#43 Andanças no Olhar de Cinema, parte 2/3
As ruas de Curitiba, Vitória, Paris, Montreal, Londres e Tóquio: três dias de festival cheios de filmes andantes para a gente conhecer
Olá! Esta é uma edição especial da Andanças, falando um pouco de como foram os dias 4, 5 e 6 do Olhar de Cinema, o festival internacional de cinema de Curitiba, e os filmes que eu assisti. Na edição #41 conto certinho como está sendo a minha cobertura do evento por aqui e você pode ler um pouco mais dos três primeiros dias na edição #42. Se você quiser ver mais, pode me seguir no Instagram!
Esta edição segue o mesmo estilo da anterior: no início, trago algumas impressões gerais e, logo abaixo, falo um pouco mais de cada um dos filmes andantes que assisti.
Se nos três primeiros dias os filmes trouxeram a familiaridade das andanças dentro do nosso país, esses foram dias de adentrar andanças muito, mas muito muito próximas - andanças que eu, pessoalmente, conheço muito bem. No filme Solange, a protagonista de mesmo nome anda pelas ruas do centro de Curitiba enquanto visita o apartamento de seus amigos. Esse é o centro onde eu moro já há mais de quatro anos - é fácil localizar Sol no mapa que eu tracei repetidamente com meus olhos e meus pés. O lugar onde ela para com o espelho na mão é subindo a Presidente Carlos Cavalcanti, a rua que eu tenho andado todos os dias para ir no Cine Passeio. O apartamento do seu amigo deve ser o da esquina da Barão do Serro Azul com a Treze de Maio, porque dali dá para ver bem o Conservatório de Música, o teatro Zé Maria e o Semente de Girassol, onde eu pensei em almoçar esses dias. É bom se ver tão em casa no cinema.
Outras andanças conhecidas foram as de Mel pelas ruas estreitas e cheias de escadarias do centro de Vitória no documentário Toda noite estarei lá. Eu já andei na região do salão de beleza dela muitas vezes, que fica perto, veja só, de outra 13 de Maio. Me pergunto se alguma vez já passei de carro pelo trajeto que ela faz todo dia a pé do salão até a igreja que a proíbe de entrar. Várias outras cenas conhecidas da cidade também apareceram: a viagem de carro pela terceira ponte, a ciclovia que segue em direção ao centro mostrando o porto no horizonte. As filmagens começaram em 2017 e eu poderia muito bem estar naquelas mesmas ruas, andando à pé ou de bicicleta enquanto as diretoras dirigem e conversam com a protagonista.
Mas esses também foram dias de muitas andanças internacionais. Delas surgiu o meu favorito do festival até agora: Novembro, que mostra a cidade de Montreal, no Canadá. Eu nem sei exatamente como falar dele em algumas poucas linhas, porque achei que esse é um filme que traz a essência do que fazemos aqui nas nossas Andanças. Saí da sessão pasma, agitada, com aquela sensação de “é isso!”. Outro filme lindo e bem andante é Lembranças de todas as noites, que se passa em um bairro de Tóquio que foi revitalizado com um novo planejamento urbano.
Um tema comum que surgiu dos filmes que eu vi nesses três dias foi o dos deslocamentos. Voluntários ou forçados, em busca de algo que ficou para trás, ou do que se quer para o futuro. Questionamentos sobre a imigração, sobre ser imigrante, sobre vizinhança e circular dentro de uma mesma cidade. Será que ir para outro país é realmente melhor? Como é a nossa relação com nossos vizinhos, com as pessoas que habitam o mesmo espaço que nós? Será que nos lembramos, nas grandes cidades, que fazemos parte de uma grande rede de pessoas? Como fazemos essas trocas e o que fica delas depois que partimos para outro lugar? Foram muitas as reflexões que rondaram nossos personagens enquanto eles caminhavam pelas ruas de Curitiba, Vitória, Paris, Montreal, Londres e Tóquio.
Para além dos filmes andantes, também assisti dois filmes da mostra especial que traz uma retrospectiva dos filmes do diretor David Cronenberg - vi Videodrome e Gêmeos: mórbida semelhança. O tema da internet e do mundo digital foi outro que surgiu em uma das exibições competitivas de curtas nacionais e internacionais. Virtual Genesis, Humano não-humano e A mecânica dos fluídos nos colocam para pensar como a internet tem adentrado o nosso cotidiano e estabelecido relações capitalistas muito complexas, das quais ainda não entendemos direito e não sabemos bem o que fazer. Chat GPT, trabalhos precarizados na Amazon para ensinar a Inteligência Artificial, Tinder e Incels - “O sonho da nossa solitude produz dados que são vendidos por milhões” . Muita reflexão interessante sobre algumas coisas que eu nem sabia que existiam.
No mais, não vou me prolongar muito nessas impressões gerais. Esses dias estiveram cheios de filmes lindos e está sendo um esforço imenso falar só um pouquinho sobre cada um deles nessa edição geral. Muito em breve eles voltam aqui em edições convencionais, porque a minha cabeça está a mil e eu estou muito animada para me aprofundar mais em alguns deles.
Solange (2023, dirigido por Nathália Tereza e Tomás Osten)
Solange (Cássia Damasceno) é uma mulher que morou em Curitiba e, quando se mudou para a Bahia e não pode levar tudo, deixou caixas com seus pertences com cada um de seus amigos. Anos depois, ela retorna à cidade para buscar o que deixou, mas encontra uma enxurrada de sentimentos mistos. Acompanhamos suas andanças de apartamento em apartamento enquanto Sol se confronta com o seu passado e com aquilo e aqueles que ficaram. A atriz e roteirista Cássia Damasceno falou, na sessão de debate após o filme, que tanto Sol quanto as caixas são portas abertas à interpretação de cada um que assiste. Para mim, as caixas são metáforas de coisas muito mais complexas que ela deixou para trás quando partiu e essa busca pela cidade reflete também uma busca interior: ao que ela ainda se apega e por quê? O filme ainda tem uma cena maravilhosa de bebedeira das duas amigas dentro de casa totalmente gente como a gente.
Disco Boy (2023, dirigido por Giacomo Abbruzzese)
“Pensávamos que seria melhor. Estávamos errados.”
Alex (Franz Rogowski) é um homem da Bielorrússia que, junto com um amigo, tenta entrar na França ilegalmente em vários dias de andanças pelas fronteiras europeias. As coisas dão bem errado e, sozinho e sem nada em Paris, Alex decide entrar para a Legião Estrangeira, uma espécie de braço do exército francês que permite o alistamento de estrangeiros. Ali dentro, ele ganha um visto de trabalho e, depois de 5 anos de serviço, receberá um passaporte francês e poderá até mudar seu nome. Mas, depois de uma missão na Nigéria em uma região onde a vida da população local é cada vez mais destruída pela extração de petróleo, Alex começa a questionar o que está fazendo ali. Ele queria a vida melhor que Paris poderia proporcionar, mas as experiências de perdas que passou, muito mediadas por uma ideia de um “tipo certo” de estrangeiro, de quem vale a pena ser salvo e quem não, parecem o balançar enquanto anda pela cidade e a vê em contraste com a hostilidade produzida por esse mesmo país em outros lugares, para outras pessoas. Em uma dada cena, seu superior no exército fala que ele terá “a sorte de se tornar francês” e que, lá fora, sem documentos, ele não é nada - apenas um fantasma, um ilegal. Mas o que significa ser francês, afinal de contas? O filme tem alguns pontos que me incomodaram, mas isso é assunto para outro dia. Uma reflexão bastante interessante sobre imigração ilegal e novas formas de colonialismo, além de ser lindo visualmente.
Toda noite estarei lá (2023, dirigido por Suellen Vasconcelos e Tati Franklin)
O documentário conta a história de Mel Rosário, uma mulher trans bastante religiosa, que é cabeleireira no centro de Vitória. Em uma igreja evangélica perto de sua casa, o pastor a impede de entrar para participar dos cultos. O filme acompanha a grande batalha legal travada durante vários anos por Mel por seu direito de ir e vir para a igreja, um lugar público que não pode escolher quem entra e quem não. Toda noite, Mel anda até à igreja e segura cartazes em protesto, enquanto as idas e vindas das decisões judiciais e o cumprimento ou não delas acontecem. As diretoras comentaram, na coletiva de imprensa, o quanto uma das primeiras questões que surgem é sobre Mel simplesmente deixar aquela igreja e frequentar outra, onde seria bem recebida. Elas falaram sobre a preocupação no filme em mostrar a luta de Mel pelo direito de estar naquele lugar especificamente como legítima, enquanto também apresentam as motivações dela e seu posicionamento político em permanecer lutando pelo espaço que deseja - e tem o direito de - ocupar.
O innu do futuro (2021, dirigido por Stéphane Nepton)
Este é um curta, apresentado em conjunto com o filme Novembro, que faz parte da Mostra Foco, que este ano traz uma parceira com o Rencontres Internacionales du documentaire de Montréal (RIDM), apresentando o cinema realizado no Quebec. Nele, o diretor se apresenta como alguém que tem raízes nos povos originários da região, mas que nasceu e cresceu em uma vida urbana francófona, afastada dessas raízes, com elos quebrados. Ele anda pela cidade, contrastando o cinza urbano com as paisagens naturais locais, em um processo de entender essa identidade mista de alguém que não está nem lá, nem cá.
Novembro (2023, dirigido por Iphigénie Marcoux-Fortier e Karine van Ameringen)
No filme, as diretoras vão conversando com diversas pessoas diferentes enquanto elas vão fazendo suas atividades cotidianas nas ruas de Montreal. Novembro é um mês de final de outono e começo de inverno na cidade, em que os dias começam a ficar mais escuros e as diretoras traçam essas conversas sobre quais são as escuridões na vida dessas pessoas e de maneira elas encontram a luz. Cada pessoa vai nos levando até a próxima e as histórias e o que cada uma delas fala é incrível. Em uma delas, uma mulher que faz convites de casamento conta que, com a pandemia, ela passou a repensar muito mais o papel que tinha como vizinha na sua rua, nesse momento em que todos estavam em isolamento. Ela então tem uma ideia: separar pedaços de uma mesma história em diferentes casas, fazendo as pessoas andarem por toda a rua para ler a história completa. Ela perfura as letras em pequenas caixas e coloca uma lâmpada dentro, de forma que a história só pode ser lida à noite, com a luz acessa. Cada uma das casas coloca essas caixas nas suas janelas e a história pode ser lida por quem passa. Essa mesma mulher fala sobre como as pessoas ricas tem os seus jardins, mas aqueles que não os tem ainda tem as calçadas: a calçada ainda é sua e é ali que a vida real acontece. Essa é só uma das histórias, que são todas lindas e emocionantes e reflexivas sobre esse lugar que ocupamos dentro de uma cidade, sempre em relação com as pessoas ao nosso redor, mesmo que nem sempre tenhamos consciência disso. O filme é lindo, delicado, todo em preto e branco, nos levando em viagem pela vida na rua no final do outono em Montreal. Meu favorito do festival até agora.
A paixão da lembrança (1986, dirigido por Maureen Blackwood e Isaac Julien)
Esse é um filme da mostra Olhares Clássicos e traz fortes questionamentos sobre raça, gênero e sexualidade através de várias conversas entre alguns personagens negros que fazem parte de uma família e de um grupo de amigos. O filme tensiona as relações de raça entre os personagens e a vizinhança branca, os papéis diferentes que homens e mulheres ocupam dentro dessa luta e as questões de sexualidade que permeiam também essas relações, mostrando que essas lutas estão todas interligadas. Os personagens andam pelas ruas de Londres fazendo essas reflexões em muitas conversas, mas nós também vemos muitas filmagens de cenas reais de diversas manifestações diferentes pelas ruas. Essa é a mesma Inglaterra de Thatcher, que vimos em Orgulho e esperança, e os cartazes com “Victory to the miners” aparecem em vários momentos no meio da multidão. Mas, naquele filme vemos a interseção apenas das comunidades sindicais e LGBTQIAP+ brancas. A paixão da lembrança mostra uma outra perspectiva daquelas mesmas lutas, com a população negra envolvida também ativamente nas ruas contra a violência policial branca.
Lembranças de todas as noites (2022, dirigido por Yui Kiyohara)
Aqui passeamos pelo bairro de Tama New Town, uma região que era rural nos arredores de Tóquio e que passou por um processo de planejamento urbano recente. Esse é o bairro em que a diretora cresceu e, neste filme, acompanhamos três mulheres de idades diferentes enquanto elas caminham por esse mesmo bairro em relações distintas com ele. Uma delas é uma jovem universitária que vive o luto de ter perdido um amigo; a outra, uma mulher de uns 30 anos que trabalha como medidora de gás e se depara com um idoso perdido pelo bairro; a terceira, é uma mulher na faixa dos 40 anos que está desempregada e vai ao bairro visitar um amigo, sem conseguir achar seu endereço. Enquanto andam e interagem com diferentes pessoas, incluindo crianças e idosos, há também uma reflexão sobre a solidão e o quanto esse planejamento - muitas vezes “exemplar” na teoria - também afastou as comunidades que tinham uma determinada organização na região e uma relação de muito mais proximidade e companheirismo com seus vizinhos, que agora raramente veem. Delicado e lindo, muito bom para pensar sobre planejamento urbano e gentrificação.
Esses filmes são todos incríveis e vão para nossa lista para voltarem em edições só deles logo logo. O festival agora vai para a sua reta final e hoje assisto mais filmes por aqui, dessa vez com vários curtas. No instagram, estou publicando vídeos curtos dos debates e conferências de imprensa nos stories e lá você pode ver um pouco mais das próprias pessoas citadas aqui falando sobre seus filmes (os stories antigos estão salvos no destaque “Olhar de Cinema”).
Como sempre, nossa conversa continua nos comentários e nosso próximo passeio é na quinta, fechando as edições especiais sobre o festival. Até lá :)
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com