#71 Um cafezinho: aqueles poucos segundos que levam para voltar
O cinema como uma porta para outros mundos
Antes de sair de casa, a previsão era de forte temporal, 100% de chance de chuva. Curitiba é uma cidade famosa por ter as quatro estações em um mesmo dia e esse é o tipo de previsão que não dá para ignorar, principalmente se você vai se locomover pela cidade a pé. O céu estava fechando, acumulando aqueles tons de azul bem escuro no horizonte. Olhei para a sombrinha pequena na minha mão e decidi que era melhor trocar pelo guarda-chuva grande. Saí e andei o mais rápido que consegui para chegar lá antes da chuva, com o vento na rua já me fazendo questionar se havia escolhido a roupa certa para aquele dia. Consegui chegar seca e ainda me faltavam 15 minutos antes de o filme começar. Enquanto esperava, elaborei meu plano: se estivesse caindo o mundo na hora que eu saísse, eu engataria na próxima sessão e ficaria por ali mesmo.
O filme era Ascenção (Восхождение, 1977, dirigido por Larisa Shepitko) e fazia parte de uma mostra ótima de filmes de diretoras mulheres do cinema do leste europeu que aconteceu na Caixa Cultural em janeiro. O filme conta a história de dois guerrilheiros soviéticos durante o período da segunda guerra mundial, em uma região tomada pelos alemães nazistas. Os dois fazem parte de um grupo grande que está fugindo pelas florestas e que inclui mulheres, idosos e vários feridos. Por serem dos poucos homens aptos naquele momento, eles são encarregados de ir até a vila mais próxima conseguir mais comida para todos. Mas as coisas se complicam, é claro. Eles decidem se arriscar e ir mais longe do que o esperado, mesmo em condições climáticas e de saúde nem um pouco favoráveis. Vão encontrando lugares e pessoas pelo caminho, mas a maior parte das cenas são externas, filmadas do lado de fora de pequenas vilas e em campos abertos.
Foram duas horas na paisagem gelada da União Soviética. O filme também é em preto e branco, o que enfatiza ainda mais essa brancura e todos os contrastes que compõem essa história. O filme é excelente, com a tela monocromática e o tom psicológico pesado fazendo com que eu me prendesse ali, me inserisse não só naquela paisagem, como também na mente desses personagens todos tão complexos, todos sem saída. Fazia frio ali também, com o ar condicionado no máximo em uma sala meio vazia - infelizmente. Imersa naquela escuridão, com as pessoas mais próximas sentadas meio distantes de mim, com aquela tela tão branca, eu mergulhei naquele mundo e esqueci da minha própria realidade. Quando o filme acabou, eu não fazia a menor ideia do que acontecia lá fora e nem do que eu faria em seguida. Esperava uma ventania, um temporal, uma escuridão repentina às 4 da tarde como havia acontecido nos dias anteriores.
A saída do auditório escuro da Caixa Cultural em Curitiba dá quase na rua. Menos de dez passos e você já chega na porta de entrada e na pequena escadaria que leva até a calçada. Do outro lado da rua, a capela que foi transformada em sala de concertos refletia de leve nas suas paredes amareladas o brilho do sol. O ar estava quente, o céu azul com pouquíssimas nuvens. No asfalto quente dessa rua do centro, nenhum sinal de que qualquer gota de água havia caído ali nas últimas horas. As pessoas andavam tranquilas com suas sacolas de compras, todas de bermuda e camiseta e chapéus e óculos de sol. Parecia que aquelas portas automáticas da Caixa, que abrem sozinhas quando você chega perto delas, haviam sido um portal para um outro universo. Como se eu tivesse atravessado alguma porta mágica que me levasse imediatamente para um lugar muito diferente daquele do qual eu havia saído. A pele gelada de ter passado tanto tempo no frio ficou estranha com o calor de mais 30 graus repentino. Os olhos pareciam meio perplexos com tantas cores. Levou alguns segundos para adaptar o corpo e também a mente.
Como podia?
Caminhei de volta para casa com uma sensação estranha, como se eu tivesse vendo aquela vida que passava por mim como uma observadora externa, não participante daquela tarde comum de janeiro que se desenrolava por aquelas ruas que eu conheço tão bem. É como se eu não estivesse ali realmente. Ou como se tivesse acabado de pousar de um avião vindo de um lugar muito distante e ainda estivesse sob o choque da diferença rápida demais de ambiente. Talvez um avião não seja a melhor metáfora aqui. Talvez o mais adequado seria uma máquina do tempo, algo como a TARDIS de Doctor Who, que de repente pousa não só em outro lugar, como em outro tempo e outra forma de pensar.
Tem alguns filmes que deixam a gente meio sem rumo. Pode acontecer por vários motivos e de formas diferentes para cada pessoa, mas se a gente foi realmente levado por aquela história, é sempre uma estranheza voltar e olhar com aqueles olhos novos para a nossa própria vida. O choque da saída da sala dura alguns segundos, mas essa outra sensação fica um pouco mais. Todo aquele frio sofrido e aqui em mim esse calor forte. Toda aquela andança para conseguir um punhado de comida, e nessa mesma rua um mercado grande com toda essa variedade de opções. O que eu faço agora, depois de ter visto e sentido aquelas pessoas terem que tomar decisões tão difíceis e viver - ou morrer - com elas? Parece não fazer sentido voltar a se preocupar com tantas coisas pequenas depois de se ver de frente com questionamentos morais tão fortes.
Aos poucos o filme se vai e nossa vida, com todas as suas próprias questões e as nossas próprias banalidades, vai voltando. Mas alguma coisa sempre fica com a gente se nos permitimos esse mergulho, se permitimos que aquele filme nos leve e nos traga de volta, sabendo que jamais seremos os mesmos.
Você provavelmente está recebendo esse texto alguns meses depois desse dia, mas eu escrevo ele (ou melhor, a maior parte dele) algumas horas depois de ter saído da Caixa. O vento entra forte pelas janelas abertas e da para ver o céu se fechando - de verdade dessa vez. O temporal que não veio antes, vem agora.
E aqui estou eu, sentindo que já vivi 3 vidas só nessa tarde.
O cinema tem essa possibilidade de nos levar para outros universos, sejam eles quais forem. E se o filme nos prende mesmo, é quase como se um teletransporte acontecesse. Estamos ali, na paisagem gelada da União Soviética, no deserto de Arrakis ou no de Los Alamos. Vivemos o futuro e o passado e outros tantos presentes tão distantes - em todos os sentidos - do nosso. Mergulhamos naquelas outras vidas e fazemos delas um pouco das nossas. Quando saímos do cinema elas ainda continuam com a gente, mesmo que só durante aqueles poucos segundos que levam para o cérebro entender onde estamos de novo e que aquele sim é o nosso mundo, a nossa realidade conhecida. É por isso que, quando nos envolvemos realmente com o filme que estamos vendo em um lugar em que a nossa vida não esteja ali nos lembrando de quem somos, é sempre um assombro voltar. Estar de volta na rua estreita e mal iluminada do centro de Curitiba depois de ter vivido tantas emoções sem ter realmente saído do lugar. Eu não sou mais aquela que entrou ali horas antes.
Por mais que eu ache que o cinema de rua cause esse efeito com muito mais força, por nos devolver diretamente para a cidade de onde saímos, acho que o cinema de shopping também traz vários outros tipos de sensações particulares. Descer as escadas e se ver no meio de uma praça de alimentação agitada, cheia de letreiros coloridos e luminosos, vozes por todos os lados, o cheiro tão característico de comida pronta no ar. A estranheza que vem de estar ali depois de um filme silencioso, ou de um filme que se passa em outras épocas, ou ainda de filme que critica tudo aquilo. Ou então a sensação boa de estar de volta em um lugar conhecido e confortável depois de passar horas na tensão de um ambiente hostil e caótico.
O cinema é então uma espécie de porta para mundos em que talvez a gente nunca pisasse sem ele. Ele abre um caminho para uma possibilidade infinita de andanças que jamais sonharíamos em fazer. Nem sempre a gente se dá conta disso, principalmente quando seguimos nessa correria de assistir uma coisa depois da outra e não nos permitimos realmente sentir aquilo que foi vivido. Mas quando mergulhamos de cabeça nesses filmes no espaço físico do cinema, aqueles poucos segundos de confusão depois que a luz acende fazem a gente se lembrar de que ficamos suspensos no tempo e no espaço por algumas horas. E esses pequenos segundos que levam para voltar são incrivelmente preciosos. São só uma das coisas que fazem a gente sempre querer estar ali.
Até o próximo passeio :)
Alguns links antes de ir
- Para ilustrar essa edição junto com Ascensão (que não é exatamente um filme andante), escolhi Guerra fria, um filme sobre o qual já falamos na terceira edição da Andanças. Ele é lindo demais e acompanha uma história que se desenrola na Polônia do pós 2ª guerra, sob o domínio da União Soviética. A história também começa no campo aqui, mas segue em outras andanças por diferentes cidades.
- A sessão de Ascensão foi a primeira que eu vi logo após ter enviado a primeira edição desse ano, tudo aquilo que não assistimos em 2023, em que eu reproduzi esse trechinho da entrevista com a Bárbara Tanaka, da Telaranha Edições, para o jornal Plural.
“Lembro-me de uma conversa que tive com a escritora Assionara Souza anos atrás. Ela me chamou a atenção para a experiência de sair de uma sala de cinema e cair direto na rua, como parece que você ainda estava dentro do filme, e os ruídos, as fragrâncias da cidade te inebriam e você vê tudo em câmera lenta, sem saber distinguir a realidade da ficção”
Eu ainda estava com esse trecho em mente e me permiti ali sentir todas aquelas sensações com a força que o contraste entre o filme e a minha realidade me possibilitaram. Ler e conversar também são portas para outros mundos e fazem a gente andar por aí prestando mais atenção em coisas que antes podiam passar despercebidas <3
- “Escolher um livro para ler é muito diferente de escolher um livro para ter” - a experiência de mergulhar em algo, experimentando as várias possibilidades que emprestar livros oferece nessa ótima edição da
.- Tenho andado muito com o ensaio Contra a interpretação, de Susan Sontag, na cabeça e isso sobre sentir aquilo que foi assistido vem muito dessa leitura. Comecei a ler o livro de ensaios com o mesmo nome duas semanas atrás, para a primeira aula do curso As Mulheres que Escreveram Nova York 4, da
(que ainda está com as inscrições abertas! As próximas aulas serão com Rastejando até Belém de Joan Didion, poemas de Nikki Giovani e Só garotos de Patti Smith <3) e a aula abriu ainda mais pensamentos por aqui. Talvez esse texto apareça mais nos nossos cafezinhos em algum momento.- Quando a gente sai do filme, mas o filme não sai da gente: Duna 2 no estacionamento do shopping.
- Filmes que já começaram a aparecer por aí e que eu estou muito curiosa para assistir: Love lies bleeding, La chimera, Drive-Away Dolls, Challengers, Parachute e The Greatest Hits.
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"se a gente foi realmente levado por aquela história, é sempre uma estranheza voltar e olhar com aqueles olhos novos para a nossa própria vida".
sim, e é perfeito quando isso acontece. para mim, filmes que permitem isso são "o cinema", sabe? um verdadeiro presente para que a gente viva mais experiências do que seria capaz tendo apenas uma vida.
Nossa que delicia de texto! Me lembrei de outro enfoque do cinema em minha vida: Quando o aotava para fugir dos meus momentos de angústia ou indecisões, emendando uma sessão na outra, com o intuito de sair com a solução após as portas se abrirem. (Seria uma auto-terapia?) O texto também me trouxe à tona, que há algum tempo não sei mais o que é sair do cinema e dar de cara com a praça de alimentação, depois que adotei o cinepasseio ;-)