Andanças #58: Meia-noite em Paris
Quem nunca quis ser uma escritora em Paris? - ou A romantização - excessiva - da cidade, das andanças e das pessoas
A edição de hoje é altamente influenciada pelas reflexões levantadas no curso À meia-noite, Paris é uma festa, oferecido pela no mês passado. As professoras Roberta e Marcela abriram um novo universo de interpretação desse filme para mim (já faz tempo que eu quero fazer uma edição sobre ele, mas o meu ranço com o Woody Allen sempre entrava no caminho) e esse texto traz um pouquinho do que elas levaram para discussão em aula e outros pensamentos que eu fui tendo depois. O calendário de cursos da Literária volta no ano que vem e eu não poderia recomendar mais <3
Até os meus 19 anos, eu nunca viajei para nenhum lugar além de um raio de 3 horas de distância de onde eu havia vivido toda a minha vida até então. Como catarinense, para além das férias no litoral que ficava a poucos quilômetros de distância, eu tinha breves relances de Curitiba, uma brevíssima passagem turística por Florianópolis - e só. Toda a minha vida acontecia nos limites de duas cidades muito próximas. E, até que eu pudesse sentir outros chãos com meus próprios pés e ter a minha própria perspectiva sobre eles, eu viajei junto com os personagens dos livros, da televisão e do cinema. Imaginei do meu sofá como seria viver aquela vida, criei cenários onde eu seria aquela pessoa morando naquele lugar, fantasiei diversas vidas possíveis que pareciam muito distantes de tudo que eu tinha ao meu redor imediato.
Algumas personagens tinham um impacto especial para mim e você com certeza tem as suas também. As gêmeas Olsen e suas aventuras andantes cada vez em um país diferente, seguidas por Amanda Bynes em Londres e Lizzie McGuire e Sabrina em Roma. Crescendo, as referências se expandiram ainda mais e avançaram para as comédias românticas, os dramas e os filmes de ação. Nesse guarda-chuva de influências cinematográficas e literárias, algumas cidades parecem ter um mística maior envolvida. Toda essa aura mágica da possibilidade e décadas de representações fazem com que elas criem e enraízem um lugar todo seu nas nossas fantasias mais imediatas ou mais profundas. Não tem erro: acho que não tem cidade em que esse efeito tenha tanta força quanto Nova York e Paris. A primeira, vamos deixar para outro dia. Nosso passeio hoje é na segunda.
Afinal, quem nunca sonhou em ser uma escritora bem vestida morando em um apartamento antigo de Paris?
“Isso é inacreditável. Olhe só! Não há cidade igual no mundo. Nunca houve. […] Consegue visualizar como esta cidade é linda na chuva? Imagine esta cidade nos anos 20. Paris nos anos 20, na chuva. Os artistas e os escritores!”
É por esse sonho de escrita parisiense que anda também o nosso protagonista, Gil Pender (Owen Wilson), em Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, 2011, dirigido por Woody Allen). Gil é um roteirista de Hollywood que mora em Beverly Hills e ganha muito dinheiro. Ele veio passear na cidade com sua noiva Inez (Rachel McAddams), acompanhando os pais dela, que estão em uma viagem de negócios. Um dia, depois de uma degustação de vinhos, Gil resolve voltar para o hotel andando e se perde no caminho. Desistindo de tentar se encontrar, ele senta nos degraus de uma igreja enquanto o sino badala meia-noite e vê um carro antigo se aproximar com as pessoas o convidando para ir a uma festa. Chegando lá, ele percebe que as coisas estão um pouco esquisitas: as primeiras pessoas com quem conversa são ninguém menos que Zelda (Allison Pill) e Scott Fitzgerald (Tom Hiddleston). Eles o levam para outras andanças festivas e ele conhece Hemingway (Corey Stoll), que o apresenta a Gertrude Stein (Kathy Bates), que aceita ler e avaliar seu manuscrito - ele está no meio do círculo de escritores e artistas na Paris dos anos 20.
Dai em diante, Gil volta sempre que pode. Conhece outras figuras famosas e uma moça francesa chamada Adriana (Marion Cotillard), tão sonhadora com o passado quanto ele. Mas estaria Gil realmente conhecendo essas pessoas? Estaria ele realmente no passado? Tudo isso é real?
Dá para ir longe nas minúcias do filme e todos os personagens que ele apresenta, mas quero focar aqui hoje em um elemento gritante da personalidade de Gil que vemos na tela: o quanto se romantiza, excessivamente, determinadas cidades, determinadas andanças e porque não, determinadas pessoas.
A gente já falou disso antes e a reflexão cabe aqui também: romantizar está longe de ser um problema. Às vezes, é romantizando que a gente consegue entender o que gosta, que tipo de vida quer ter e tem um vislumbre de como construir nossos caminhos para chegar até lá. Nem sempre a gente quer concretizá-las, é claro - às vezes nós queremos que nossas fantasias sejam só isso mesmo. Mas, se queremos nos movimentar nessa direção de alguma forma, a gente não pode viver só nelas e delas. Romantizar tem um alto potencial de indicar o caminho, mas tem muito trabalho, muito perrengue e muitos obstáculos para fazer os sonhos e as fantasias se tornarem realidade.
Enquanto Inez, seus pais e seus amigos são práticos, objetivos e tem uma visão bastante estadunidense da cidade, Gil sonha. Ele gostaria de parar de escrever os roteiros genéricos e se tornar um escritor de romances. Mas esse não parece ser um desejo profundo e antigo para nosso personagem, um desejo no qual ele investiu tempo e energia para concretizar. Também não o vemos efetivamente colocando a mão na massa e escrevendo - trabalhando. Como nenhuma das pessoas ao seu redor leu o manuscrito, também não temos como saber se há realmente alguma coisa ali.
Gil está mais envolvido com a ideia de ser escritor do que ser escritor de fato. Uma ideia bem romantizada do que é ser um escritor, aliás. Ele quer construir para si uma imagem que é pautada em diversos estereótipos dos escritores que admira. Gil está apaixonado por uma fantasia, como lhe diz Inez. E Paris é uma peça central nela.
“Eu me imagino morando aqui. Os parisienses me entendem. Eu me imagino passeando pela margem esquerda, com uma baguete sob o braço, indo para o Café de Flore para escrever meu livro. O que Hemingway disse? ‘Paris é uma festa’.”
Me pergunto quantas vezes caímos na armadilha de nos apaixonarmos pela ideia das coisas, ao invés da realidade delas. Pode ser um relacionamento, uma carreira, um estilo de vida, uma cidade, uma outra pessoa. E algumas dessas ideias tem raízes profundas no nosso repertório literário e cinematográfico acumulado ao longo dos anos, muitas vezes cercados de estereótipos irreais. Paris é cenário de muitos desses imaginários. Se apaixonar perdidamente por um/a estrangeiro/a romântico/a. Viver uma vida boêmia sob a luzes amarelas. Vidas sociais agitadas e fashion (alô Emily!). Viver de escrever nos cafés em frente aos boulevares, onde - dizem - outros tantos escritores já estiveram um dia. Gil ainda vai além na sua romantização: ele não acha apenas que Paris é o lugar onde ele tem que estar para ser escritor. Ele acha que a Paris do passado seria o lugar ainda mais ideal. A Paris que proporcionava um determinado estilo de vida, uma determinada andança, o contato com determinadas pessoas. Ali sim ele se tornaria o que quer ser.
Para ele, a cidade é vista como esse lugar surreal onde a mágica acontece. Onde a mágica que vai transformá-lo no que quer ser vai acontecer. Como se ser escritor fosse algo possível por osmose: esteja em Paris, ande sem rumo pela cidade apreciando as coisas simples, viva ali como - você acha que - viveram seus herois e puff! Você se tornará a versão moderna deles, tão reconhecido e bem-sucedido quanto.
Tenho pensado muito sobre isso ultimamente, sobre o quanto romantizamos e idolatramos lugares, pessoas e estilos de vida sempre com base em uma visão fabricada que chega até nós. Muito tempo atrás, lembro que a única imagem real de Paris que eu tinha era a das manifestações com os carros queimados que apareciam no Jornal Nacional. Foi só mais tarde que eu assisti filmes como O Ódio, que mostra a vida sem grandes expectativas dos jovens bem longe do centro da cidade. Filmaço. Garotas (sobre o qual já falamos aqui), também mostra um pouco dessa realidade em tempos mais recentes a partir da perspectiva de uma garota negra nos subúrbios da cidade. Há muitas Paris dentro daquela enrolada em uma capa da Vogue em tecido de alta costura com pitadas de uma ilusão de outros tempos que chega até nós.
Assim como qualquer outra cidade. Especialmente as grandes.
A Paris de Gil não tem filas, não tem multidões, não tem dificuldades, não tem pessoas diferentes dele e do que ele espera encontrar. Pode ser a realidade financeira desse turista específico, pode ser o estereótipo que ele projeta no que vê - ou os dois. Se para ele a Paris ideal é a dos anos 20 - que ele supostamente visita toda noite -, aquela também é uma cidade sem marcas da guerra e da epidemia recentes. É uma Paris em que todos tem tempo e dinheiro para festas e para os bares. Versões de Paris que não existem de verdade. Que provavelmente nunca existiram.
Depois do curso e de assistir novamente o filme, minha conclusão é que todas essas viagens no tempo foram uma grande construção da mente de Gil, um enorme devaneio, ou talvez a própria história que ele está escrevendo. No curso, falamos sobre como algumas cenas parecem ser a realidade, e outras, a imaginação de Gil ou a interpretação dele das situações. Para além da cidade irreal, os escritores e artistas são versões estereotipadas e achatadas do que se diz que eles foram, Adriana é a musa inspiradora e sua versão feminina, até Gabrielle (Léa Seydoux) parece a fantasia da mulher parisiense idealizada por ele. E todos gostam muito dele, claro.
Mas se viajar no tempo não é realmente possível e nada acontece se a gente não fazer acontecer - nem que seja o mínimo -, como Gil irá se tornar alguma coisa?
Não vai. Mas vá lá, essa é só uma interpretação.
É como se a gente nunca saísse daquele sofá e dos filmes adolescentes e nunca se colocasse para provar dos problemas e também das delícias que envolvem a realidade. Nunca se colocasse para se aprofundar no conhecimento, no trabalho, nas minúcias que a gente aprende aqui e ali para dar mais um passo na direção que queremos. Ver como as coisas realmente são para termos nossas próprias opiniões a respeito e agir como pudermos para mudá-las. Tem perrengue, tem medo, leva tempo, trabalho, muito estudo, muita muita dedicação. Fazer e fazer de novo e, talvez, em algum momento, ficar boa naquilo. Não podemos romantizar o processo também: a gente sabe que as coisas não são fáceis e que essa vida e essas cidades são extremamente desiguais - tem muito trabalho a ser feito para deixar as coisas melhores para nós, para os outros e para os que vierem depois.
Talvez, o que a gente tenha a aprender com Gil é que a gente não pode ser como ele e deixar a realidade escapar dos nossos dedos por uma fantasia que não tentamos, de nenhuma forma, tornar realidade.
Que nesse próximo ano a gente possa sonhar todos os sonhos mais loucos que conseguirmos imaginar, mas também ver a beleza e o romance possível nas nossas próprias cidades, nas nossas próprias andanças de todos os dias e nas pessoas que já somos. Porque tem coisa boa demais nesse mundo muito além daquilo que nos ensinaram a desejar.
Até o próximo passeio :)
Onde assistir
Meia-noite em Paris está disponível para assitir na Netflix e na HBO Max.
News andantes
Esta é a nossa última edição tradicional de 2023! Nas próximas semanas, seguiremos para o calendário especial de fim de ano:
- Nossa edição #59 será a minha carta para o amigo secreto de newsletters desse ano. No ano passado, minha carta foi para a Caroline do
(que você pode ler aqui) e recebi uma carta linda da Mia do (que você pode ler aqui), em que ela comenta a edição #20 da Andanças, do filme Carol.- A edição #60 será uma retrospectiva da Andanças em 2023. Já comecei a escrevê-la e, olha, teve muita coisa legal nesse ano! Você pode ver a retrospectiva de 2022 aqui.
- Na semana do Natal e na primeira semana de janeiro estaremos de férias por aqui! A Andanças volta com um cafézinho na segunda semana de janeiro. Te espero lá!
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Nossa, Lu. Nossa!
Tenho um carinho por esse filme, exatamente por essa visão estereotipada da Paris dos Anos 20, que acabo por cultivar. E recebi o seu texto como um soco necessário, um choque de realidade, um convite para em 2024 confiar mais que, com as tuas palavras, "tem coisa boa demais nesse mundo muito além daquilo que nos ensinaram a desejar."
Obrigada por isso! Precisava ler e precisava ler hoje, hehe! <3
Feliz 2024!!
Obs.: Não creio que perdi esse curso. Morri por dentro de saber! Vou ficar de olho, quem sabe rola um repeteco - oremos, Deus.
Enquanto estava lendo, fui lembrando de alguns lugares, pouco convencionais, que visitei, como Mongólia, Sibéria, Auschwitz, Irã. E percebi o quanto viajei no tempo durante essas jornadas. Os livros, as histórias de meu Pai, as músicas, as comidas. Todo esse universo foi capaz de me arrastar para determinados acontecimentos durante o tempo que estive nesses lugares. Quando assisti ao filme "Meia Noite em Paris" foi como se materializasse o que eu sentia quando viajo para essas terras distantes. Adoro quando uma newsletter me faz destrinchar meu baú de memórias!