Desde que a Andanças era só uma ideia rabiscada em um dos meus cadernos, minha intenção era falar da cidade e dessa coisa maluca e cheia de emoções que é a nossa vida passando por elas. O cinema sempre foi o meu ponto de partida, mas os filmes - curtas ou longas - não são os únicos elementos audiovisuais que trazem essa possibilidade. As séries são uma outra fonte maravilhosa de andanças e, de forma um pouco menos óbvia, também eles: os videoclipes. Essa é a primeira edição da Andanças em que o nosso passeio será junto com eles. Espero que gostem <3
Obs: os trechos das músicas aparecerão ao longo do texto no original (inglês), seguidos de uma tradução para o português do site vagalume.
No passeio de hoje, seremos passageiros no táxi de uma mulher misteriosa, de cabelos prateados e olhos distantes e doces. Enquanto seguimos por ruas de cidades norte-americanas e estradas no meio deserto, ouvimos sua história em forma de canção, poesia e imagem. A Balada de Cleópatra (The Ballad of Cleopatra, 2017, com videoclipes dirigidos por Isaac Ravishankara) é um curta de 24 minutos que une videoclipes de 5 músicas - Ophelia, Cleopatra, Sleep on the floor, Angela e My eyes, nesta ordem - da banda de indie/folk norte-americana The Lumineers. Todos os videoclipes são conectados e contam a história desta mesma mulher ao longo de quatro momentos de sua vida, com 25, 35, 55 e 75 anos.
“I was Cleopatra, I was taller than the rafters
But that's all in the past now, gone with the wind”Eu era Cleópatra, eu era mais alta do que o telhado
Mas está tudo no passado agora, foi embora com o vento
Quando conheci essas músicas, tinha acabado de completar 23 anos e os tempos eram outros. Assim como a versão de 25 anos de Cleópatra, eu também havia rodado por aquelas mesmas estradas desérticas e andado à toa pela cidade iluminadíssima cheia de hotéis e cassinos há poucos meses. Havia deixado outras versões minhas para trás e seguido rumo ao desconhecido, com poucos pertences e um desejo de liberdade latente e urgente no ar. Ainda havia muito para descobrir sobre mim mesma e era momento de descobri-las lá fora, no mundo - era a época dos atrevimentos. Sleep on the floor era a janela de uma liberdade nova que eu estava vivendo, cheia de altos e baixos, como no videoclipe.
“'Cause if we don't leave this town
We might never make it out
I was not born to drown
Baby, come on”Porque se não deixarmos esta cidade
Talvez nunca consigamos
Eu não nasci para me afogar
baby, venha
As limitações, nessas horas, parecem mais sufocantes e, embora eu ainda estivesse bem longe da idade da versão de 35 anos de Cleópatra, sentia que conseguia entender seu desejo de sair da casa do subúrbio e pegar a estrada. Era um momento de voltar para a cidade onde cresci e vivi a maior parte da minha vida, que me era agora mais estranha e hostil do que jamais fora. Me sentia perdida, desorientada. Os versos de Angela me acompanhavam nas longas horas que passava em trânsito nessa época - indo e vindo, indo e vindo.
“When you left this town, with your windows down
And the wilderness insideLet the exits pass, all the tar and glass
'Til the road and sky alignThe strangers in this town
They raise you up just to cut you down
Oh Angela it's a long time coming”Quando você deixou essa cidade
com suas janelas abaixadas
e toda a selvageria dentroDeixe todas as saídas passarem
todo o alcatrão e vidro
Até que a estrada e o céu se alinhemOs estranhos nessa cidade
Eles te levantam só pra te diminuir
Oh, Angela, é um longo tempo até chegar
A imagem de Angela pegando as chaves e saindo sozinha de madrugada com aquele barrigão, sorrindo na estrada, livre do que quer que a angustiava e depois, dançando sozinha na calçada, era linda de se ver. Representava para mim um outro tipo de liberdade, mas talvez um que eu só compreenda melhor agora, com uma idade mais próxima de Angela. Algo daquela busca incessante lá fora foi sendo encontrado aqui dentro e talvez, em alguma medida, isso signifique amadurecimento. Os desejos de liberdade tomam outras formas - e o que significa ousadia, também.
Mas A Balada de Cleópatra conta a história de uma vida inteira. E há muitas outras nuances nas músicas seguintes, Cleopatra e My eyes, que ainda me escapam.
Nesse vídeo (em inglês), o vocalista Wesley Schultz conta como surgiu a história de Cleópatra. Através de uma amiga de sua esposa, ele ouviu várias histórias sobre uma mulher taxista da República da Geórgia, no leste europeu. Ele a descreve como uma mulher forte que foi endurecida pela vida e que provavelmente era a única taxista na área onde estava. Quando era jovem, se apaixonou e imaginou que se casaria e que sua vida seria de uma determinada maneira. Seu namorado a pede em casamento mas, no mesmo período, seu pai morre inesperadamente e as coisas ficam confusas para ela. Ela não consegue dar uma resposta para o pedido e ele acaba indo embora e nunca mais voltando.
“So I drive a taxi, and the traffic distracts me
From the strangers in my backseat, they remind me of you”Então eu dirijo o taxi, e o tráfego me distrai
dos estranhos no banco de trás, eles me lembram você
Em todos os videoclipes existe um momento em que a história se bifurca: há uma versão da personagem que permanece onde está e outra que segue por um caminho diferente. Isso faz com que existam muitas interpretações possíveis para a história que estamos vendo, assim como muitos caminhos abertos que não necessariamente trazem uma linha do tempo única para a história, nem uma coerência exata para os acontecimentos. E tem uma poesia enorme nisso.
Já li muitas interpretações dessa história que falam sobre as escolhas que fazemos na vida, mas a interpretação mais visceral que eu sempre tirei delas foi a do desejo de liberdade. Para mim, a versão da personagem que permanece onde está é aquela parte de nós que sente que precisa cumprir algo e fazer aquilo que é sensato, esperado de nós - permanecer no velório, voltar para a cama, entrar em casa, continuar na sala comum da casa de repouso. A versão que sai é a parte que diz respeito aos nossos desejos mais profundos de nos libertar - deixar todos para trás e dirigir com o amor de sua vida sem levar bagagens, sair grávida no meio da noite e dirigir sem rumo pela estrada, voltar com o taxi para a rua, sair para a escuridão. Qual dessas versões é a que realmente acontece? Todas, nenhuma, algumas - nos videoclipes, não temos como saber. E será que isso importa?
Segundo o vídeo com o vocalista mencionado antes, os versos de Cleopatra trazem essa ideia de que, quando somos jovens, sentimos que estamos destinados a algo grande, a uma vida maior do que nossa pequena cidade natal. Somos cheios de sonhos e otimistas com relação ao futuro. Também foi assim para essa mulher, mas as coisas nem sempre aconteceram de acordo com seus planos, assim como são as coisas para nós também. Wesley conta que, quando conversou com ela, ela lhe contou que os melhores dias de sua vida foram quando se divorciou e quando teve seu primeiro filho, e que ele achou que havia nela uma coragem enorme em confrontar a vida como ela realmente foi e seguir em frente.
Cleópatra fez do desejo de liberdade o seu dia-a-dia e talvez as memórias agora já tenham uma outra face, de aceitar o que passou e que não pode mais ser mudado. Com 75 anos, o envelhecer faz com que tudo que foi vivido antes ganhe outros contornos e o olhar para o passado talvez seja menos agridoce do que fora décadas antes. Memória, amadurecimento e ousadia se unem mais uma vez para encarar o desconhecido de frente - e ela segue adiante, como sempre fez.
Com o passar do tempo, fui ouvindo menos as músicas de Cleópatra. Me mudei, curei algumas feridas e fiz as pazes com outras. Eu já não tinha mais as mesmas urgências e minha trilha sonora foi passando para outros desejos em outras ruas. Para mim, A Balada de Cleópatra sempre vai remeter à minha interpretação inicial, da busca por si mesma e pela liberdade, mas talvez eu ainda encontre outras possibilidades conforme os anos forem passando. Não arrisco dizer que entendo a história completa e nem que me identifico com as versões mais velhas de Cleópatra - isso ficará para mais tarde. Mas que coisa bela é essa a poesia que nos acompanha conforme andamos e muda de significado conforme vivemos. Talvez as músicas de Cleópatra não sejam mais as minhas favoritas como já foram, mas elas estão marcadas para sempre como a trilha sonora da minha vida e esse, com toda certeza, vai ser um dos melhores conjuntos de videoclipes andantes que eu já vi.
Na semana que vem, nos encaminharemos para o final de nossas andanças de verão. Desde que ele começou, falamos de praia, de estrada, de memória, envelhecimento, atrevimento e amadurecimento. Todos os temas convergiram aqui de alguma forma e os veremos novamente em um especial que vai durar o próximo mês inteiro e fechar a estação com chave de ouro.
Te espero lá :)
Onde assistir
Você pode assistir A Balada de Cleópatra no Youtube.
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Outros passeios
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Sempre achei o clipe lindo, mas nunca parei para observar o quanto ele pode ser transferido para nossa realidade. Adorei a sua versão!
Inspiração para uma sexta-feira (vou ouvir e ver o clipe de novo! rsrs)
Agora quero assistir com calma e observar os cantinhos que vc construiu na conversa com os vídeos.
Já me adianto e acho que vou adorar.
beijo.