É estranho pensar como um mesmo lugar pode ter significados tão diferentes dependendo do nosso estado de espírito ou do tipo de experiência que vivemos e/ou estamos vivendo nele. Podemos andar por essas ruas como quem flutua leve em uma maré de coisas boas, ou então deixar aqui nessas mesmas calçadas o gosto salgado de lágrimas que não puderam ser contidas no caminho. Uma mesma andança pode ser extremamente prazerosa ou ansiosa, apressada. Pode ser também um dia como qualquer outro, nada demais, nada de menos. Calmaria - dentro do que é possível na imprevisibilidade de uma cidade como essa.
Há também os momentos em que os dias passam acelerados por nós, quando andamos com ainda mais pressa para dar conta do que quer que nos atormente. Corremos contra o relógio, contra o passado, contra nós mesmas. Tudo acontece ao mesmo tempo: o incrível, o devastador, as horas de descanso que parecem como aquela quietude no olho de um furacão que vai te alcançar a qualquer instante. São momentos em que a vida corre rápida, nos arrasta junto com ela e a gente vai. Para onde? Para quê? Até quando? Nós não controlamos mais nada, se é que um dia controlamos alguma coisa. Entramos nessa grande jornada e sairemos dela em algum momento, mas não sabemos quem seremos do outro lado, quando tudo passar e a vida voltar, quem sabe, a ser das andanças contemplativas e serenas. Só há um caminho a seguir, só um jeito de descobrir. É hora de passar por dentro do fogo ou, talvez…
…pelo meio do deserto.
Nosso passeio de hoje começa em uma pequena cidade do estado do Arkansas, no meio dos Estados Unidos. Aqui acompanhamos Thelma (Geena Davis) e Louise (Susan Saradon), duas amigas de 30 e poucos anos com vidas bastante diferentes, que saem juntas para um final de semana fora da cidade em Thelma & Louise (1991, dirigido por Ridley Scott). Louise trabalha como garçonete em um restaurante, mora sozinha e tem um namorado que está viajando, com quem tem um relacionamento meio instável. Tem um ar de mulher experiente e que sabe o que quer. Thelma, por sua vez, é dona de casa e casada desde cedo com seu primeiro namorado da adolescência, um cara abusivo que pouco se importa com ela. Tem uma vida materialmente confortável, mas entediante. Louise é decidida, desconfiada, altamente organizada e se coloca no controle o tempo todo; enquanto Thelma é sonhadora, um tanto inocente, impulsiva e vai se deixando levar por aqueles ao seu redor.
Ambas estão ansiosas para deixar a vida de sempre de lado por poucos dias, mas o que seria uma simples e tranquila viagem de amigas vira de cabeça para baixo logo nas primeiras horas, quando Thelma sofre um abuso sexual em um bar e Louise mata o homem. Elas então seguem em uma grande andança de carro pelas estradas desérticas dos estados de Arkansas, Oklahoma, Novo México e Arizona, tentando fugir o máximo possível da cena do crime e da polícia que começa a investigar e seguir os seus passos. A ideia é dirigir até o México, onde elas estariam livres das leis estadunidenses, sem passar pelo estado do Texas - o caminho mais curto -, lugar onde Louise tem um passado.
Assim, Thelma e Louise seguem pelas rodovias, com várias paradas em motéis de beira de estrada, cafés, postos de gasolina e cabines telefônicas no meio do nada. Mas claro que nada vai seguir o planejado e logo a fuga também vai virar uma bola de neve de outros acontecimentos.
O que quer que tenhamos vivido nessas ruas constrói muito de quem nós somos/estamos sendo e guia as decisões que vamos tomando ao longo da vida. Nós já passamos por outros fogos antes, já cruzamos outros tipos de deserto. Nós já somos hoje aquela que atravessou, que descobriu algo. Que permaneceu, apesar de tudo.
Thelma quer aproveitar a oportunidade para ter um gosto do divertimento que foi impedida de viver nesses anos todos, décadas de sua vida. A cautela de Louise não é à toa, seus movimentos não são impulsivos, mas guiados por outra coisa. Se Thelma conhece bem o confinamento manipulativo da vida doméstica, Louise conhece bem o lugar onde vive: o que é essa cidade, como são as pessoas que vivem nela e, principalmente, quem dá a palavra final naquelas ruas.
Quando o filme começa, Thelma e Louise parecem trazer aquela sombra das adolescentes que sonharam com algo que não se concretizou e que continua não se concretizando. Thelma já aceitou isso e largou mão: enquanto fala para as meninas do restaurante que elas não deveriam fumar tão cedo, vai para os fundos e fuma como quem faz isso há muito tempo. Louise talvez ainda espere o príncipe encantado que a salvará daquele que ela um dia achou que seria o seu príncipe. Quaisquer que sejam as fantasias que elas ainda carregam, tanto a vida de sempre quando a fuga na estrada continuam se certificando de destruí-las - as fantasias e elas mesmas, na verdade. Não tem um homem que se salve nessa história, nenhum que não seja uma imensa pedra no caminho das nossas heroínas.
Thelma e Louise fogem, mas elas também estão correndo contra o relógio, contra o passado, contra elas mesmas. Quanto mais se distanciam de seu ponto de origem, mais conseguem deixar para trás também tudo aquilo que as amarrava. Deixam que as fantasias infantis e a versão que aquela cidade espera delas se destruam no trajeto. De início, elas ainda se seguram ao passado: ao namorado que ajuda, mas é cheio de poréns, ou à aparição de um possível príncipe no meio do deserto. Elas perdem e elas ganham. E logo percebem que podem pegar o que quiserem do que passou e usar como bem entenderem. Elas não precisam tanto quanto achavam que precisavam. Conseguem se virar muito melhor do que imaginavam.
“- Acho que pirei um pouco.
- Você sempre foi doida. Foi a sua primeira oportunidade de realmente se expressar.”
As mudanças vão aparecendo sutis ao longo do tempo, até que sejam gritantes. Thelma vai deixando o ar de moça indefesa para trás e vai tomando a frente em várias situações. Louise se permite desalinhar e abre aos poucos a armadura, se deixando ser guiada quando perde suas forças. Elas vão influenciando cada vez mais uma a outra e isso aparece nos pequenos detalhes: Louise agora bebe a bebida de Thelma, enquanto Thelma fuma os cigarros de Louise, coisas que nenhuma delas fazia no início. Vão mudando quem são conforme os acontecimentos as transformam. Ou melhor, talvez elas estejam tirando as camadas de quem achavam por tanto tempo que precisavam ser e, agora, finalmente, poder ser quem sempre foram.
Elas se misturam também com o deserto e com as longas estradas que o cortam. Não com a parte ruim disso - todos aqueles homens infernais, tudo aquilo que eles já fizeram elas passar a vida inteira. Mas com a parte mais sublime de tudo, aquilo que as conecta com a força daquelas montanhas, que as faz não se importarem mais com nada e só se jogarem. Aumentando cada vez mais a bola de neve de problemas que as cerca, sim, mas também sendo o mais livre que talvez já foram. Não há retorno possível, não existe outra saída a não ser seguir em frente.
“- Não sei. Sabe… Algo passou por mim… e eu não posso voltar. Quero dizer, eu não poderia viver.”
Quando tudo anda meio caótico e bagunçado, eu sinto que preciso voltar para o meu prumo. Ainda mais quando os dias passam abarrotados, com uma demanda atrás da outra, e não sobra tempo para refletir e recarregar as baterias na fonte de mim mesma. É tão fácil desviar. Tão fácil se deixar levar por o que quer que seja e se perder. Deixar crescer emoções que nos deixam com medo do mundo, dos outros, de quem nós somos e podemos ser. Quando isso acontece, eu gosto de assistir filmes como esse. Não é preciso que eu me veja diretamente nas personagens, nem que aquilo corresponda de alguma maneira à minha realidade.
Thelma & Louise é uma história tipicamente estadunidense, com todos os símbolos tão fortes de uma história épica daquele país - a estrada, o faroeste, o crime, as explosões, os motéis e os dinnings. Mas mesmo assim é muito fácil se relacionar com o que Thelma e Louise passam, porque a gente conhece versões disso de alguma maneira. Não só no machismo escancarado que causa todos os seus problemas, mas também nessa jornada literal ou metafórica de descoberta de si mesma. E o que a gente vê são essas duas mulheres tirando toda essa pele antiga, gasta, machucada, e se reencontrando.
É o tipo de filme que põe a gente no lugar de novo. Que nos deixa mais fortes para seguir as nossas próprias andanças (ou correrias) dessa vida.
“Me sinto acordada. Bem acordada. Não me lembro de me sentir tão acordada. Sabe como? Tudo parece diferente. Também se sente assim, como se tivesse algo pelo que esperar da vida?”
Pode parecer que não, mas no fim das contas, acho que Thelma & Louise é realmente um daqueles filmes esperançosos, sem aquela esperança meio vaga do final feliz certo das comédias românticas. É um filme que a gente pode olhar para o final e se perguntar também Para onde? Para quê? Até quando?. Mas talvez as respostas não importem tanto assim - é só um filme, afinal de contas. Uma épica história das duas mocinhas que foram lá fora e dominaram o seu mundo, sem nunca ceder nem nunca olhar para trás, e que se transformaram em lendas do deserto que vão viver para sempre junto com a gente. Não importa o que aconteceu depois, entende? Talvez precisamos de filmes assim também. Filmes em que, não importam os desfechos, a gente sabe que as nossas protagonistas chegaram.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Thelma & Louise está disponível para assistir no Prime Video.
Links extras
- O trajeto aproximado feito por Thelma e Louise no filme (e uma opção mais curta), caso um dia você queira pegar essas mesmas estradas também!
- Eu AMO o pôster do Criterion Collection para esse filme <3
- Um vídeo (em inglês) muito bom analisando as escolhas de roteiro de Thelma & Louise e explicando melhor como tudo é muito bem amarradinho - tem vários detalhes que passam despercebidos facilmente! Não é à toa que o filme levou o Oscar de Melhor Roteiro Original em 1992 para a roteirista Callie Khouri.
- Thelma & Louise foi dirigido por Ridley Scott, que também dirigiu Gladiador e a sua sequência, Gladiador II, que estreou nos cinemas na semana passada. Eu assisti o filme e escrevi uma crítica sobre ele aqui! Gostei e me diverti, mas achei que o filme tem alguns problemas que atrapalham a experiência.
- Escrevi também uma crítica sobre Wicked, que estreia nos cinemas hoje e é uma lindeza só! Gostei muito <3
- No final de outubro, Frances Ford Coppola esteve em Curitiba e deu uma aula aberta ao público no Teatro Guaíra. No cafezinho da semana passada, as apoiadoras receberam uma edição com as minhas notas da aula, focando principalmente nos vários conselhos de escrita do diretor <3
- Também teve cafezinho com os filmes que eu mais gostei de assistir entre junho e outubro <3
Aqui na Andanças temos dois tipos de edições: as andantes, como esta, que são abertas a todos quinzenalmente; e os nossos cafezinhos, também quinzenais, que são edições exclusivas para os apoiadores da newsletter. Se você quiser ler os últimos e os próximos cafezinhos na íntegra, considere apoiar a Andanças. Custa apenas 10 reais por mês (dois cafezinhos!), você ajuda a newsletter a continuar a todo vapor e ainda apoia o trabalho de uma escritora/pesquisadora independente <3
Outros passeios
Chegou na Andanças por essa edição? Você também pode gostar de: