#44 Andanças no Olhar de Cinema, parte 3/3
Outras perspectivas sobre a cidade e os filmes que assisti nos últimos dias do festival
Olá! Esta é uma edição especial da Andanças, falando um pouco de como foram os últimos dias do Olhar de Cinema, o festival internacional de cinema de Curitiba, e os filmes que eu assisti. Na edição #41 conto certinho como está sendo a minha cobertura do evento por aqui e você pode ler um pouco mais dos outros dias do evento na edição #42 e na edição #43.
Esta edição segue o mesmo estilo das anteriores: no início, trago algumas impressões gerais e, logo abaixo, falo um pouco mais de cada um dos filmes andantes que assisti.
E a 12ª edição do Olhar de Cinema chegou ao fim. Foram dias intensos, corridos, muitas vezes cansativos - mas foi uma coisa maravilhosa estar imersa no festival nesses últimos nove dias. Ao todo, assisti 18 longas e 14 curtas, entre filmes novos e clássicos. No fim das contas, consegui assistir tudo que eu mais queria, mas foi incrível demais também me surpreender lá, na hora. Eu sei que muitos desses filmes ainda ficarão comigo por um bom tempo e agora deixarei eles serem absorvidos com calma para voltarem aqui nas nossas Andanças em edições só deles.
Esses foram dias de pensar outras perspectivas sobre a cidade. Fiquei pensando muito sobre como, quando pensamos em filmes andantes, é muito fácil cairmos na armadilha de achar que essas histórias acontecem apenas quando garoto-encontra-garota e eles andam por alguma cidade europeia. Nada contra esses filmes - a gente adora eles também. Mas, muitas vezes, além de aquelas não serem as nossas cidades, também não são a nossa realidade, nosso tempo, nossos corpos, nossas formas de se relacionar. Se estamos falando de pessoas e de cidades, há uma multiplicidade imensa de realidades possíveis, e cada uma delas nos abre caminhos por onde diversas outras histórias andantes acontecem.
Eu ouvi bastante sobre fissuras nesses dias. Acho que o cinema acaba sendo essa grande fissura para outros modos de viver, outras realidades que nos são desconhecidas, tanto aquelas muito distantes de nós, quanto aquelas que estão acontecendo muito perto - em outros países do nosso continente como a Colômbia de Anhell69, ou em outros bairros da nossa mesma cidade, como a CIC de A trilha sonora de um bairro. O cinema - e principalmente o cinema independente, fora das grandes produções nas quais muitos interesses estão em jogo - se torna uma possibilidade de outras histórias serem contadas e uma oportunidade para nós, espectadores, de ouvi-las e sairmos das nossas bolhas.
Em uma das sessões competitivas, os curtas que assisti giravam entorno da temática do sonho, das possibilidades do sonhar. Em O mar também é seu, uma mulher narra um sonho cheio de simbolismos que levantam uma reflexão pessoal sobre o aborto e os sentimentos muito íntimos sobre ele, em conjunto com uma metáfora cheia de cenas lindas com o mar. Em Um caroço de abacate o sonho surge da conexão inusitada entre realidades muito distintas. Thuë Pihi Kuuwi (na tradução: Uma mulher pensando) entra nos pensamentos de uma garota yanomami e suas reflexões sobre os rituais que acontecem a sua volta. As inesquecíveis mistura a beleza, liberdade e selvageria da onça pintada com a celebração dos corpos trans em curta super divertido, filmado em Super 8. Já Uma espécie de testamento imagina uma outra realidade na vida de uma mulher que cria histórias com a imagem de outra - e levou o Prêmio do público de melhor curta-metragem.
A outra sessão de curtas que assisti faz parte da mostra Mirada Paranaense, que apresenta produções do estado. A trilha sonora de um bairro e Pixo na cidade modelo mostram realidades curitibanas que são ignoradas no mito de cidade modelo que ela insiste em sustentar. Enquanto isso, Pés que sangram traz duas irmãs em busca de respostas sobre o passado no cenário de Londrina e Menininha explora a relação de três gerações de mulheres de uma mesma família e as histórias que as rodeiam. Além deles, também assisti o curta Katatjatuuk Kangirsumi (Cantos Guturais em Kangirsuk), que traz duas mulheres e seus cantos ancestrais na vastidão da neve canadense.
Foram dias de rir bastante, mas também de se emocionar muito. Deixo aqui a minha última lista de filmes andantes que conheci no Olhar, com um pouquinho de cada um para você conhecer também. Lembrando que diversos curtas brasileiros estão disponíveis gratuitamente na plataforma do Itaú Cultural Play até o dia 4 de julho e se você perdeu algum, ou não está em Curitiba, pode conferir um pouco do que rolou por aqui em casa também.
Um caroço de abacate (2022, dirigido por Ary Zara)
“Então quer dizer que eu te fascino?”
Larissa (Gaya de Medeiros) é uma mulher trans brasileira em Portugal, que trabalha como profissional do sexo nas ruas de Lisboa junto com outras mulheres. Em uma determinada noite, ela nota que um homem português branco e cis (Ivo Canelas) as olha de um carro há muito tempo, sem nunca falar com nenhuma delas. Ela então vai até ele para conversar e os dois seguem em uma andança linda pela noite de Lisboa, com algumas cenas divertidíssimas, cheia de confissões, aberturas, conversas francas e surpresas um com o outro. Faz pensar no que poderia ter sido, ao mesmo tempo que escara o que é e todas as complexidades disso, sem nunca deixar de lado o carinho e a esperança. O meu curta favorito do festival.
L.A. Tea Time (2019, dirigido por Sophie Bédard Marcotte)
Sophie é uma cineasta de Montreal que acabou de completar 30 anos e tenta contato com uma cineasta que admira, Miranda July, para buscar conselhos profissionais. Miranda mora em Los Angeles e Sophie decide ir até lá na esperança de encontrá-la para tomar um chá, porque… vai que dá certo né. Ela e sua amiga Isabelle partem em uma grande andança de carro do leste do Canadá até o oeste dos Estados Unidos, passando por diversos lugares e filmando muitas estradas no caminho, além de algumas pessoas que vão conhecendo. Enquanto seguem viagem, vão entendendo também como fazer esse documentário, com várias cenas engraçadas sobre direitos autorais de músicas e o que um documentário deve ter. Outra diretora que Sophie admira é Chantal Akerman, que vira uma espécie de guia espiritual para ela ao longo da road trip e a quem ela recorre sempre que está perdida. O filme é divertidíssimo, com aquele ar de gente como a gente de “até sei o que eu quero, mas não faço a menor ideia de como chegar lá” e aquela confusão de já não ser mais tão jovem, mas também ainda não ter experiência em muitas coisas e ir aprendendo no caminho.
Anhell69 (2022, dirigido por Theo Montoya)
O diretor Theo Montoya queria fazer um filme de ficção e convida alguns de seus amigos para um casting - aquelas entrevistas em que os atores respondem perguntas em frente a uma câmera. Ali, ele pergunta suas idades, o que fazem da vida, quais são suas histórias e seus planos. O filme que pretende fazer se chamaria Anhell69, se passaria em Medellín, sua cidade natal na Colômbia, e teria uma história com fantasmas e jovens que se envolveriam sexualmente com eles. O diretor vai nos contado toda a história que havia planejado, os desfechos e quem ele selecionaria para os papéis. No entanto, em um determinado momento, ele percebe que a ficção do que pretendia se mistura com a realidade que o cerca e que as filmagens que fez de seus amigos - a maioria homens gays de vinte e poucos anos- são também um registro histórico deles no contexto conturbado de Medellín. É um retrato devastador de uma geração de jovens que até tem desejos para o futuro, mas que aprenderam a viver apenas no presente e não pensar muito no que está à frente. É uma geração marcada pela violência daquelas ruas, o machismo e a homofobia que sempre os cercaram e que, tão cedo, já viram tantos dos seus morrerem. O filme foi um dos grandes vencedores da noite, levando o Prêmio do Público de Melhor Longa (entre os filmes nacionais e estrangeiros) e o Prêmio de Melhor Longa Metragem da Competitiva Internacional. Lindíssimo.
A trilha sonora de um bairro (2023, dirigido por Betinho Celanex e Danilo Custódio)
“Pra quem não conhece \ É dita como modelo \ Mas o que prevalece \ É uma vida de desespero \ Indignação \ Sofrimento noite e dia \ Curitiba \ Também tem periferia \ Cidade industrial \ Realidade é muito triste \ Por trás da falsa mídia \ O povo ainda resiste \ Com força de vontade \ Querendo sobreviver \ Numa cidade \ Sem ter o que temer”
CIC - J.A.C.
A CIC, Cidade Industrial de Curitiba, é um bairro na periferia da cidade, em uma região criada nos anos 70 para acomodar diversas indústrias, entre elas multinacionais imensas. É um bairro marcado pela desigualdade social da cidade e cheio de problemas em seu processo de criação. Este curta documentário acompanha a história de um grupo de rap chamado J.A.C., que nasceu ali. Os músicos andam pelo bairro contando sobre as trajetórias, motivações, sobre as inúmeras dificuldades enfrentadas pela população todos os dias e como o rap apresentou a eles uma outra realidade de vida possível, além de destacarem a importância da cultura o do acesso a ela para todas as pessoas. O curta levou uma Menção Honrosa do prêmio AVEC-PR e está disponível no Itaú Cultural Play.
Pixo na cidade modelo (2022, dirigido por Willian Germano)
Este é mais um curta documentário que questiona o mito de cidade modelo que Curitiba mostra ao mundo. Aqui acompanhamos entrevistas com pixadores contando sobre seus processos e motivações, enquanto a câmera circula pela cidade junto com eles. O curta fala sobre como a pixação nasce de um contexto de protesto e como mexe no âmago do conceito da propriedade privada, um dos pilares do capitalismo. Ela se torna instrumento de reapropriação dos espaços da cidade que são negados a esses jovens, que falam muito sobre como passaram a ter outra percepção do espaço urbano e da vivência na rua ao longo desses anos. Também está disponível no Itaú Cultural Play.
Agressor (2023, dirigido por Jennifer Reeder)
Agressor foi o filme de encerramento do festival e uma enorme surpresa. Eu não sabia muito sobre ele além de que era um terror com uma pegada feminista e que muitas pessoas que o avaliaram no Letterbox realmente não gostaram do filme. Mas esse foi um exemplo de como às vezes a gente precisa deixar as críticas de lado e assistir de coração aberto. O filme foi divertidíssimo e acho que a experiência é muito melhor sem saber tanto sobre o que se trata e por isso não entrarei em muitos detalhes por aqui. Jonny (Kiah McKirnan) é uma adolescente prestes a completar 18 anos e algumas coisas meio estranhas parecem estar acontecendo com ela fisicamente. Mas não só: algo de muito estranho parece estar também na genética de sua família. Seu pai a envia para passar um tempo com uma familiar distante chamada Hildie (Alicia Silverstone), uma mulher também bem estranha que mora em uma cidade norte-americana onde meninas adolescentes estão desaparecendo. No vai e vem para a escola, Jonny vai desvendando não só o que está acontecendo com as outras meninas, mas também com seu próprio corpo. Mais do que isso já é spoiler!
Premiação
Além dos prêmios já mencionados dos filmes desta edição, outros filmes citados nas edições anteriores sobre o Olhar de Cinema também foram premiados. Quando eu me encontrar levou o prêmio da Crítica Abraccine de Melhor Longa e o Prêmio de Melhor Roteiro; Toda noite estarei lá levou por unanimidade o Prêmio de Melhor Atuação para a protagonista Mel Rosário e de Melhor Direção; e Neirud levou o Prêmio de Melhor montagem e o de Melhor Longa da Competitiva Brasileira. Midríase, Ramal e Cemitério verde são outros curtas brasileiros premiados que eu acabei não assistindo durante o festival, mas vou assistir agora no Itaú Cultural Play. Você pode ver a lista de todos os premiados aqui.
Comecei a escrever essas palavras quando o Olhar de Cinema estava em suas últimas horas. Na quinta, último dia, tivemos apenas reprises dos filmes vencedores das principais categorias da competição, mas todos os encerramentos aconteceram na quarta. Então escrevo em dias estranhos, com aquela sensação boa de ter vivido algo muito legal que veio depois da festa de encerramento, e ainda não acostumada com a rotina normal que volta aos poucos. Foi estranho passar o dia sem precisar sair correndo porque tem alguma sessão para começar daqui a 15 minutos, nem precisar acordar cedo para estar lá para as conferências de imprensa, sem ter uma programação extensa de vais-e-vens com vários filmes para assistir. Esses foram dias de uma experiência gigantesca que eu com certeza guardarei com muito carinho e espero poder estar lá de novo no ano que vem.
Foi bonito demais ver as sessões lotadíssimas em ambos os cinemas para todos os tipos de filmes e ver tanta gente se envolvendo, comentando pelos corredores, saindo de uma sessão e já entrando na próxima. Também foi emocionante poder ver de perto as pessoas contando toda a trajetória que cada um daqueles filmes teve até chegar ali e vê-las completamente surpresas e sem palavras ao ganharem os prêmios. Finalizo essa grande andança com o Olhar de Cinema deixando o meu imenso obrigada a todos vocês que acompanharam aqui e no Instagram e que tornaram essa minha cobertura possível e ao próprio Olhar de Cinema pela oportunidade de poder participar do evento como imprensa. Também não posso deixar de recomendar mais os festivais, os cinemas que nos trazem filmes de todos os tipos e claro, o nosso cinema nacional.
Muitos destes filmes tiveram a sua estreia mundial no Olhar de Cinema e ainda percorrerão um circuito de diversos outros festivais. Se eles estiverem em cartaz na sua cidade, não deixe de assisti-los, são todos ótimos e recomendadíssimos.
Na semana que vem, voltamos aos nossos passeios de sempre. Te espero lá :)
Apoie nossas Andanças <3
A Andanças é uma newsletter totalmente gratuita. Se você gosta dos nossos passeios e gostaria de contribuir financeiramente com meu trabalho, pode fazê-lo pelo pix: lpmanske@gmail.com
eu adorei acompanhar a cobertura por aqui, xará. deu pra sentir o gostinho de viver o festival. ano que vem espero ver tuas dicas e conseguir ir em algumas (muitas) sessões 💜