A verdadeira dor (A Real Pain, 2024, dirigido por Jesse Eisenberg) irá estrear nos cinemas brasileiros amanhã, dia 30 de janeiro. Não há spoilers nesta edição :)
É comum nos referirmos à “feridas” quando falamos de dores emocionais. Sei lá porquê. Talvez seja o elemento gráfico e ordinário das feridas. Todo mundo já se feriu alguma vez. Ralou o joelho de bicicleta, cortou o dedo fazendo o almoço. Nós sabemos como as feridas são e já as vimos em várias formas diferentes. Sabemos quanto tempo elas levam para cicatrizar. Sabemos que se ela foi muito funda o nosso corpo precisa de ajuda e levamos pontos. Sabemos que as cicatrizes ficam por um tempo - aquela pele meio esquisita de tom diferente onde o joelho encostou no chão. Sabemos também que algumas delas nunca irão embora.
As feridas são uma ótima metáfora para quando falamos de dores que não tem origem física justamente por todos esses fatores. Por outro lado, essas dores não são visíveis, o que deixa tudo muito mais complicado. Imagine se andássemos nas ruas com as nossas feridas emocionais todas expostas. Aquelas gigantes e antigas que nunca soubemos como curar, aquelas que foram cuidadas só depois de anos e que deixaram cicatrizes meio feias. Não ver torna as coisas mais difíceis mas, quando convivemos de perto e mais profundamente com alguém, nós sabemos que elas estão lá. Conseguimos ver no canto dos olhos a existência delas, temos uma noção do que existe por trás dos escudos. Sabemos que algumas delas com certeza precisariam de cuidados, mas há sempre um limite do que podemos fazer pelo outro. E saber disso também dói.
A verdadeira dor é um filme sobre feridas. Aquelas novas, que não sabemos de nenhuma forma como lidar. Aquelas que nos acompanharam ao longo da vida e aquelas das pessoas que amamos que buscamos compreender. Fala também das feridas que atravessam gerações e daquelas que fazem parte de uma experiência coletiva. Ele é um dos filmes da lista de indicados ao Oscar deste ano, concorrendo nas categorias de melhor ator coadjuvante para Kieran Culkin (que ganhou o Globo de Ouro!) e de melhor roteiro original para Jesse Eisenberg, que dirige, escreve e protagoniza o filme.
Ele é também um dos filmes mais andantes desta temporada de premiações, um filme de estrada e de viagem, e é claro que eu estava o aguardando ansiosamente.
Nosso passeio de hoje começa no aeroporto de Nova York, onde nossos protagonistas estão prestes a pegar um voo até Varsóvia, a capital da Polônia. David (Jesse) e Benji (Kieran) são dois primos que decidem fazer uma viagem no país para homenagear sua avó que faleceu a pouco tempo. Ela era polonesa e judia e fugiu da Europa para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Ali, eles acompanham uma excursão que retraça a história do Holocausto e também seguem solo uma parte da viagem para conhecer a casa onde a avó morava. O grupo é liderado pelo guia inglês James (Will Sharpe) e conta com um grupo pequeno de pessoas que decidiram fazer a viagem por uma série de razões pessoais: Marcia (Jennifer Grey), Eloge (Kurt Egyiawan) e o casal Diane (Liza Sadovy) e Mark (Daniel Oreskes).
De cara, David e Benji são extremamente diferentes, opostos até (e a escolha dos atores é perfeita nesse quesito). David trabalha com anúncios na internet, é casado, tem um filho, e vive uma vida tradicional com a família na cidade de Nova York. De Benji, por outro lado, não sabemos muito: ele mora em uma das cidades pequenas do estado e tinha uma convivência muito próxima com a avó. David é todo metódico, retraído, inseguro, ansioso. Benji é espontâneo, aventureiro, carismático. Ele expressa seus sentimentos com facilidade e se conecta com as pessoas de uma forma muito rápida e natural.
O grupo segue o tour a pé - uma grande andança - por Varsóvia, acompanhando monumentos e aprendendo sobre a história da cidade. Há muitas reflexões no caminho e momentos em que a compreensão do passado se entrelaça com os sentimentos presentes. A outra parte do tour é por uma cidade menor do país, onde o grupo visita um campo de concentração e por onde David e Benji seguem o seu caminho pelo próprio passado.
A verdadeira dor conta um pouco de como era a vida dos judeus na Polônia antes da guerra e o que aconteceu durante esse período, e o faz de uma maneira muito delicada. Mas ao mesmo tempo que o filme relembra o que foi vivido de forma tão dolorosa por seus antepassados e os homenageia, também retrata as feridas recentes dessa relação entre os primos e de ambos com a avó. A história é sobre David e Benji, uma terceira geração que está muito longe das origens de sua avó e de todas as dores que ela passou - distância que é trazida diversas vezes no filme e motivo de muitas reflexões. Eles estão ali para compreendê-la, para se aproximar dela, para entender de onde vieram as feridas que eles sabiam que ela carregava. Mas essa é uma tentativa de achar uma forma de curar as próprias feridas também, principalmente essa nova, que ainda lateja e sangra dependendo do movimento.
Andar pelo passado é diferente de ouvi-lo e lê-lo em algum lugar. De certa forma, todos ali estão em busca de uma conexão com algo que está perto e distante deles ao mesmo tempo. É uma viagem que mexe com as lembranças, com as histórias ouvidas ao longo de toda a vida, com as experiências já vividas em outros lugares. É imaginar como teria sido se tudo fosse diferente. É andar para ter a possibilidade de curar uma ferida antiga que vai muito além deles, mas também para ver o que acontece com aquelas que são só suas.
Quando o filme acabou, eu fiquei com a sensação de que estava faltando algo. Não sei o que eu esperava. Talvez uma grande catarse, uma grande explosão emocional, um desfecho cheio de lágrimas e densidade. É um título sugestivo, uma história com uma carga emocional pessoal e histórica, o foco na dor… acho que eu entrei com uma certa ideia pronta do que viria. Quando falei sobre ele na minha lista de filmes para 2025, escrevi que previa que o filme me faria chorar profundamente. Mas A verdadeira dor não leva exatamente a gente por esse caminho.
Carreguei o filme comigo pelos dias seguintes, tentando ligar os pontos, conectar o que eu vi com os pensamentos que começaram a surgir a respeito dele. Ele é daqueles que a gente vai digerindo aos poucos, que vai fazendo sentido de forma devagar.
Aí eu percebi, eu acho. Percebi que nem sempre as grandes dores acontecem com grandes alardes, grandes explosões emocionais. Andamos por aí com dores dilacerantes enquanto vamos para o trabalho, fazemos compras, seguimos os mesmos caminhos de sempre. Não aparecer não quer dizer que não dói todo santo dia. O resultado de uma grande experiência emocional nem sempre vai ser uma mudança repentina de vida, embora a gente saiba que definitivamente não é mais a mesma pessoa. As coisas são muito mais silenciosas do que a gente acha que seriam. O sol se levanta igual no dia seguinte, a pilha de louça se forma mais uma vez, as tarefas precisam ser retomadas em algum momento.
Talvez a verdadeira dor seja aquela que fica depois que tudo passa - no dia seguinte, no mês seguinte, na década seguinte.
Seguir não quer dizer que não sentimos, que aquelas feridas não estão ali. Muito pelo contrário, talvez. Seguir pode ser a melhor forma de conseguir curá-las, porque se apegar àquela dor pode ser a nossa ruína. Mas não quer dizer que ela não esteja ali. Dói enquanto a gente ri. Dói enquanto a gente fica feliz por algo que aconteceu. Queima quando a gente pensa a respeito, traz uma vontade de vomitar quando alguma palavra toca na carne exposta. Só não dá para ver.
No decorrer dessa andança, vamos percebendo qual a profundidade das dores de David e Benji e o quanto eles percebem um ao outro. Eles sabem da dor. Há algumas cenas que são excelentes e mostram a maneira de cada um de lidar com elas, que explicam muita coisa que não é dita ao longo do filme. As cautelas, as risadas, as preocupações, a falta.
Talvez a ferida aberta para uma dor que nos afeta diretamente passa a nos deixar sensíveis também a outras dores. Como pode que ninguém perceba o que está acontecendo? Como pode que estejam todos tão passivos, tão calmos, tão insensíveis ao absurdo dessa situação? Incomodam as palavras prontas, a teoria que não toca nas profundezas, a ironia do tempo que passou. Mas não é como se ninguém mais estivesse sentindo também. Nós só criamos mecanismos diferentes para nos proteger da dor, especialmente aquelas que nunca soubemos bem como curar, como cicatrizar. Pode ser que o escudo construído como única solução tenha sido tão forte que não permite sensibilizar, não permite deixar adentrar também as dores do mundo. São escudos de décadas, de uma vida inteira.
Escudos que sobem e descem em momentos diferentes com frequências também diferentes, como acontece com David e Benji.
Eu pensei muitas coisas sobre esse filme, mas esse não é o tipo de texto que se arranca do peito. Especialmente agora. Principalmente agora. Agora que a minha própria ferida imensa começa a dar os seus primeiros sinais de cicatrização, aquela movimentação minúscula e lenta do corpo trabalhando para refazer a pele de novo. Eu vou racionalizar aqui, analisar teoricamente o que eu ainda não consigo colocar em palavras sentimentais. O cerne dessa newsletter sempre foi a escrita emotiva, que envolve e busca trazer uma conexão entre as minhas emoções, as do filme e, quem sabe, também as suas. Mas há um escudo aqui agora também. Há uma proteção nos meus ouvidos, uma série de frases prontas para dar de resposta. Não dá para tocar a ferida, não ainda. Ela precisa ser cuidada em silêncio, por enquanto.
Estou em algum lugar no meio do caminho entre David e Benji, ora pendendo mais pra um, ora pra outro. Eu entendi o final, no fim das contas. Entendi o silêncio que vem depois de todas as elaborações. Entendi o retorno que é parecido, mas diferente, muito diferente. É um outro lugar agora, por mais que não pareça. Está ali nas sutilezas do que carregamos de novo conosco, nos recursos cinematográficos que mostram que algo não está no mesmo lugar que antes. Está no olhar também, nós sabemos que está.
A verdadeira dor tem uma fotografia linda e diversas cenas muito bonitas pelas cidades polonesas. A câmera vai direcionando o nosso olhar também pela escala das coisas, das emoções dos nossos personagens e dessa mistura entre passado e presente e todas as emoções complexas que vem disso. Kieran Culkin faz um trabalho excelente aqui, indo de um extremo a outro como só ele sabe fazer. Mas a atuação mais contida de Jesse Eisenberg também não fica para trás: ela é cheia de detalhes e sutilezas que, muitas vezes, só fazem sentido depois que saímos do cinema. Achei esse um dos filmes mais bonitos e um dos meus favoritos dessa leva de premiações.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
A verdadeira dor estreia nos cinemas brasileiros amanhã, dia 30 de janeiro. Assista o trailer aqui.
Links extras
- Na semana passada, nosso cafezinho para assinantes foi um passeio por Stars Hollow, a charmosa cidade de Gilmore Girls, série que eu estou assistindo pela primeira vez agora (!!). Tivemos algumas reflexões sobre o que a cidade tem de tão interessante e sobre pertencimento.
- A verdadeira dor é o terceiro filme da minha lista de lançamentos de 2025 para assistir. Os outros dois eram Maria Callas, que vimos na última edição andante, e Anora, sobre o qual eu escrevi aqui. Não pretendo assistir todos os filmes indicados ao Oscar, mas vários deles são os meus próximos da lista :)
- Se você está em Curitiba: em fevereiro estarei dando uma oficina de sketchbook para crianças no Solar do Rosário! A faixa etária é de 8 a 14 anos, será nos 4 sábados do mês e já começa nesse dia 1. Todas as informações estão neste post e você pode fazer as inscrições no site do Solar.
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demorei para atualizar minhas news não lidas na caixa de entrada do e-mail. mas felizmente voltei a essa, que estava ansiosa para ler. fui ver o filme logo que estreou para poder conversar com a andanças, e, sim, o silêncio vem depois de todas as elaborações. quase um mês depois de assisti-lo, agora te lendo, estou aqui, em silêncio. ótimo texto <3
Nem vi o filme, mas esse texto tocou lá nos cantinhos profundos do meu coração! Toda a reflexão da dor, silenciosa, queimando, enquanto tudo acontece, o mundo gira e as louças acumulam me pegou em cheio. Dei uma choradinha em público, obrigada pelo texto e com certeza vou assistir