#15 Andanças Especial, parte 4/4: As aventuras de M. Hulot no tráfego louco
Sobre olhar ao redor e apreciar a paisagem
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas, trilogias, são o tema de um diretor ou possuem vários filmes com um mesmo personagem. É o caso desse primeiro passeio especial que se encerra hoje. Falamos da cidade a partir de 4 filmes do diretor Jacques Tati com o seu famoso personagem principal: Monsieur Hulot.
Meu tio e Playtime são as grandes obras-primas de Jacques Tati. São também seus filmes mais famosos, mais bem-avaliados e que o consagraram como um dos grandes diretores de século XX. As aventuras de M. Hulot no tráfego louco (Trafic, 1971), quarto e último filme do nosso protagonista, não é tão conhecido quanto seus antecessores e as opiniões sobre ele tendem a ser mais divididas. Para mim, entretanto, ele tem uma coisa diferente… um certo ar mais leve e contemplativo. Não tem jeito: por mais que eu adore os outros três filmes, Trafic é o meu favorito.
Passamos uma boa parte das nossas vidas dentro de veículos. Isso é bom? Provavelmente não - e há muitas e muitas críticas a se fazer. Tati explora uma boa quantidade delas em Trafic. Lá no começo dessa jornada, em As férias do Sr. Hulot, víamos a maior parte das pessoas se locomovendo em trens e lotando alguns poucos carros que circulavam pela cidadezinha. Agora, nos anos 70, os automóveis individuais se tornaram mais acessíveis e tomaram conta da cidade, que é cada vez mais retalhada para comportar tantos veículos. O fetiche do automóvel está no seu auge, e Tati escancara isso nas cenas urbanas.
Mas como seres poéticos, atrapalhados e caóticos que somos, todo mundo tem alguma história boa para contar que aconteceu dentro de um carro, de um ônibus ou de um trem/metrô - seja dentro da cidade ou na estrada, durante o trabalho ou em uma roadtrip. Não seria diferente na empreitada da andança de hoje.
Hulot (Jacques Tati), agora mais velho e mais experiente, trabalha como projetista em uma fábrica de automóveis e é o responsável pela grande inovação do ano da empresa: um carro equipado especialmente para acampar. A novidade será exposta em uma feira internacional de automóveis em Amsterdã e é preciso levar o carro de Paris até lá. A comitiva parte em três veículos e é formada por Hulot, o vendedor François (François Maisongrosse), o motorista Marcel (Marcel Fraval), e a responsável pelas relações públicas, Maria (Maria Kimberly), com seu cachorro Piton. É na largada dessa corrida maluca (qualquer semelhança provavelmente não é mera coincidência) que começa o nosso passeio de hoje.
Segundo o Google Maps, o trajeto de Paris até Amsterdã leva cerca de 6 horas dirigindo (e provavelmente não era tão diferente nos anos 70). Nossos personagens levam alguns dias, e é óbvio que não chegam a tempo na feira. O pneu fura, falta combustível, tem congestionamento, problemas mecânicos variados, problemas na fronteira entre os países, problemas com a polícia, um acidente e muitos desencontros. Hulot, Marcel e Maria (porque François sai na frente sozinho e chega antes) dão voltas e mais voltas para conseguir resolver os problemas que surgem, enquanto causam um outro tanto por onde passam.
Mas nessa corrida maluca de obstáculos, o que importou foi o trajeto, no fim das contas. Para eles e para nós: Tati nos dá algumas cenas lindíssimas dessa vida na estrada, das inúmeras cidades pequenas por onde elas passam e da própria paisagem. Como diz uma usuária do Letterboxd nessa review excelente do filme, a viagem é só uma desculpa para olhar ao redor, para esse mundo que construímos e onde vivemos - e apreciá-lo por um instante.
A viagem que começa com pressa, irritação e estresse generalizado vai se apaziguando conforme nossos personagens precisam aceitar que as coisas tem seu próprio tempo e que, muitas vezes, não há nada que possamos fazer para acelerá-lo. Ou ainda pior: quanto mais tentamos acelerar, mais problemas causamos e mais tempo precisamos dispender resolvendo-os. Sabemos bem como é isso na nossa vida, que acelerou ainda mais desde o tempo de nossos personagens. Mas já que estamos aqui, por que não aproveitar? Os atrasos e os desvios podem nos trazer algo ainda melhor do que aquilo que esperávamos encontrar tão avidamente no fim da rota.
Fora das grandes cidades, a vida tem outro ritmo. Será que tudo é tão “para ontem” assim? Qual o tamanho real das nossas urgências, de onde partem as nossas angústias? Até que ponto faz diferença hoje ou amanhã cedo? Seguimos tão absortos em nossas próprias questões e no que precisamos fazer que muitas vezes esquecemos de olhar. E quando paramos… não é de tirar o fôlego? Seja a própria natureza ou esse mundo que construímos por tanto tempo, com tantas mãos. Nossos personagens até se esquecem da feira por alguns momentos - qual era o objetivo da viagem mesmo?
Hulot começa este filme caminhando por uma Paris cheia de carros e termina também caminhando em uma Amsterdã congestionada sob a chuva. Nosso personagem mudou e as cidades por onde ele passou também, mas seria mentira dizer que o delírio industrial conseguiu os abocanhar. Sr. Hulot continua andando por aí, com seu cachimbo e seu guarda-chuva. Ele busca nessa grande cidade moderna um lugar que seja seu - e o encontra.
Encontra porque ali existem também um número enorme de pessoas que compartilham dessa essência. Essa coisa de ser meio atrapalhado, mas com bom coração; de errar o tempo todo, mas estar sempre pronto a corrigir o erro; de fazer o trabalho que precisa ser feito nesse mundo doido capitalista, mas sabendo que o mais importante é aproveitar as simplicidades da vida; de ser caminhante, de ser curioso, aberto, gentil; de estar sempre pronto para a cantoria.
Hulot não está sozinho. Enquanto ele e Maria seguem a pé na chuva no meio de tantos carros, outras várias pessoas também fazem o mesmo, costurando seus caminhos com uma velocidade e liberdade que os motores parados não conseguem ter. Mas mesmo dentro de cada carro a vida também pulsa: são as amigas fofocando energicamente, as crianças brincando e brigando no banco de trás, um motorista solitário curtindo uma música enquanto espera.
Não importa o quanto um pequeno grupo de poderosos nos imponham o que comprar, que tipo de vida levar e sob quais regras devemos nos locomover. Nos adaptamos porque precisamos: de trabalho, de dinheiro, de comida, de conforto, de segurança. Mas sempre do nosso jeitinho - humano - de ser, cheios de falhas, de imperfeições, de desejos e vontades. Enquanto andarmos por aí carregando esse bom coração pulsante de vida, nossas cidades também estarão cheias de amor, apesar de tudo.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Os filmes de Tati com o Sr. Hulot costumam estar disponíveis para assistir na Mubi. No momento da escrita desse texto, entretanto, os filmes não estão mais no catálogo. Mas, se você estiver lendo esse texto em um outro tempo, vale a pena checar se eles voltaram para a plataforma :)
Me conta!
Encerramos hoje a primeira edição especial da Andanças! Há ainda muitos outros especiais bem legais por vir e queria saber de vocês: o que acharam? Me conta como foram essas 4 semanas de passeio com um mesmo personagem e o que mais estiver no seu coração <3
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