres humanos para viver na e com a natureza. Assistindo, o que eu mais pensava é que aquele era um filme sobre cuidado, e que é isso que nos faz humanos e que faz a vida valer a pena: da mãe com o filho, das pessoas com a natureza, do preparo da comida, da feitura manual tão precisa das coisas, das nossas crenças. É sobre os nossos rituais de chegada e de partida, da felicidade que se mistura com a dor, do olhar atento de quem nos cuida, de quem cultiva a vida pela vida inteira. É um filme lindo demais, que fala tanto e consegue nos tocar - no mais profundo do significado das coisas, nos motivos pelos quais estamos aqui - falando muito pouco. Ver o bebê já mais crescido ali junto com a mãe e a equipe no palco, com todo mundo muito comovido com a exibição do filme e com os prêmios merecidíssimos (Melhor Filme, Prêmio do Público e Prêmio da Crítica Abraccine), deixou toda experiência ainda mais emocionante. Veja o trailer aqui.
Cais fala de uma relação com o sagrado, e Aurora (2025, dirigido por João Vieira Torres) faz algo parecido seguindo por outro caminho. No filme, o diretor João, que mora na França, sonha com a sua falecida avó Aurora e começa a investigar o que o sonho poderia ser. Ele vem para as cidades do nordeste onde a sua família viveu e segue em uma grande andança conversando com várias pessoas em uma busca não apenas por um significado, mas também pela reconstrução de um passado. Ele se pergunta o que a gente faz com aquilo que recebe, com essas gerações de histórias que nos trouxeram ao mundo, com os fantasmas que vivem ali, com essa mania de esconder aquilo que é difícil embaixo do tapete por décadas, como o próprio diretor falou no debate. João vai contando as histórias de gerações de mulheres de sua família e, com isso, acaba contando também uma história do Brasil do último século. Enquanto assistia o filme, eu ficava pensando em como essas histórias são pessoais e específicas, mas também no quanto elas são conhecidas do nosso próprio passado e também do nosso presente. Dos sonhos que temos e que nos conectam aos nossos familiares, das nossas crenças, das coincidências e de tudo aquilo que não dá para ver. É também uma história de inúmeras violências contra essas gerações de mulheres, assim como infelizmente a gente também vai encontrar nas nossas famílias.
João falou sobre fazer um filme como um sistema de álbum de fotografias familiar e é exatamente essa a sensação, com esse ato tão tradicional de olhar as fotos, lembrar das pessoas e contar suas histórias, rir do que passou e também tocar nas feridas das várias tragédias que marcaram o caminho. É um filme muito bonito que me fez pensar muito sobre ancestralidade, sobre essa teia invisível que nos liga àqueles que vieram antes de nós e que às vezes nem tivemos a oportunidade de conhecer, sobre a terra ao qual pertencemos e sobre as inúmeras coisas boas que também crescem mesmo nos terrenos mais áridos. Gostei bastante da relação das histórias com os espaços, das árvores que testemunham, como falou João, e do processo de encontrar um corpo para as vozes, de materializar e registrar. Ouvir o diretor João falando sobre a dificuldade de investigar e mostrar o próprio passado familiar não só para um público amplo, mas também para a própria família também foi muito interessante. O filme levou o prêmio de Melhor Direção de Fotografia e tem cenas lindíssimas nas andanças pelo interiorzão desse Brasil. Veja o trailer aqui.
As relações familiares, especialmente com as mães, foi um tema que apareceu muito fortemente nos filmes que assisti e foi o caso de mais outros dois filmes internacionais da programação. Um deles foi Hot Milk (2025, dirigido por Rebecca Lenkiewicz), onde o tema é beeem intenso.
Hot Milk era uma das minhas maiores curiosidades desta edição. Primeiro, porque o filme, inspirado no livro de mesmo nome de Deborah Levy, conta com um elenco principal bem estrelado e está sendo bastante divulgado há um tempo (ele estreia nos cinemas na semana que vem, dia 3 de julho!). Segundo, porque ele tem avaliações terríveis no Letterboxd e eu ficava aqui só pensando o que teria gerado tudo isso. A história é bastante psicanalítica e me faz pensar que o filme talvez não tenha atendido a expectativa de todo mundo sobre como ele seria - mas também não acho que essa seja a intenção dele. O tempo todo eu ficava pensando na ideia de ebulição. Acabei lendo depois que o título Hot Milk veio por conta de algo que é mais elaborado no livro, mas durante o filme, o título me fazia pensar no leite esquentando devagar no fogão e crescendo e crescendo até transbordar e fazer aquele estrago.
Emma Mackey está incrível no papel de Sofia e tem algumas cenas de explosão que são catárticas de se ver. Apesar de passar a maior parte do tempo do lado de fora, o filme tem um ar claustrofóbico que vai nos envolvendo e bagunçando a percepção do que é real e do que não é. As várias andanças pelo verão espanhol trazem cenas lindas e parecem deixar tudo isso ainda mais confuso em uma paisagem meio desértica. Muito dessa sensação também vem da atuação sempre fenomenal de Fiona Shawn, que interpreta a mãe Rose, e é seca e não hesita um segundo em fazer a nossa cabeça dar ainda mais voltas. No fim das contas, gostei bastante do filme, achei looonge de todas as coisas que li sobre ele, e ele criou um quebra-cabeças na minha mente que eu ainda não consegui decifrar. Volta e meia penso em alguma coisa que não me agradou tanto e logo vem a percepção de que talvez aquilo esteja ali de propósito. Sai com vontade de ler o livro e de compreender melhor todas as referências que eu tenho certeza que não são nem um pouco à toa.

Em geral, eu vi vários filmes incríveis, mas Medidas para um funeral (Measures for a Funeral, 2024, dirigido por Sofia Bohdanowicz) mexeu fundo em alguma coisa dentro de mim e foi o meu favorito absoluto desta edição. Nele, Audrey (Deragh Campbell) é uma jovem pesquisadora que está escrevendo uma tese sobre a canadense Kathleen Parlow, uma violinista talentosíssima que viveu entre 1890 e 1963 e foi muito conhecida por sua técnica, mas que acabou ficando esquecida na história. Audrey vem de uma família de musicistas e o tema de pesquisa também toca fundo nas suas próprias feridas familiares antigas e aquelas latentes: sua mãe está no leito de morte e a relação entre elas, da mãe com a história da família e de ambas com a música é bastante complicada. O filme tem um jeito incrível de entrelaçar a ficção da vida de Audrey com a parte documental que apresenta a pesquisa real sobre a vida de Kethleen. Fiquei com a impressão de que se uma tese inteira fosse transformada em um filme, essa seria uma das maneiras mais incríveis e bonitas de fazê-lo. Dá para ver todo o processo de uma pesquisa acontecendo aqui: o mergulho nas cartas e fotos antigas, a pesquisa de campo visitando lugares onde ela morou, as visitas às instituições e pessoas que podem ajudá-la e o auge de tudo, que é uma coisa de tirar o fôlego: um concerto real, com o teatro lotado e uma performance da violista espanhola María Dueñas que não tem palavras para descrever.
Eu achei tudo no filme muito emocionante. A dificuldade de Audrey em escrever em meio a uma crise familiar, o envolvimento e emoção que ela tem com a própria pesquisa, a obsessão e a vontade de mergulhar naquele universo, a comoção que vem tanto com a música em si quanto com a emoção dela a ouvindo, todas as cenas em que a música toma conta e as conversas profundas que acontecem ao longo do filme. Chorei o filme inteirinho e fiquei presa na poltrona quando a luz acendeu, totalmente sem rumo.
Quando ele acabou eu senti que precisaria de um tempo para absorver tudo. E ele certamente ainda vai voltar aqui em uma edição mais elaborada algum dia, até porque é cheio de andanças de pesquisa por Toronto, Londres, Oslo e Montreal. Não é um filme que agrada a todos em acho, principalmente por conta do tempo de duração e pelo ritmo que pode ser um pouco mais lento, mas vale muito muito a pena. Quero ver mais filmes da diretora e também da atriz principal, que é incrível. Sai também com vontade de escrever mais uma tese, é claro.
Veja o traileraqui. Essa entrevista (em inglês), dada pela diretora nesta semana para um festival de cinema espanhol, também é muito boa!
Além desses, assisti vários outros filmes. Um corpo para habitar (A Body to Live In, 2025, dirigido por Angelo Madsen Minax) conta a história de Fakir Musafar (1930-2018), um dos precursores do body piercing, uma figura tanto curiosa quanto controversa. É um filme que também mergulha nos arquivos enquanto nos conta a história desse homem tão peculiar. Foi mais um filme que eu gostei bastante e o diretor Angelo também trabalha em várias outras frentes do filme, criando um visual belíssimo para as imagens mostradas.
Em uma mesma sessão, os documentários Quarup Sete Quedas (1983) e Desapropriado (1983), ambos dirigidos por Frederico Fullgraf, que abordam os impactos sociais e ambientais da destruição das Sete Quedas, uma das maiores maravilhas naturais do mundo, para a construção da usina hidrelétrica de Itaipu. Deu muita raiva e muita angústia, além de tocar diretamente nos temas do que é considerado “progresso” (que eu abordo na minha tese) e o custo disso. É uma história que, mesmo crescendo aqui perto, eu não conhecia muito bem e os documentários são incríveis, além de parecem ter sido super difíceis de fazer na época, enquanto tudo estava acontecendo.
Outra sessão que gerou raiva foi uma das mostras competitivas de curtas, todos abordando algum tipo de violência que se apresenta nos nossos tempos. A violência de gênero, ambiental, da guerra e do trabalho no sistema capitalista. Todos focam em situações específicas e reais, pessoais e de uma comunidade mais ampla, mas que também podem ser expandidos para tantas outras violências que, especialmente nos últimos dias, tem estado tão latentes para nós. Fiquei muito tocada com a história da diretora de Depois do silêncio (2024, dirigido por Matilde-Luna Perotti), achei os silêncios barulhentos das usinas eólicas de A nave que nunca pousa (2025, dirigido por Ellen Morais) ensurdecedores e percebi o quão pouco conheço das inúmeras violências das guerras nos países do Oriente Médio, como o foco no Kuwait de Ídolo Perecível (2025, Majid Al-Remaihi). Sobre Girassóis (2025, dirigido por Jessica Linhares e Miguel Chaves), que é lindo e cruel no que aborda, falei mais aqui.
Outra sessão de curtas que assisti tratava de questões relacionadas ao território que acabam se relacionando bastante com outros filmes que já mencionei. Ontem lembrei de minha mãe (2025, dirigido por Leandro Afonso) também traz o despejo na região de Sete Quedas, mas sob a perspectiva também da Argentina e do Paraguai. Achei Barco de tolos (Ship of Fools, 2024, dirigido por Alia Haju) ótimo (e falei mais aqui) e Maira Porongyta - O aviso do céu (2025, dirigido por Kujãesage Kaiabi) é muito interessante, trazendo o sonho de um pajé sobre o futuro do planeta.

Além desses, também teve a sessão de abertura, que aconteceu novamente na Ópera de Arame, em uma das noites mais frias que tivemos neste ano até aquele momento (já superamos essa marca nesta semana). O filme de abertura foi Cloud (2025), de Kiyoshi Kurosawa, um filme de vingança e de fuga, cheio de correrias e de coisas para pensar. Também já falei um pouco mais sobre ele nesta resenha também na nossa seção especial de críticas. Ele estreia dia 17 de julho nos cinemas brasileiros.
Como sempre, fiquei super feliz de poder acompanhar tanta coisa, me envolver nos temas e sair com a cabeça fervilhando de mais uma edição do Olhar. Um super obrigada à organização e a todo mundo que acompanhou as andanças de festival por aqui e pelo instagram. Ano que vem tem mais <3
Os curtas brasileiros estão disponíveis para assistir gratuitamente na plataforma do Itaú Cultural Play até o dia 9 de julho.
Por hoje é só! Esta foi uma edição especial do nosso cafezinho, uma edição tradicionalmente enviada para os assinantes da newsletter. Se você quiser ler os últimos e os próximos cafezinhos na íntegra, considere apoiar a Andanças. Custa apenas 10 reais por mês (dois cafezinhos!).
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Até a próxima edição :)