Eu nasci, cresci e vivi a maior parte da minha vida em uma cidade chamada Joinville, no norte de Santa Catarina. Uma cidade média, relativamente jovem, 173 anos. Entre as várias histórias urbanas do passado que me foram contadas pelos adultos da minha família enquanto eu crescia, estão aquelas dos momentos de lazer entre um dia de trabalho e outro. Jogos de futebol, carnaval, as matinês no Ginástico, as andanças pelas lojas do centro… e o cinema. Passei a minha vida inteira ouvindo sobre os tempos de glória do Cine Palácio e do Cine Colon, tão frequentados pelos meus pais desde que eram crianças, mas tudo que eu conheci deles já foram as suas ruínas. Nasci no começo dos anos 90, quando os cinemas de shopping vieram dar o golpe final nos cinemas de rua que ainda restavam ali.
Eu não conheci a Joinville que tinha cinemas no coração do centro, com filas que dobravam quadras e sessões que maravilhavam as crianças, formando uma geração inteira que viveu o cinema como o auge da mágica nos anos 70. Eu também não conheço (ainda) Recife e, embora essas cidades estejam tão distantes geograficamente uma da outra, na história do cinema elas se encontram em suas similaridades, assim como ocorreu com tantas outras cidades nesse país. De certa forma, a história contada pelo diretor Kleber Mendonça Filho também é a minha e, muito provavelmente, também a sua.
“Essa minha relação com o centro passa pelos cinemas.”
Nosso passeio começa em Recife, acompanhando Kleber contando a história do centro da cidade, uma história que se mescla com a sua própria. Retratos fantasmas (2023) é uma espécie de documentário autobiográfico divido em três partes. Na primeira, o diretor fala sobre a casa onde cresceu e a presença constante dela nos filmes que fez ao longo de sua vida. Na segunda parte, o movimento muda da casa para a rua, enquanto ele nos leva para um passeio pelo centro de Recife, onde se concentravam diversos cinemas de rua no passado. Vemos diversas filmagens antigas do próprio diretor quando ainda era estudante, mostrando os cinemas como eram antes e aqueles que trabalhavam ali, como o seu Alexandre, projecionista do Art Palácio. No presente, vemos como esses cinemas estão agora, a maioria com seus prédios abandonados ou que deram lugar para outras coisas, como as igrejas. A terceira parte do filme fala justamente dessa nossa relação com o cinema como um templo e o destino curioso de salas que se transformaram em igrejas evangélicas.
Eu assisti Retratos fantasmas no começo de janeiro. Foi um daqueles filmes que eu não assisti em 2023 e resolvi vê-lo nos primeiros dias do ano. Coincidentemente, aquele foi um mês em que eu estava pensando muito sobre cinema e todas as edições enviadas por aqui tiveram esse tema. A edição de Qual é o seu cinema favorito no mundo? já estava com o rascunho pronto quando eu vi o filme e ele me fez ir longe pelos cinemas do meu passado e do passado da minha família. Coincidentemente também, eu já tinha uma viagem marcada para Joinville na semana seguinte. Aquela coisa de ver o filme certo na hora certa. Aproveitei que ia com tempo e propus para minha mãe uma grande andança, como aquelas que costumávamos fazer pelo centro quando eu era criança. Mas dessa vez, para revistar os antigos cinemas da cidade, assim como Kleber faz no filme.
“O centro é um lugar que uma parte da cidade parece ter esquecido que existe. Tem um clima decadente de quem foi abandonado sem grandes explicações. Tem muita gente jovem que nunca nem veio ao centro. Nem no carnaval. Mas uma coisa que não dá pra negar é que o dinheiro foi pra outro lugar.”
Fazia muito tempo que eu não andava pelo centro de Joinville. Desde que me mudei de lá, no início de 2019, a maior parte das minhas idas à cidade foram breves e os trajetos por ali acabavam sendo feitos de carro - não é a mesma coisa. O baque fica mais forte quando há essa distância temporal. Em 2018 as coisas já eram muito diferentes de como eram quando eu era criança. Andei muito pela Rua do Príncipe carregando pilhas de sacolas com a minha mãe. Olhava todas as vitrines de lojas de sapatos, todos os vários e vários CDs daquela loja de esquina, passei horas da minha infância no sebo da João Colin - o que fechou muitos anos atrás. Mais tarde, adolescente, o centro tomava outra forma, de poder explorar a cidade por conta própria. As coisas ainda eram bastante vivas naquele fim dos anos 2000.
“Eu ouvi uma pessoa dizer uma vez que o problema do centro é que não tem ar-condicionado”.
Naquela sexta-feira de janeiro fazia um calor desgraçado, mais de 35 graus, e as calçadas estavam vazias. Não sei se era o calor, janeiro ou se é sempre assim. Kleber diz que “o centro de uma cidade pode lembrar muitas outras cidades” e eu acho que isso é verdade. O dinheiro foi embora daqui também. Ainda há áreas mais “nobres” do centro e tudo o mais, mas o coração da vida central mais pulsante já não bate mais como antes. Talvez tenha sido só uma impressão minha, o dia errado ou uma visão romântica do que era antes que eu carrego comigo - eu precisaria passar mais tempo lá para afirmar melhor.
No curto trajeto que fizemos a pé para chegar até o centro, contei 10 farmácias em uma única avenida, a Getúlio Vargas.
Era no centro que os cinemas de Joinville viviam também. Já mencionei o Cine Palácio e o Cine Colon: desses eu sempre soube da existência, onde eram e como acabaram. Há alguns meses atrás, eu uma conversa com a minha avó, soube de outro, o Cine Rex. No começo de nosso percurso, minha mãe também lembrou de mais um, o Cine Chaplin. Esses quatro cinemas ficavam em localizações relativamente próximas, todas no centro da cidade, que não é muito grande. Minha intenção com o passeio era passar por todos eles e também pelos três cinemas de shopping que marcaram a minha vida ali - mas esses são assunto para semana que vem.
É estranho olhar de volta para esses lugares e imaginar o esplendor que provavelmente reinou ali um dia. Olho as imagens de Retratos fantasmas e fico imaginando se teria sido assim aqui também. Salas imensas com milhares de poltronas, calçadas lotadas, inaugurações com moças vestidas na alta moda da época, que entregavam flores para as senhoras da sociedade que entravam para ver o espaço mais moderno da vida urbana que levavam. Penso como teriam sido os halls de entrada, as salas de projeção. Quem trabalhou ali naqueles anos todos? Quem foram as pessoas que dedicaram suas vidas aos cinemas da cidade? Quem foram as pessoas que fecharam com chave de lágrimas os cinemas que marcaram tanto a minha família e que eu nunca conheci?
O Cine Rex foi a nossa primeira parada. Na fachada do prédio, há o ano de 1937, quando o cinema foi inaugurado no edifício da Liga de Sociedades de Joinville. Fuçando um pouco na internet, descobri que ali funcionou um cinema antes, o Majesty, mas um incêndio na sala de projeção destruiu todo o prédio. Ele foi reconstruído e reinaugurado em 1937 com o Rex, e esse é o prédio que permanece até hoje. Ele funcionou mais ou menos durante os anos 40, mas não consegui encontrar uma data exata de fechamento. Acredito que não tenha ido além disso mesmo. Esse já era um espaço mais frequentado pela elite da cidade e, depois que o cinema fechou, prevaleceu como salão de baile agitadíssimo nas décadas seguintes. Ele esteve fechado, no entanto, durante a maior parte da minha vida. Só entrei lá uma vez, em 2018. Jamais imaginaria que ali funcionou um cinema décadas atrás. Essa foi uma história que quase me escapou.
Foi naquele dia mesmo que eu descobri que no predinho perto do antigo Fórum (que esteve abandonado desde que eu me lembro e que, para o meu espanto, estava demolido), existia um cinema. O Chaplin funcionou entre 1984 e 1991, em uma época em que o outro grande cinema da cidade já não iam muito bem. Dessa vez, o cinema fez parte da história da minha mãe e, paradas na frente da fachada, ela foi contando como ele era. Ali ela e meu pai assistiram Holocausto canibal (1980), um filme que, descobri depois, foi extremamente polêmico, sendo censurado em 50 países. Só a lembrança já causa uma careta em ambos: não foi uma experiência muito agradável. Lendo um pouco mais a respeito, descobri que o Chaplin tinha um foco em filmes alternativos, que não eram exibidos nos outros locais.
Pensei em todas as vezes que andei por essa rua sem imaginar que logo ali, meio escondido, existiu por quase uma década um tipo de cinema que a cidade nunca mais teve desde então. No meio do centro de Joinville existiu um cinema cult pouco antes de eu nascer. Hoje o térreo é ocupado por um restaurante e me pergunto se quem come ali no intervalo do almoço sabe que um dia aquelas portas foram a entrada de um cinema. É mais ou menos como a sala de projeção de cinema transformada em depósito da loja de eletrodomésticos na Recife de Kleber.
“A indústria monta a estrutura de distribuição e depois joga tudo fora.”
Virando a próxima esquina e andando mais uma quadra, chegamos naquele que foi a estrela da história do cinema em Joinville. O prédio foi inaugurado em 1917, como Theatro Nicodemus e, na década de 40, mudou o nome para Cine Palácio. Foi uma constante nas histórias dos meus avós e principalmente dos meus pais. Foi ali que minha mãe assistiu seu primeiro filme, Marcelino pão e vinho (1955), e uma de suas grandes memórias com o lugar foi de quando o filme E.T. - O extraterrestre (1982) estreou - as filas iam longe nas quadras ao redor do cinema. O Cine Palácio se tornou um cinema mais popular com o passar das décadas e atraía um grande público. Imagino como devia ser tudo aquilo aos olhos de uma criança - a rua agitada e iluminada, cheia de gente tentando entrar para a sessão.
Eu não tenho referências emocionais para entender como essa sensação seria. O maravilhamento, o arrebatamento. O tamanho do uso daquele espaço urbano e como ele deve ter sido mágico para tanta gente. Acho que uma quantidade considerável de pessoas que morou em Joinville nessas décadas tem pelo menos uma história com o Cine Palácio. Sempre que eu ouço ou leio alguém falando sobre ele, as palavras são carregadas de muita emoção. Devia ter todo tipo de caos acontecendo por ali sempre, é claro, sendo as pulgas um deles - o cinema foi decaindo consideravelmente com o tempo. Mesmo assim, o nome do cinema traz sempre um sorriso, um brilho no olho e um ar de afeto que é difícil perceber com outros lugares da cidade com tanta unanimidade.
Tudo que eu conheci dele foi o vazio. Um lugar com uma arquitetura peculiar meio apagado ao lado do terminal do centro, naquela praça onde ninguém nunca para. Em 1995, dois anos depois de eu nascer, ele fechou de vez, depois de um tempo de decadência, e foi ocupado totalmente pela Igreja Universal, mais um paralelo com os cinemas de Kleber - os “cinemas que morreram e que voltaram como templos”. Nunca entrei lá para ver se as poltronas foram mantidas e se os espaços da tela e das cabines permaneciam no lugar. Foi igreja esse tempo todo e não sei quando ela saiu dali. O edifício é tombado e hoje está vazio. Nos vidros, há placas de escritórios de arquitetura e não sei o que vai acontecer com ele.
Mas a minha mãe conhece bem aquela quadra. Na rua lateral, camuflada entre várias pequenas lojinhas, ela mostra uma grade que era uma das saídas do cinema. Da rua dava para ver um pouco do corredor. Era difícil dizer o que havia além do corredor com a escuridão que havia lá dentro. De qualquer forma, ver aquilo tão de perto me doeu o coração. Senti um luto por uma cidade que eu não conheci, uma sensação parecida com a que eu tive assistindo Retratos fantasmas, mas agora aqui, ao vivo, na minha cidade e na minha história. Imaginei a multidão que saía dali todas as noites, com as luzes quentes iluminando o caminho. Olhando as fotos agora, fiquei me perguntando se essas reentrâncias nas paredes sempre existiram ou se foram um acréscimo da igreja. Seriam elas pequenas vitrines de cartazes de filmes, como nos cinemas antigos de Recife?
(perguntei para a minha mãe minutos antes de enviar essa edição e parece que eram vitrines sim, de uma época em que o cinema diminui e a entrada era por aqui).
Há poucas quadras dali, nossa última parada é o Cine Colon. No dia seguinte à andança, meu avô me contou que esteve ali no dia da inauguração, em uma sessão de estreia de Sete noivas para sete irmãos em 1956. Ele nem hesitou para falar o nome do filme, a memória é perfeita. Meu pai assistiu ali Tubarão, e me pergunto se do lado de fora, na entrada pela praça, também havia uma fila grande de pessoas ansiosíssimas, como na foto mostrada por Kleber em algum ponto de Retratos fantasmas.
Meu pai conta que, um dia, acabou desistindo de última hora de ir com seus amigos na última sessão em uma noite novembro de 1983 no Colon. Seus amigos foram, voltaram para casa e, uma hora depois, o cinema pegou fogo por conta de um curto-circuito. Ninguém se feriu, mas o cinema foi completamente destruído. Ele era um dos mais modernos e bonitos da época, com 1.300 lugares, o principal concorrente do Palácio. Hoje, do lado de fora resta apenas uma grande parede que faz divisa com a praça Lauro Müller. Todas as vezes que eu ouvi sobre esse acidente, foi com falas carregadas de tristeza, como se uma parte das pessoas tivesse ido junto com o cinema.
A essa altura, o meu maior impulso era virar na outra direção e ir até o Arquivo Histórico da cidade, do outro lado do rio. Deu vontade de ir mais fundo, ver imagens que eu nunca vi, matérias de jornal, descobrir qual era a programação desses cinemas, como os vários King Kongs que Kleber encontra em um jornal antigo, também em um arquivo onde vai pesquisar durante o filme. Tem tanta coisa que eu ainda não sei e que não deu tempo de pesquisar. Deu vontade de fazer outro mestrado e eu já sabia até o método que usaria. Quem sabe um dia. Vendo Retratos fantasmas de novo essa semana, quis fazer um filme também. Nem que fosse uma coisa bem caseira: já consigo até visualizar uma câmera andante, artigos de jornal, algumas entrevistas. Entendi porque depois de zanzar tanto por vários temas de pesquisa eu fui cair na história.
“Outro dia eu passei no edifício Alfredo Fernandes e o novo administrador me informou, com muita autoridade, que nunca existiu nenhuma empresa de cinema naquele lugar. Essas empresas só ocuparam o edifício durante mais de 70 anos.”
Tive que me conter horrores escrevendo essa edição e fazer o árduo trabalho de cortar parágrafos queridos. Cada coisa que eu procurava já abria as portas de outras histórias e essas histórias se misturam com a minha, então as palavras vão longe. A proximidade de Joinville com Curitiba também mistura essas histórias do meu passado e do meu presente. Daria para fazer uma edição de newsletter de cada detalhe desse. Continuar contando as histórias que me foram contadas e aquelas que eu descobri. Daria para fazer outra tese e eu ainda não alcançaria tudo. Aí eu percebi que as 1h15 minutos que Kleber passa falando de cinema devem ter sido um esforço imenso de resumo e de seleção entre a infinidade de informações que ele teve acesso e arquivo acumulado nesses anos todos.
Pensei também em como a pesquisa, os registros e os espaços de preservação da memória são tão importantes para gente lembrar de onde veio. As coisas se perdem e são destruídas com tanta facilidade que dói. Dói fundo.
Eu estou lendo agora um livro sobre os cinemas de rua de Curitiba que comprei em uma feira do Sesc anos atrás. São vários e vários cinemas de rua que existiram por décadas e hoje não sobrou mais nenhum deles aqui. Tem várias histórias ali também. Esse livro, Retratos fantasmas, a minha andança e a memória da minha família mostram o quanto vidas inteiras de pessoas foram tocadas de alguma forma pelo “simples” ato de ir a um cinema. O cinema as fez quem são, não dá para separá-las das inúmeras sessões que assistiram ao longo da vida, e nem de tudo aquilo que viveram naquelas salas já não mais tão glamurosas como um dia foram. E isso é tão bonito. Não são todas as pessoas e nem todos os cinemas, é claro, mas acho que gente precisa mesmo desses lugares que ajudam a construir caráter, como diz Kleber - e eles também precisam da gente.
Um dia, ainda quero ir no São Luiz.
Até o próximo passeio :)
Um agradecimento imenso à minha mãe, que topou animada essa andança cheia de protetor solar no auge do verão joinvillense e que até agora a pouco ainda respondia às minhas perguntas de detalhes que faltaram para finalizar essa edição, assim como meu pai. Ao meu pai e meu avô, que nos dias seguintes da andança contaram mais histórias que foram anotadas no caderninho. Um agradecimento póstumo à minha avó, que me fez descobrir o Rex e tantas outras histórias urbanas do passado. E à minha irmã e o meu cunhado, com quem falei sobre essa edição e cinema como um todo por horas e horas daquela viagem.
Onde assistir
Retratos fantasmas está disponível na Netflix.
Links extras
- Para verificar as datas e nomes corretos, além de outras pequenas informações sobre os cinemas de Joinville que abordei aqui, consultei o artigo Da glória à ruína dos cinemas de rua na cidade de Joinville-SC: Exportações à patrimonialização assentes na decadência e novos usos, publicado em 2017, de autoria Christiane Kalb e Maria Bernadete Flores.
- Essa matéria de 2013 sobre o Cine Colon é muito interessante e conta mais detalhes de como foi o acidente que destruiu o cinema e o que aconteceu depois. Também dá protagonismo a um dos principais funcionários do cinema, Affonso Kielwagen.
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Que edição mais linda, eu só conheço Joinville de pegar trânsito perto da rodoviária, num daqueles ônibus paradeiros com destino a Florianópolis. Mas adorei demais saber dessa parte da história da cidade. Fiquei pensando em como a história do cinema de rua e as transformações do centro devem ser parecidas em cidades tão diferentes entre si...
Estava aguardando essa edição desde que descobri que era de Joinville. Moro aqui há uns 15 anos e convivo com a cidade - adoro andanças por aqui, mesmo no sol escaldante. Amei saber mais sobre os outros cinemas, não tinha ideia da existência de alguns deles. Amei! Obrigada :)