Andanças #92: Rye Lane
Bagunças amorosas, nossas ruas de todos os dias e uma das andanças mais charmosas que já vimos até agora
“- Gosto da bagunça das pessoas.
- Por que acha que eu tenho uma bagunça?
- Todo mundo tem.”
Se tem uma bagunça em específico que com certeza estará na pilha de muita gente, é a amorosa. Andamos por aí carregando as bagunças que fizeram o nosso passado e talvez aquelas que estejam aqui pulsando no nosso presente. Porém, não importa o quão universais sejam alguns dos tópicos do amor, uma bagunça amorosa tem sempre um endereço - e esse endereço faz toda diferença.
Rye Lane (2023, dirigido por Raine Allen-Miller) é um daqueles filmes andantes que trazem todos os elementos que a gente adora: dois desconhecidos andam sem rumo pela cidade conversando sobre a vida, se conhecendo, interagindo com o meio, se metendo em algumas confusões e se envolvendo no caminho. O tema da vez aqui são duas belas bagunças amorosas que ainda ocupam o coração de cada um, mas Rye Lane é muito mais que isso.
É uma história de amor por um lugar.
Em uma cabine do banheiro de uma galeria de arte no sul de Londres, Dom (David Jonsson) se tranca e chora enquanto vê um reels de sua ex pintando o apartamento com o novo namorado. É ali, entre as portas trancadas, que ele interage pela primeira vez com Yas (Vivian Oparah). Os dois estão na galeria para a exposição de fotografias de um amigo em comum e, lá fora, Yas reconhece o all star rosa do moço que chorava e puxa papo. Eles seguem andando para a mesma direção e Yas não larga do pé dele tão facilmente: intrigada, ela quer saber mais.
Dom e Yas são pessoas muito diferentes. Ele é um contador mais quieto, que tenta passar despercebido e ainda está mergulhado na fossa do término. Yas, por outro lado, trabalha com moda e quer ser figurinista, é espontânea, alegre e preenche os lugares por onde passa. Ela vai conquistando Dom aos poucos e o convencendo a se abrir. Conforme vão conversando mais sobre os seus respectivos relacionamentos passados, vamos vendo, de uma forma muito engraçada, que eles não tinham nada a ver com seus parceiros. E isso fica ainda mais gritante quando vemos que, apesar de suas diferenças, eles tem muito a ver um com o outro.
No meio do olho do furacão, é muitas vezes difícil ter a racionalidade de que separações são aberturas de novos caminhos. Algo não estava certo ali, mesmo que a gente estivesse do lado que não percebia, como Dom. E a gente vai sofrer com o rompimento mesmo quando sabe que aquilo era um fracasso anunciado desde o início, como Yas. Só que ali, no meio de um banheiro aleatório de um rolê que você nem queria dar, pode estar alguém que realmente se encaixa com você naquele momento da vida.
“Às vezes você só precisa dizer: vou ver o que acontece.”
Conforme eles vão vendo o que acontece e por onde esse dia os levará (com direito a reencontros engraçadíssimos com os ex), nós conhecemos uma Londres muito diferente daquelas que já vimos tantas outras vezes representada nos filmes e nas séries. Dom e Yas caminham pelos bairros de Peckham e Brixton, mostrando para nós uma cidade muito mais colorida, excêntrica, diversa e com uma variedade cultural imensa. São ruas cheias de vida e nossos protagonistas passam por diversos lugares que realmente existem: o mercado de Rye Lane (que dá nome ao filme) e o de Brixton, os vários restaurantes de diversas nacionalidades misturados aos tradicionais pubs ingleses, o cinema, os parques e as várias pequenas lojinhas e suas propagandas. Eles caminham junto aos vários outros andantes fazendo seus afazeres mais variados possíveis, mostrando que Londres é muito mais do que aquela imagem cinza povoada de ternos, capas de chuva e trench-coats estilo Burberry.
O filme tem essa câmera olho de peixe que causa um certo estranhamento no início, mas depois eu percebi que, além de deixar em evidência nossos dois protagonistas no centro da tela, ela também permite que a gente veja ao máximo o que está no fundo da caminhada deles. Toda cena tem alguém, alguma loja, alguma outra coisa acontecendo que traz o espírito do lugar onde eles estão.
A atenção para os detalhes é incrível. Mesmo quando eles andam por algum lugar que parece não ter nada de especial, o filme se preocupa em colocar uma pessoa na janela vendo de onde veio aquela risada alta de Yas. Mostra uma pessoa passando com as suas compras pelo mercado ou só algumas crianças fazendo dancinhas para o Tiktok em um espaço meio vazio. Nas ruas residenciais, com aquelas casas tão igualzinhas do lado de fora, há sempre alguém ou algum detalhe mostrando que cada casa tem uma personalidade própria. Porque é assim que são as nossas ruas de verdade - lugares nem sempre óbvios com um monte de gente vivendo e transformando aquele espaço no que ele é.
Tudo isso aparece e faz parte da andança, fazendo-os perceberem o que ambos acham engraçado, o que notam ou não, quais são os pontos de conexão entre eles. A gente não está vendo só uma história de amor divertida começando na rua, mas uma nova história surgindo entre duas pessoas que estão intimamente conectadas com o ambiente por onde caminham.
Há um certo ponto do filme em que Yas leva Dom para comer em um restaurante e ali há duas imensas referências às comédias românticas inglesas, com um ator bem conhecido e um filme que já é um clássico. É um aceno a esses filmes do gênero, mas também uma forma de dizer que essa é uma história muito diferente daquelas.
Talvez os galãs de verdade não tenham nada a ver com aquelas figurinhas marcadas das histórias a la Bridget Jones. Talvez a gente pegue os nomes daquelas histórias tão encaixadinhas e transforme em um trocadilho engraçado para um nome de restaurante. Talvez o galã ideal não seja tão legal assim ou talvez ele esteja por aí vivendo uma vida completamente comum e sem glamour. Talvez os nossos romances de verdade sejam mais comédias do que os grandes dramas literários. Talvez as histórias de amor sejam todas bagunçadas e com pessoas cheias de bagagem meio mal resolvidas. Talvez tudo seja muito mais complexo do que os estereótipos já hiper manjados que esses filmes nos trouxeram, mas olhar para essa complexidade tão diversa talvez faça a gente encontrar histórias muito mais deliciosas, charmosas e que se encaixam tanto com a nossa realidade. Talvez a gente vá ter um filme incrível com dois personagens nem um pouco óbvios e em um lugar que não costuma aparecer na lista dos mais românticos da cidade.
Talvez as histórias de amor de verdade estejam lá fora, na rua comum por onde passamos todos os dias. Nada de restaurantes caros, escritórios chiques e grandes monumentos famosos. É na rua, onde acontece a nossa vida de sempre, que a maior parte das nossas bagunças começa. E é dessa bagunça embolada que saem as nossas melhores histórias - é a partir delas que as coisas dão certo também.
O caminho por onde Yas e Dom andam é carregado das histórias que se relacionam com essa bagunça amorosa que carregam, mas também com quem eles são - e a partir disso eles podem construir novas histórias, conhecer lugares onde eles não iam antes e ressignificar as memórias daqueles por onde já passaram.
Rye Lane nos convida a lembrar que as histórias de amor andantes acontecem em todos os lugares e elas podem ser muito mais incríveis quando andamos por um lugar tão nosso. Essa coisa de que só as ruas de Paris são românticas, só os caminhos do Central Park fazem uma boa história de amor é balela. Eu vi muitos comentários dizendo que esse é um Before Sunset londrino, mas eu discordo totalmente. Rye Lane é tipo aquela história que você podia estar ouvindo da sua amiga na hora do almoço no intervalo do trabalho onde quer que você viva. Vai ter o restaurante do bairro, as gírias e as piadas locais, os problemas financeiros e profissionais de ter vinte e poucos nos anos 2020, os exageros e caos próprios daquele lugar, as referências a filmes e músicas do momento. Os lugares tem seu charme sim, mas é a realidade da nossa conexão cotidiana com eles que muda tudo.
E a gente certamente termina o filme apaixonado não só por Dom e Yas, mas também por essa vizinhança.
Até o próximo passeio :)
Essa edição tem um agradecimento à leitora Érica Matos, que indicou Rye Lane alguns meses atrás! Você também pode sugerir filmes e séries que se encaixam no nosso tema deixando um comentário ou respondendo este e-mail <3
Onde assistir
Rye Lane está disponível para assistir na Disney+.
Links extras
- O site Walking Post fez um apanhado de todos os lugares que aparecem no filme e traça um trajeto para fazer a pé entre os dois bairros. A rota tem 6,4km e é percorrida em mais ou menos 2 horas.
- Há também um mapa que faz parte da divulgação do filme mostrando alguns dos principais lugares e a relação deles com os personagens. Você pode baixar ele aqui.
- A Vogue fez uma entrevista ótima com a diretora Raine Allen-Miller (que cresceu em Brixton), em que ela fala mais sobre a relação pessoal com o lugar e a escolha dele para o filme, sobre como o filme foi pensado para um elenco de pessoas negras, sobre a estética colorida e sobre comparações com outros filmes do gênero. O texto está em inglês, mas é só jogar no tradutor. Vale muito a pena!
- Coincidentemente, várias dos nossos passeios desse ano foram por Londres: Fleabag, Um dia, Todos nós desconhecidos, Pobres Criaturas e Tuesday, que faz parte da nova seção de Críticas da Andanças.
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Lendo essa edição lembrei do episódio Lovers Rock da série Small Axe. Londres, anos 70, comunidade jamaicana. Nossa, que maravilha acompanhar os personagens dançando, curtindo uma festinha com música boa e passeando pelas ruas da cidade.
Um beijo.
fiquei curioso para conhecer dom e yas!