Andanças #102: Eu não sou tudo o que quero ser
A busca, os registros de quem já fomos e o processo de congelar o tempo
“Sinto que posso fazer muitas coisas, mas tenho medo de estragar tudo.”
Todo passo deixa uma pegada, por mais imperceptível que seja. A marca dos pés desnudos na terra, os pedaços empoeirados de outras andanças que trazemos nas solas de nossos sapatos e que levamos para todo lugar. Deixamos marcas, conforme nos movimentamos pela vida. Mas muitos de nós - e talvez alguns mais do que outros - deixam também muito mais do que os pequenos e grandes vestígios da nossa presença: os inúmeros registros que passamos a vida fazendo.
Talvez seja essa nossa relação confusa com o tempo. O agora, o que passou e o que supostamente vem pela frente. Talvez o maior desejo por trás do impulso de registrar seja o de entender quem somos e qual é o nosso lugar na ordem caótica das coisas. Registramos o agora para tirar da cabeça o que quer que nos incomode e poder olhar aquilo de frente. Para lembrar - não só agora, mas também no futuro. Tentamos congelar o tempo, encapsulá-lo na forma de pequenas coisas materiais que ficarão conosco e que, um dia, talvez serão como pequenos passaportes de viagens através do tempo. Não registramos exatamente pensando no futuro, mas porque não podemos deixar de fazê-lo no presente que nos emociona, que nos angustia, que nos abraça. Registramos para reconstruir nosso passado e, com ele, continuar na tarefa de descobrirmos a nós mesmos. Registramos porque vemos que chega um certo ponto em que não lembramos mais dos mínimos detalhes e nós queremos esses detalhes com toda a nossa força - queremos o nome de cada pequeno restaurante, de cada rua visitada, de cada conhecimento novo que tivemos, de cada pessoa que cruzou o caminho que percorremos. Queremos lembrar e queremos entender.
Queremos saber para onde ir.
E, talvez, um dia olhar para eles e se dar conta de que, bem lá no fundo e instintivamente, sempre soubemos quem éramos e o que queríamos. A gente só precisava trazer para a superfície e compreender.
Libuše Jarcovjáková é uma fotógrafa tcheca de 70 e poucos anos. Junto da diretora Klára Tasovská, elas apresentaram Eu não sou tudo o que quero ser (Ještě nejsem, kým chci být, 2024) em um vídeo curto antes da sessão do filme no Olhar de Cinema deste ano, onde eu o assisti pela primeira vez em junho. Eu não conhecia Libuše antes e não cheguei, na época, a procurar mais informações. O que eu guardei de uma passada rápida pela sinopse foi que aquele era o documentário que contava a história de uma fotógrafa e suas várias andanças por grandes cidades - o que obviamente me chamou a atenção. Mas eu não sabia que o documentário não só contava a história de uma artista viva, como trazia ela mesma narrando o que viveu. Mas as surpresas não pararam por aí. Esse não é um documentário biográfico como tantos outros que já vimos.
É Libuše então nos guia pelo nosso passeio de hoje, que atravessa as fronteiras geográficas dos países, do tempo e das limitações de uma época em que muros separavam cidades. Começamos em Praga no ano de 1968, quando o país ainda era a Tchecoslováquia, antes de vir a se tornar República Tcheca em 1993. Libuše tinha 16 anos, era filha de artistas, andava com sua câmera por aí e queria entrar na faculdade de artes para ser fotógrafa. Mas aquele foi o ano da ocupação soviética no país, que permaneceria ali pelos próximos 20 anos. Libuše precisou adiar seus planos e seguiu outros passos que foram construindo os trajetos de sua história. Trabalhos variados, relacionamentos complicados, viagens e mudanças, amigos que vieram e foram, noites no hospital, o próprio corpo, descobertas da sexualidade, burocracias e investigações, grandes acontecimentos históricos presenciados - tudo vivido com a câmera em mãos.
Libuše registrou ávida e detalhadamente todo esse caminho. Ela registrava a vida cotidiana e ordinária, a si mesma em inúmeros auto-retratos e as pessoas conhecidas e desconhecidas ao seu redor - em Praga e também em Tóquio e Berlim, onde viveu durante um tempo. Libuše fotografa para entender quem é, o que ela também fazia nos registros de seus diários acumulados durante todo esse tempo. Seu acervo é imenso e é a partir desses registros que o documentário é feito. O que vemos nas 1h30 de filme são apenas as suas fotografias e a narração feita a partir dos trechos de seus diários. Não há nenhuma imagem em movimento nesse filme, mas tudo se movimenta de uma forma tão própria que a gente até se esquece disso.
É uma das formas mais bonitas que eu já vi de apresentar os registros de uma vida em um filme. E o trabalho de Libuše toma uma proporção ainda mais incrível do que já teria em uma exposição convencional.
“Após tomar os remédios, me sinto em um passeio selvagem. Não durmo, não bebo, só fotografo sem parar. Quando me deparo com um cartaz anunciando um baile, pego a minha câmera e saio.”
É um processo complexo, esse de entender quem somos a partir dos registros. Experiência própria. A perspectiva muda com facilidade, começamos a nos tornar narradores não muito confiáveis. Quem tudo registra também se coloca do lado de fora dos acontecimentos, como o fotógrafo de casamento que não faz parte da festa realmente. Em Sobre fotografia, Susan Sontag disse que “a pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir”. Quando o trabalho do fotógrafo acaba e ele já registrou tudo da vida dos outros sem interferir, retorna para a sua própria vida. Mas talvez seja mais difícil, para aqueles que tem o ímpeto de registrar tudo, fazer esse retorno. Talvez as linhas que separam a documentação e a vivência sejam mais borradas e isso dificulte o processo de encontrar a si mesma. Damos voltas e mais voltas, nos afundando quanto mais tentamos sair, sem poder contar com a perspectiva externa que também nos ajuda a compreender quem somos. Quem eu sou, além da narrativa que registrei de mim?
Por outro lado, acho que o próprio processo de fazer registros nos diz alguma coisa. Esse impulso de colocar algo de dentro para fora, de se ver a partir de outro ângulo, de ver o mundo em que estamos a partir da nossa própria interpretação. Nesses momentos, não registramos tanto para congelar o tempo e nem para ter material para voltar depois: o próprio fazer é o objetivo. É quando buscamos nos entender não a partir dos registros, mas do processo de registrar: esse que nos leva a colocar os tênis e andar por aí, experimentar a vida, sentir o impacto do que acontece, desenvolver uma forma criativa de existir no mundo.
“Repetidamente, olho para mim mesma. Durante toda a minha vida, documento as minhas experiências pessoais. Estou tentando entender o que estou passando, o que está acontecendo comigo.”
Depois de algumas voltas, idas e vindas, Libuše entendeu uma parte de quem era, de quem sempre foi, e fez o que precisava para se manter fiel a si mesma.
“Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo” - Susan Sontag, Sobre fotografia
O projeto mais obsessivo de Libuše são os auto-retratos, que são excelentes, mas são as fotografias da rua que me atraem mais. No documentário, vemos suas andanças por Praga, Tóquio e Berlim, cidades onde esteve por tempos breves ou mais longos. As fotografias registram esses lugares, as pessoas que ali viviam, locais de trabalho, a vida noturna boêmia dos bares e casas noturnas, metrôs lotados, os apartamentos emprestados e temporários, as rápidas mudanças pelas quais as cidades passavam. São retratos dessa vida que parecia tão diferente e ao mesmo tempo tão vívida, tão presente, tão relacionável. É um tempo que já se dissolveu: eu cresci em um mundo de fronteiras mais permeáveis, de acessos mais facilitados, de ruas que ainda são hostis, sim, mas de outras formas.
Sontag também fala sobre como as fotos ajudam as pessoas a tomar posse de um espaço em que se acham inseguras. Ela se refere mais ao turismo e a uma certa dependência da câmera para atestar a experiência e para dar forma a uma situação diferente e desconfortável. Mas pensei em como a câmera também pode se tornar uma espécie de escudo contra esse mundo inteiramente desconhecido que se releva à nossa frente sendo, ao mesmo tempo, justamente uma forma de navegação por ele - como a própria Libuše comenta. Uma ponte entre o eu que ainda não se encontrou e esse lado de fora que espera. Acho que isso aparece com mais força nas fotografias de Libuše em Tóquio, principalmente na primeira vez que vai para lá, em 1979, também a primeira vez que sai de seu país. Ela está sozinha, circulando em casas de desconhecidos, aliviada por ter saído da atmosfera sufocante em que estava e também pequena diante daquele mundo tão novo. Ela fala como andou naqueles meses e que precisava trocar com frequência os sapatos que ficavam gastos de tanto andar. “meus pés estão cheios de Tóquio” - repletos, tomados, transbordados. As fotos de Tóquio são algumas das minhas preferidas.
Além da narração de Libuše, há um incrível trabalho de som que nos ambienta nas imagens, como o zum zum zum das calçadas e dos bares, o som dos pássaros ao fundo, das ondas quebrando tranquilas na orla. Há também os sons que compõe o diário, como os espirros do pai de Libuše ao fundo quando ela fala sobre estar em seu quarto. São pequenos detalhes que podem passar despercebidos, mas que criam uma atmosfera é incrível.
O documentário faz esse processo de nos levar para um mergulho no passado de forma fenomenal. É uma forma de registrar também. O filme cria movimento, dá às imagens estáticas um fluxo, cria uma história, reconstrói uma vida, une os diversos fragmentos isolados. Jamais será o todo como foi vivido, é claro, mas faz um trabalho de voltar no tempo e se reencontrar, tentar se entender mais uma vez a partir da história contada a nós nesse passeio pelo passado. Nunca vamos deixar de nos procurar, porque nunca seremos algo estático que permite ser encontrado. É a busca que importa.
“Acho que eu nunca vou parar de me perguntar: quem eu realmente sou?”
Enquanto escrevo esse texto, estou lendo A casa dos espíritos, de Isabel Allende, e vi muitas pontes na reflexão sobre os registros. Os “cadernos de anotar a vida” de Clara são o fio condutor que retraça a história de gerações de uma mesma família. Ela é uma personagem que, muitas vezes, se perde dos aspectos práticos da vida, perdendo algumas percepções do que está ocorrendo ali e agora e passando períodos de mergulho no processo de registrar. Precisamos entender onde nos posicionamos nessa linha tênue entre viver e registrar, estar ausente ou presente, interferir ou observar. Nos atentar ao que necessitamos, ao que faz parte de nós. Por outro lado, como a narradora do livro fala, sem os cadernos não seria possível contar toda essa história e levá-la muito além da capacidade da memória daqueles que as viveram e já se foram.
Sem os registros feitos com tanto carinho e impulso criativo no passado, jamais saberíamos dessas histórias todas - e que bom que elas chegaram até nós.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Eu não sou tudo o que quero ser está disponível para assistir gratuitamente no site do Sesc São Paulo. Não precisa fazer nenhum tipo de cadastro, só clicar no link e começar a assistir :)
(o filme ficará disponível até 17 de abril de 2025).
Links extras
- Todas as citações de Susan Sontag desta edição são do livro Sobre fotografia, publicado pela Companhia das Letras, na tradução de Rubens Figueiredo.
- “Nessas práticas [corporais orientais], também nos deparamos com a possibilidade de nos construirmos, a partir do que podemos ser, e não do que fomos educados a acreditar que devemos ser, ou limitados pelo que pensamos que podemos ser”. Do meu corpo (e do seu), texto ótimo da
que fala do corpo, do olhar e do processo de fazermos a nós mesmos, dialogando bastante com a edição de hoje.- Uma newsletter (em inglês) ótima de uma pesquisadora de anotações e cadernos de pessoas famosas:
.- Fechamos o primeiro mês da mudança da newsletter, com os cafezinhos agora sendo edições exclusivas para os apoiadores. Nesses dois primeiros cafés, falamos sobre como escolher filmes para assistir quando não temos uma clareza do que ver (e dicas para evitar ficar passeando pelos catálogos sem conseguir encontrar nada) e outra edição sobre as inseguranças que sentimos sobre o que não assistimos e aquela velha pergunta do “sério que você nunca assistiu esse filme antes?”. O próximo café para apoiadores vem na semana que vem :)
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Vi o doc semana passada e adorei ler suas impressões!
Acabei de ler a edição e fui assisti o doc. Volto agora para agradecer, tanto o texto quanto a indicação do filme. Adorei. Em alguns momentos me lembrou algumas reflexões de A paixão segundo G.H.
Muito bom!!
Um beijo.