Olá! Às vezes as andanças viram verdadeiras correrias. As últimas semanas foram mega agitadas por aqui, com muitas coisas boas e outras nem tanto (fiquei doente por alguns dias e ainda estou me recuperando). Por tudo isso, esta edição acabou demorando um pouco mais para sair. Ainda vou responder todos os comentários das edições anteriores e, na semana que vem, voltamos à programação normal. Obrigada pela compreensão e bem-vindes ao passeio de hoje <3
Esta é uma edição especial da newsletter! Eventualmente, filmes com pessoas andando pela cidade estão agrupados em coletâneas e trilogias, como é o caso deste passeio especial que está terminando hoje. Faremos nossas andanças junto com Jesse e Céline, protagonistas dos três filmes da Trilogia Before.
E se você acabou de se juntar às nossas andanças, não deixe de ver as outras três edições deste especial: #30: Trilogia Before, #31: Antes do amanhecer e #32: Antes do pôr-do-sol.
“- A cada ano me sinto mais humilde e impotente diante de coisas que nunca vou saber ou entender.
- Mas não saber não é tão ruim. O objetivo é procurar, buscar. Manter essa fome.”
Com quarenta e poucos anos, eu imagino que continuamos não sabendo muitas coisas - embora, a essa altura, talvez já tenhamos feito as pazes com isso. Mas hoje eu não sou uma narradora confiável: meu mundo ainda gira em torno dos vinte-e-tantos-quase-trinta ou, em outras palavras, em algum lugar entre o amanhecer e o pôr-do-sol. A meia-noite ainda traz para mim mistérios que talvez eu só vá compreender totalmente na próxima década. Começar a se entender e a se ver como adulto é muito diferente de já estar nesse papel há um certo tempo. As angústias e as preocupações são outras. Será que, aos quarenta, sabemos melhor quem somos e para onde devemos ir? Talvez. Talvez não.
Talvez só estejamos tão perdidos quanto sempre estivemos. Mas, reforço: hoje eu sou pura especulação.
Nós passamos uma boa parte das nossas primeiras três décadas no mundo na procura do final feliz que nos prometeram. Corremos atrás das nossas respostas por múltiplos caminhos com nossa bagagem cada vez mais pesada e experiente. Quando um “felizes para sempre” chega, talvez nos enganemos por um tempo achando que não é preciso mais fazer perguntas. Mas, quando menos se espera, elas estão ali à espreita:
Será que aquelas foram realmente as melhores escolhas?
Como saber? A dúvida paira no ar e se mistura às camadas de insatisfações acumuladas ao longo dos anos. Mas há também conforto, segurança, estabilidade, aquilo e aqueles que fazem o caminho trilhado ter valido a pena. Foi dito que era amor um dia, mas é amor ainda? O que é amar e o que é conviver? Há diferença? Os olhos encontram um no outro sua casa e sua perdição, tudo ao mesmo tempo, misturado. São olhos que conhecem, que conhecem de verdade. Mas será que amam realmente, agora que conhecem?
E Jesse e Céline, aqui com quarenta e poucos anos em Antes da meia-noite (Before Midnight, 2013, dirigido por Richard Linklater), voltam a fazer perguntas para si mesmos, enquanto trocam olhares que lançam um ao outro o conforto e as farpas da convivência.
Nosso passeio de hoje começa em um aeroporto. Mas estamos em 2013 e não 2004: o voo do dia não é aquele que Jesse tinha que pegar nove anos atrás. Pai e filho se despedem, com aquela estranheza de comunicação que acontece entre duas gerações tão diferentes. É a vez do filho voar e buscar suas aventuras. O pai, Jesse (Ethan Hawke), fica. Do lado de fora, Céline (Julie Delpy) espera ao lado do carro no meio de uma ligação de trabalho. No banco de trás, duas meninas dormem enquanto seus pais dirigem de volta para casa.
O dia só começou e ainda será longo, pois eles ganharam uma noite em um hotel - um presente que não sabem se querem. Nosso passeio segue então pelas tarefas do dia da família e as andanças de nossos personagens pela Grécia, onde estão passando as férias, até que bata a meia-noite e um novo dia faça a rotina começar mais uma vez.
Muita coisa aconteceu nesses nove anos. Depois do voo perdido, o processo de divórcio de Jesse e da guarda de seu filho. Mudanças de país. Céline fica grávida não só de uma, mas de duas meninas ao mesmo tempo. Jesse escreve um segundo livro, contando sobre o reencontro do casal que nunca deixou de se amar e é um novo sucesso. A carreira dele segue a todo vapor e a de Céline também. Muitas viagens, muitas ausências, muitas tarefas, pouco tempo. Tentam ser o que precisam para os filhos e para si mesmos. Os anos passam correndo e os dias de longas andanças já não são mais a realidade de nossos protagonistas.
“- Isso é tão estranho… Isso aqui. Nós dois conversando e tendo uma conversa que não gira em torno de horários, comida, trabalho.
- Quando foi a última vez que caminhamos só falando bobagens?
- Está ouvindo o que estou ouvindo?
- O mar?
- Não.
- O quê? Ah! A ausência de passinhos. Nada sendo derrubado, nenhuma sujeira, nenhuma injustiça sendo cometida…”
As conversas de Jesse e Céline são como camadas retiradas aos poucos, até que se chegue onde dói mais. Foi assim há nove anos atrás também, mas de uma forma diferente. Lá, existia o medo de conhecer novamente aquela pessoa e abrir antigas feridas. Aqui, a complexidade da convivência bagunça sua comunicação. Falam coisas diretamente, sem rodeios, mas estariam falando sério? Se lá eram as feridas da ausência, aqui as feridas são da presença. Falam sobre envelhecer, sobre se sentirem o mesmos desde sempre, sobre serem ou não bons pais. Falam sobre casamento e sobre sexo, mas amor… eles não falam mais de amor como antes. Talvez esse ainda seja um assunto seja difícil, como há 18 anos atrás. Ou talvez seja ainda mais complicado agora, que já sabem o que é o amor… mas será amor ainda o que sentem um pelo outro?
A cidade dessa versão de Jesse e Céline de quarenta anos reflete a sua condição de quem já alcançou um lugar confortável na vida, mas que também são pais cansados, preocupados e sempre com algo para fazer. O carro com motorista é substituído por um carro tamanho família dirigido por eles mesmos, com bastante espaço para a bagagem de todos. Eles estão de férias e isso muda toda a dinâmica que vimos nos outros filmes, mas talvez seja somente nesse pequeno espaço de tempo que eles conseguem parar sozinhos em um café para ver o sol se pôr. Há a certeza de recursos suficientes, mas o tempo para si é matéria em extinção. Se lá no começo não ficaram em um hotel porque não havia dinheiro, agora falta vontade para isso. O hotel foi dado, é só ir. Mas será que vale o trabalho?
As roupas agora são confortáveis. Eles estão de férias, é verdade, mas também se importam menos com a própria aparência. Jesse é desleixado - “O que você queria, a essa altura do campeonato?” -, para o pavor de Céline, que agora usa roupas mais funcionais para o dia-a-dia que envolve cuidar de duas crianças. Andam menos, dessa vez. Talvez porque a bagagem que compartilham já esteja tão pesada que é difícil andar com leveza.
A relação passada agora é a deles próprios. Quem eram antes de tudo isso? No que o cotidiano os transformou? No que a publicação de sua história de amor os transformou? Jesse se sente bem confortável no papel de escritor famoso, ainda mais em uma história que tem um cunho sexual. Ele está naquela posição em que será cobiçado ainda mais conforme a idade chega, exalando o charme e a sedução da confiança, parando para dar autógrafos. Mas para Céline a exposição tem um gosto amargo. A história de amor dos dois inspirou milhares de pessoas apaixonadas no mundo inteiro, mas estar dentro dela, na realidade do cotidiano, é outra história - e, nesse caso, a veneração do público não ajuda nem um pouco.
Cada um carrega suas muitas perguntas e angústias sobre o papel que desempenham. Jesse teme não ser um pai presente para o filho em outro país, Céline teme não ser uma mãe boa o suficiente. Eles encaram agora as consequências dos caminhos que escolheram, descobrindo que dizer “sim” para algo sempre significa um “não” para outra coisa - e, se na juventude essas decisões eram claras e óbvias, agora tudo é muito mais complicado. Nunca deu para ter tudo - mas talvez esse fato nunca foi tão silenciosamente doloroso quanto agora.
Talvez mais do que nunca, eles continuam não sabendo exatamente o que está acontecendo. Apesar de alguns bons momentos, Jesse e Céline são um casal em crise. Um dia, no trem, a primeira coisa que Céline falou para Jesse foi: “Sabe que, com a idade, os casais não ouvem direito um ao outro?”. Eles estão nesse lugar agora e brigam como o casal alemão que os fez mudar de lugar permitindo que se conhecessem. Mas isso porque cada um está tão imerso em si mesmo e nos próximos sentimentos e necessidades que não consegue ver o outro que está ao seu lado. Passam o dia vivendo uma verdadeira tragédia grega e a “morte” do momento se aproxima mais uma vez, não porque o relógio está no seu encalço, mas porque os sentimentos se esgotaram. Muitas coisas estão no seu limite. O tempo que passa agora é o da vida. O filho mais velho vai entrar no ensino médio, a avó de Jesse faleceu, o corpo não é mais o mesmo de vinte anos.
Lá fora, o dia acaba e a noite avança. Quantas brigas quartos de hotel já presenciaram em suas longas existências? Quantos “eu não te amo mais” aquelas paredes já ouviram? Nas mesas dos bares, é fácil reconhecer os casais que estão começando e os que já estão nessa há um certo tempo. É a convivência que faz as coisas mudarem de figura - e o dia-a-dia nem sempre é bonito.
Esquecemos que conhecemos Jesse e Céline por apenas algumas horas de suas vidas em Viena e Paris. Era esse também o único tempo que eles conviveram em um espaço de 9 anos. Como eles poderiam ser os mesmos depois de tudo que aconteceu em seguida? Em essência, eles ainda estão ali - “Eu garanto para você, o cara gentil e romântico que conheceu num trem… sou eu” -, mas o que viveram em conjunto, nas belezas e feiuras do cotidiano, muda tudo.
Talvez amor e cotidiano não sejam exatamente coisas diferentes. O amor também nem sempre é bonito. Nem sempre somos as melhores versões de nós mesmos. Cometemos erros, falamos injustiças, trazemos nossos traumas e inseguranças para as relações. A gente sabe o beabá de um bom relacionamento - boa comunicação e etc etc - mas na prática, é sempre complicado de acertar. O tempo cria também manias, vícios, formas de lidar automáticas que nem sempre são as melhores. Estamos sempre na busca por um equilíbrio que é difícil de encontrar. Talvez os casais mais duradouros sejam aqueles que conseguem achar, com o tempo e com respeito, a melhor forma de se chegar nesse lugar onde a vida pode ser boa para ambos da mesma forma. E eu espero que Jesse e Céline encontrem esse lugar também.
“- Ainda está lá. Ainda está lá. Ainda está lá. Ainda está lá. Foi embora.”
Eu não poderia terminar esta edição sem falar sobre o que me incomoda nesse filme. Talvez sejam coisas que te incomodem também, afinal, esse foi um filme que dividiu opiniões. Há quem ache que ele encerra perfeitamente a trilogia, com uma perspectiva fiel da dura realidade de um casamento; outros, que a história poderia ter acabado no segundo filme.
Talvez eu não entenda, é verdade, mas as palavras de Jesse ao final não me convencem. É difícil também para mim não tomar um lado: por mais que Céline seja péssima em vários momentos, Jesse tem várias falas abusivas que não me descem. A proposta de Antes da meia-noite, de mostrar a realidade de um casamento com filhos é ótima, mas às vezes acho que o filme romantiza esse estado de brigas entre eles como isso fosse normal, parte do processo - o “amor da vida real”. E eu acho que não é bem assim. Não são as dificuldades de uma relação que são enfatizadas, mas as dicotomias estereotipadas de homem x mulher. Para mim, Jesse e Céline cruzam a linha do respeito algumas vezes - e a fala do final parece ser só mais um band-aid na ferida.
Mas o Jesse e a Céline de Viena e de Paris talvez pensassem mais como eu e ficariam pasmos vendo a si mesmos no futuro. Assim como vários pontos de Antes do pôr-do-sol só passaram a fazer mais sentido para mim mais tarde, talvez algumas coisas desse filme só sejam melhor compreendidas mais para frente. Não sei.
De qualquer forma, eu ainda adoraria ver um quarto filme com Jesse e Céline caminhando por aí enquanto conversam sobre como agora compreendem que o que viveram antes foi uma bagunça emocional em um momento de estresse, reconhecendo como se machucaram e foram ruins um com o outro. Uma conversa em que eles contem como estão se redescobrindo agora que os filhos cresceram e entendendo o amor como algo que vai não só além do amor romântico, mas também do amor conjugal. Eles poderiam até estar divorciados, descobrindo que podem se amar muito também como amigos e pais em sua experiência compartilhada, crescendo para além daquilo que os uniu e amadurecendo juntos conforme a juventude vai ficando para trás. Vamos ter que esperar para ver (o intervalo de 9 anos já passou, mas o diretor não descarta a possibilidade de um 4º filme).
Com o fim desse especial, terminamos o verão. A partir de semana que vem, migramos para passeios mais outonais, com outros temas para pensar. Te espero lá :)
Onde assistir
Antes da meia-noite está disponível na HBO Max.
Links extras
- Antes do pôr-do-sol voltou para a HBO Max!
- Esse vídeo faz um lindo compilado dos três filmes, com algumas falas do diretor e dos atores (legendas em inglês).
- Ensaiando Antes da meia-noite e algumas cenas de bastidores.
Outros passeios
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Essa trilogia está na lista dos meus filmes favoritos e também sempre descubro novas camadas. Quando vi “Antes da Meia-Noite” no cinema ao lado da minha mãe, ficou marcado como ela absorveu a história de um jeito diferente de mim - ainda nos meus 20 anos. Desde então, também acho que muitos aspectos desse filme, eu só conseguirei entender mais à frente.
Adorei o texto!
incrível poder ver a sua percepção sobre a trilogia, tem coisas que a gente percebe apenas pela perspectiva do outro. obrigada :)