Antes de entrarmos efetivamente na edição de hoje, é preciso dizer que Todo tempo que temos (We live in time, 2024, dirigido por John Crowley) é um filme com alguns problemas. O principal deles é a escolha do filme de dar à personagem de Florence Pugh uma história anterior de um relacionamento com uma mulher, que terminou porque ela não queria ter filhos e sua companheira sim. Mais tarde, ela muda de ideia no relacionamento com o personagem de Andrew Garfield diante da possibilidade de não poder mais ter filhos biologicamente, mesmo com os riscos à sua saúde. A mudança de ideia não é um problema, mas sim a maneira como o filme elabora essa história passada e presente, em um relacionamento com uma mulher e com um homem. São sempre escolhas sendo feitas e o filme poderia ser muito melhor se isso fosse trabalhado de outra forma.
Por outro lado, o principal tema do filme é o tempo e a finitude e nesse ponto ele me tocou muito mais do que eu imaginava, talvez porque mexa diretamente com sentimentos que eu tenho passado nos últimos meses. A história geral me surpreendeu, me emocionou e fez com que eu sentisse muitas coisas imediatamente após sair da sessão. Esta edição aprofunda nesses aspectos dele que me envolveram, mas é importante assisti-lo levando em conta os problemas também, principalmente para refletirmos a respeito das representações deturpadas que existem no cinema de relacionamentos entre mulheres, da maternidade, do não querer ter filhos e do quanto um relacionamento heterossexual é socialmente aceito. Recomendo o vídeo da Ana Paula Barbosa do @narrativafeminina e a crítica da Isabel Wittmann para uma perspectiva maior sobre isso neste filme.
Saí do cinema e desci as escadas rolantes para um shopping cheio com toda a agitação da hora do almoço. Eu sentia que flutuava, passando como um fantasma pelas pessoas que seguiam seu caminho apressadas, como eu mesma havia feito antes, tentando chegar na sessão a tempo. Lá fora, um calor reconfortante de um dia atipicamente quente para o outubro curitibano. Atravessei por dentro a praça onde eu nunca caminho, que naquela hora estava cheia de pessoas sentadas na grama à sombra, fumando e descansando antes de voltarem para o trabalho. Nunca reparei na inscrição daquela pedra e nem na dimensão real dos monumentos gigantes que estão ali. Sempre passei ao redor da praça correndo, sempre atrasada, sempre com a cabeça envolvida em outras coisas.
Para mim há sempre um estranhamento quando algo faz com que eu olhe para os lugares de sempre com outros olhos. Como se eu fosse uma mera espectadora, mas ao mesmo tempo mais presente do que jamais estive. É um reconhecimento instantâneo da importância daquele momento e da certeza de que ele nunca mais será da mesma forma. Como se não existisse passado ou futuro, apenas o agora.
E como pode ser difícil ficar nesse agora.
Nosso passeio de hoje é pela cidade de Londres, onde acompanhamos Almut (Florence Pugh) e Tobias (Andrew Garfield), dois adultos de 30 e poucos anos que já carregam uma certa bagagem na vida. Almut é uma chef de cozinha e dona de um restaurante, enquanto Tobias trabalha em uma grande empresa que fabrica cerais e mora com o pai enquanto se reestabelece de um divórcio. Os dois se esbarram de uma maneira um tanto inusitada quando Almut atropela Tobias sem querer. A partir desse encontro vai surgindo uma história de amor que se desenvolve no tempo e passa por diferentes estágios, com alguns altos e baixos. No presente, Al e Tobias tem uma filha de cerca de 7 anos, a carreira de Al está em um auge e ela descobre que o câncer que teve anos atrás retornou mais forte. Ela terá que passar por todo um processo de tratamento novamente, sabendo que, dessa vez, será muito mais complicado do que antes.
Todo tempo que temos não segue uma narrativa linear, o que altera um pouco a nossa percepção sobre ele. Há um vai e vem entre passado e presente que nos permite descobrir um pouco mais desses personagens antes de se conhecerem e todo o desenrolar dos anos que se passaram, tudo que aconteceu nesse meio tempo entre o momento em que se conheceram e o presente.
Meio. Essa é a palavra-chave aqui.
Nossa vida não é feita só dos grandes eventos - incluso aqui o momento do nosso nascimento e aquele que será o da nossa morte. Muito pelo contrário, aliás: vivemos uma quantidade enorme de dias absolutamente comuns. Aqueles em que o mesmo caminho de sempre é feito até onde quer que você vá todos os dias. Em que os remédios são tomados nos horários exatos e a louça é lavada depois da refeição mais básica que você tem no seu repertório. É a tarde de sol e o cigarro na sombra da árvore da praça entre um período de trabalho e outro. Os acontecimentos importantes são aqueles que nos ajudam a nos guiar pela história das nossas vidas, cruciais para a mudança de um rumo que vínhamos tomando antes. Mas não mudamos de rumo o tempo inteiro, se não nada faria sentido. É no tempo entre eles que vivemos a maior parte da nossa vida. No meio.
Todo tempo que temos não é exatamente um filme andante e muitas cenas acontecem dentro dos lugares. Mas a rua exerce um papel muito importante nessa história: é nela que não só alguns dos principais grandes acontecimentos se dão, mas também os mais comuns e corriqueiros. Fiquei pensando sobre como isso se dá na nossa vida também. As coisas também podem acontecer quando estamos dentro de casa, mas é preciso que a gente saia para poder experimentar realmente tudo que a vida tem a oferecer. É fora de casa que a gente tem a possibilidade de encontrar pessoas, é para onde vamos realizar nossos sonhos e materializar aquilo que sempre quisemos. É a caminhada conversando que muda tudo, como a gente já viu aqui em mais filmes do que eu consigo contar. É o ponto de partida e o ponto de chegada, mas também o trajeto e tudo que acontece no meio dele.
E o que há nesse trajeto é um grande processo de inícios e fins e não há como saber quando eles estão perto de nós. Estamos expostos o tempo todo, sem a possibilidade de não nos afetarmos pelo o que acontece conosco e ao nosso redor.
É sempre um processo complexo ver um filme que trata de algum tema delicado que, de alguma forma, está ou esteve próximo do nosso cotidiano e Todo tempo que temos traz alguns deles. Divórcio, ter que voltar a morar com os pais, as mortes que acompanhamos na infância, os sonhos que deixamos de lado, doenças e seus tratamentos, tentar engravidar e não conseguir, conseguir e ter riscos, decisões complicadas. Eu acho que quando a gente acumula uma certa idade, é muito difícil (e improvável) que tenhamos passado incólumes pela vida. Pode até ser que certas coisas não tenham acontecido conosco, mas fizeram parte da história daqueles ao nosso redor, histórias que muitas vezes acompanhamos bem de perto. Nunca continuamos os mesmos. O que pensávamos sobre a vida muda, várias das nossas idealizações se perdem, passamos por dores que jamais imaginaríamos sentir, tiramos forças que não sabíamos que tínhamos. E tudo isso se intensifica quando somos adultos e estamos por aí, lá fora e aqui dentro, tomando decisões e agindo no mundo não só em dias excepcionais, mas principalmente nos comuns. Nós estamos fazendo várias coisas pela primeira vez também e, muitas vezes, não fazemos a menor ideia de como lidar com elas.
A noção da finitude é uma dessas coisas que possivelmente já te alcançaram em algum momento até aqui. A gente não costuma muito pensar sobre o quão frágil é toda a teia da vida até o momento em que algo nos faz olhar diretamente nos olhos da brevidade de tudo.
Faz alguns meses que tenho acompanhado de muito perto um processo de investigações e diagnósticos, tratamentos possíveis, exames e sessões de quimioterapia. É muito difícil. Todo o cenário de incertezas, o medo junto de cada decisão e, ao mesmo tempo, se dar conta de que há tantas pessoas ali passando por coisas parecidas. É uma força emocional descomunal para encontrar o equilíbrio entre se deixar paralisar pelas emoções e bloquear os sentimentos como se eles não existissem. Por mais que isso não esteja acontecendo comigo diretamente, eu sei que não sou mais a mesma que era antes.
Tobias e Almut acabam representando um pouco desses dois lados. Ele é alguém que está pensando à frente com uma certa frequência, cheio de medos antecipados, vontades de prolongar as coisas ou de as cortar antes que comecem, se proteger. Almut, por outro lado, encara de frente e vive com uma intensidade, mas também forma ao seu redor uma armadura para lidar com a doença. É ok não estar ok, a médica diz a ela. Não é um equilíbrio fácil de encontrar, de conseguir lidar com essas duas personagens que existem dentro de nós para fazer o que precisa ser feito, para encarar o que precisa ser encarado.
E é ai que o meio entra mais uma vez.
Quantas angústias temos hoje com o que ainda não aconteceu e talvez nunca aconteça? Quanto apego temos ao que passou e que não existe mais? Ao que éramos e não somos mais? Fazemos planos como podemos, mas não há nenhum tipo de controle. E acho que, diante da constatação de que tudo acaba um dia de uma forma ou de outra, o meio do caminho toma outra proporção. Talvez aquele fim aconteça agora, talvez mais tarde, mas vê-lo de frente faz com que cada pequeno instante de agora se torne eterno de uma maneira que nem sempre vemos com clareza.
Eu imaginava que veria um filme de romance bonito com, talvez, um desfecho triste que me faria chorar no último ato do filme, mas não foi bem isso que aconteceu. Eu não sei o que aconteceu, na verdade. De onde veio esse estado de flutuação, essa nova perspectiva sobre a rua ao meu redor, como se o tempo tivesse parado por um momento. Acho que, para mim, o romance até passou meio despercebido. O que me pegou foi ver essas pequenas e grandes coisas que acontecem ao longo da vida de cada um e me ver de alguma forma nelas. Sentir através da tela as emoções que já estão ou estiveram dentro de mim, ver como cada um reage, as dúvidas e incertezas, reconhecer o medo e a frustração, identificar as atitudes que eu também estou tentando ter, as perspectivas que eu também estou tentando encontrar.
Acho que um dos maiores méritos do filme é justamente enfatizar de forma tão bonita o meio, aquilo que acontece aqui e agora e tudo aquilo que queremos viver e sentir em cada um dos dias comuns que temos cada vez que acordamos. Sempre existe um fim em tudo, mas focar nele muitas vezes nos impede de aproveitar o percurso, a beleza e a infinidade de cada passo dado, de cada minuto vivido, de cada lufada de ar que respiramos. E assim a gente vai tentando, mudando, fazendo o possível. Optar não pelo pessimismo fatalista e nem pelo otimismo cego, mas pela realidade infinita do que existe nesse momento e só nele. Talvez tudo que possamos fazer é olhar para esse agora, para esse meio, para a eternidade desse presente que existe pleno aqui comigo nesse momento. Ele é tudo que nossos protagonistas tem e tudo que nós temos, afinal. E, assim como eles, talvez a única coisa que podemos fazer é ser o máximo de nós que conseguimos e deixar que a vida nos transforme.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Todo tempo que temos estreou nos cinemas brasileiros no último dia 31 de outubro e segue em exibição. Veja o trailer aqui.
Links extras
- Florence Pugh fala sobre como o filme mudou a sua perspectiva sobre a vida e como foi se preparar para o papel nessa entrevista ótima (em inglês).
- Outro filme do diretor John Crowley que também faz parte da nossa lista de andantes é Brooklyn, de 2015, com a Saoirse Ronan (que na minha opinião é melhor do que este). O filme conta a história de uma moça irlandesa que migra para Nova York na década de 1950. Ele é lindo e o livro em que ele é baseado, do escritor irlandês Colm Tóibín também. Vale muito a pena :)
- Um poema para ler depois da nossa última edição andante, de Eu não sou tudo o que quero ser. Dica da leitora Ana Karoline <3
- Temos uma zine! Transformar os textos da newsletter em zine já era um desejo antigo e agora ele finalmente se tornou realidade. Fiz uma zine do texto de Vidas Passadas, nossa edição #64, e você pode ver como ficou e ler um pouco mais do processo aqui.
- Se você está em Curitiba, neste sábado acontece a Mamute, maior feira de artes gráficas da cidade, e eu estarei lá com a zine e várias ilustrações e pinturas originais disponíveis para venda! Vem dar um alô <3 Para quem for e quiser se localizar: estarei em uma mesa no corredor do meio, lá no fundo, perto das editoras :). Vai ser no estacionamento da Câmara, junto da Praça Eufrásio Correia, das 11h às 20h.
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Fiquei mais tocado pelas suas palavras do que pelo filme em si, Luisa hahahahhahaha.
Acho mesmo que a coisa mais interessante do filme está nesse eterno desequilíbrio e angústia entre o pensar no amanhã do Tobias e o estar no hoje da Almut. Acho que a melhor cena acaba sendo aquela conversa no estacionamento, foi o único momento que o filme pegou meu coração na mão e tive medo hahahaha. Pena que não o resto não me afetou tanto. Lindo texto! ^^
Saudações! Pelas tuas palavras, Luisa Manske, o filme é mais um Tratado Existencialista do que um Filme Romântico. Enquanto lia, até fiz paralelo com o Cinema Asiático, onde filmes assim são bastante comum. Se der, vou conferir no cinema.