Andanças #48: Novembro
Transformar danças internas em palavras. Ou: as emoções que a cidade pode nos trazer
“E se eu me apaixonasse por alguém na rodovia? Tipo, alguém no carro do meu lado. O que eu faria?”
Andar pela cidade nunca é somente um exercício físico. Ali, enquanto nossos pés avançam um em frente ao outro e nossos olhos capturam a paisagem que se desdobra ao nosso redor, nossa mente segue um caminho todo seu. Não é à toa que dizem que, quando as emoções nos assolam ou quando uma ideia não consegue tomar forma, caminhar é sempre uma boa opção. Ir lá fora, tomar um ar, ver gente.
Quando andamos assim, sozinhos, podemos estar tão imersos em nós mesmos e nos nossos pensamentos e perspectivas sobre o que estamos vendo, que não paramos para pensar que cada uma daquelas pessoas ao nosso redor provavelmente está fazendo o mesmo. Andamos todos por aí como grandes fontes pulsantes de um universo de possibilidades que dançam no palco da nossa mente enquanto a cidade passa veloz por nós. Isso é tão forte que essa dança sozinha, sem intervenção externa, pode ser capaz de vir para o corpo, nos gerando emoções que não sabemos bem explicar. De repente, na calçada, alguém sorri ou canta em voz alta, tenta conter as lágrimas ou suspira de alívio.
Eu não sei o que seria de nós se pudéssemos ouvir os pensamentos dos outros. Acho que as coisas perderiam um pouco de sentido. O que importa não é acessar as mentes e tirar nossa interpretação do que encontramos, mas sim ouvir as próprias pessoas transformarem suas danças internas em palavras.
E que coisa maravilhosa isso pode ser.
Nosso passeio de hoje é pelas ruas geladas do inverno de Montreal, no Canadá, nos seus escuros dias do penúltimo mês do ano. Novembro (Novembre, 2023, dirigido por Iphigénie Marcoux-Fortier e Karine van Ameringen) é um filme tão singelo e delicado, e ao mesmo tempo tão forte e profundo, que me deixou completamente sem palavras e sem rumo quando saí da sua sessão no Olhar de Cinema no mês passado. Era uma noite fria do nosso próprio inverno curitibano de junho e quem me via saindo do shopping não tinha a menor noção da euforia que habitava a minha cabeça naquele momento.
No filme, as diretoras caminham pela cidade e filmam alguém que fala um pouco sobre si. Aquela mesma pessoa acaba levando à outra e assim se segue uma sequência de conexões entre pessoas que se encontram brevemente nessa andança pela cidade. Desde a sua realização até o resultado que vemos na tela, o filme todo é um grande processo de ouvir. Cada uma dessas pessoas expressa suas histórias, seus anseios, suas divagações, seus medos sobre coisas variadas. A sensação é de estar em uma conversa muito íntima com alguém que você nunca viu e que provavelmente nunca verá - assim como muitos dos encontros que temos nas cidades grandes.
E essa não é uma sensação de intromissão, muito pelo contrário. Cada uma dessas pessoas está nos dando suas palavras, a sua tradução da dança mais interna que acontece no seu ser naquele momento. Está tudo ali, no conjunto daquelas palavras: toda a dor, toda a alegria, toda a força, o caráter, a personalidade, a história - o todo do que faz aquela pessoa ser ela mesma. E ouvir também constrói quem somos, esse momento de absorver experiências tão diferentes das nossas vividas e narradas pelo próprio processo de compreensão do outro. O falar e o ouvir que surgem do nosso contato com o outro parecem ser características fundamentais de que é ser humano. Mesmo que aqui esse contato seja mediado por um tela, as emoções que esse encontro distante é capaz de nos causar mostram ao quão enorme e poderosa a relação entre as pessoas pode ser - seja assistindo a um filme ou lendo a minha própria dança interna que se traduz nessas palavras.
E a cidade é esse lugar muito louco que reúne uma imensidão de pessoas em suas próprias danças que transbordam para fora delas e que podem nos trazer alguns dos momentos mais incríveis no meio de tantos desconhecidos. Vi agora a pouco esse vídeo de um homem cantando alto Living on a Prayer sozinho em um parque de Londres, quando de repente todas as pessoas do parque se juntam a ele no refrão. As lágrimas correm incontroladas aqui até agora e é com essa emoção que escrevo a edição de hoje.
Me lembrei de todos os momentos que me emocionei em público, cercada de uma multidão de pessoas sozinhas que, naquele grande conjunto, formavam algo muito maior que cada uma de nós individualmente. Estádios lotados de futebol, grandes shows. Lembrei das vezes que presenciei alguém fazendo algo inesperado e trazendo um grande sorriso para alguém na rua. A moça que passou cantando na frente do meu prédio, no meio de uma manhã, a plenos pulmões: “vamos com você, nós somos invencíveis pode crer! Todos somos um, e juntos não existe mal nenhum!”, não faz a menor ideia do quanto alegrou o meu dia e que eu lembro disso até hoje. Lembrei de todas as noites frias que passei em bares de karokê ouvindo pessoas incrivelmente talentosas cantarem com toda sua emoção e do bar inteiro cantando junto com elas. Lembrei de uma noite em que eu voltava da faculdade de ônibus, chorando meio escondido por um motivo que eu nem lembro mais qual é, e a moça do meu lado colocou a mão no meu ombro, disse: “vai passar” e foi embora. Nunca mais a vi, mas nunca esqueci daquilo.
E ela estava certa: realmente passou.
No final da sessão, as diretoras (que estavam presentes no festival), comentaram que as filmagens aconteceram durante sete novembros. Elas fizeram praticamente todo filme sozinhas e, com outros trabalhos acontecendo, iam filmando aos poucos, como era possível. Muitas das pessoas na tela já eram conhecidos seus e os contatos foram se dando mais ou menos como no filme, com uma pessoa levando até a próxima. Nesse longo processo de filmagem, muitas coisas aconteceram: os adolescentes preocupados com o meio ambiente se tornaram adultos, alguns adultos mudaram e não quiseram mais que sua filmagem fosse usada, várias pessoas faleceram.
Nem sei dizer qual delas me emocionou mais. O homem imigrante e deficiente visual que fala sobre o cheiro da cidade, esse cheiro todo bagunçado mesmo, mas que representa casa quando passamos tanto tempo longe. O homem no hospital que não tinha expectativa de vida e se vê melhorando um pouco a cada dia. A mulher das histórias na vizinhança, que mencionei no especial da edição #43. O trabalho tão cuidadoso do sapateiro. O senhor que se veste de papai noel todo ano. A conversa de duas jovens sobre imagem e se encontrar em uma religião. A senhorinha mentindo a idade para o filho. A radialista que fala de um lado e o homem solitário que a escuta em outro lugar, bem longe dali. As luzes de natal trazendo um pouco mais de calor humano conforme dezembro se aproxima.
Sete anos pode até não parecer um tempo tão grande quando pensamos em um projeto de longo prazo como um filme, mas é uma eternidade quando pensamos em nossas próprias vidas. Uma das diretoras disse que, nesse meio tempo, engravidou, cuidou da criança que foi crescendo, engravidou de novo e se viu como uma mãe de duas crianças no final do filme. Há sete anos atrás, em uma sexta-feira de julho como essa, eu estaria derretendo nas ruas agitadíssimas do verão de uma Nova York que eu chamei brevemente de casa. Era uma outra vida, e muitas vidas foram vividas desde então. Todas elas moram ao mesmo tempo na mente e nesse corpo que caminha sempre meio apressado por esses dias gelados de uma Curitiba tão cinzenta quanto os novembros do filme.
É muito interessante perceber que alguns dos nossos melhores momentos na cidade envolvem pessoas completamente desconhecidas colocando para fora suas danças, ou suas formas de encontrar a luz no meio da escuridão de seus dias, como propõe o filme. Acho que a gente pode chamar isso de arte, em um contexto muito maior do que aquilo que se limita às paredes de um museu ou aos traços de um pincel. A arte do cotidiano comum e extraordinário. Nesses invernos tão frios, tendemos a nos retirar mais e ficar mais introspectivos e em pequenos grupos. Mas a dança continua dentro da gente como sempre, talvez até mais intensa, mais profunda. E lá fora, mesmo nos dias mais escuros, sempre vai existir dança e música acontecendo em algum lugar, aquecendo os nossos corações que tanto precisam e nos lembrando de como é bom estar vivo.
Hoje fez sol aqui, finalmente.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Novembro teve a sua estreia mundial no Olhar de Cinema e, no momento, ainda vai seguir o seu caminho por outros festivais. Se você esbarrar com ele em algum cinema por aí, não deixe assistir <3
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- Essa edição linda da
da , sobre se sentir mais para baixo nos longos invernos e a alegria que vem com a primavera, dialoga muito com nosso passeio de hoje <3Outros passeios
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O filme parece especial! Tô lendo Flaneuse e pensando muito em ti. Beijo